O Cardeal Alfons Stickler foi o Prefeito emérito da Biblioteca Vaticana e de seus arquivos. Actuou como especialista, como perito na Comissão de Liturgia do Concílio Vaticano II. Foi elevado ao Colégio Cardinalício pelo Papa João Paulo II em l985 .È dele este artigo:
O Concílio pediu, uma vez e outra vez, que a reforma aderisse à tradição. Todas as reformas, a excepção da pós-conciliar, observaram essa regra básica
Com o fim de estabelecer a coincidência ou a contradição entre as regulamentações do Concílio e a reforma tal qual foi levada a cabo, vejamos brevemente as instruções Conciliares mais importantes relativas ao trabalho de reforma.
As instruções gerais, que concernem sobretudo aos fundamentos teológicos, estão contidas principalmente no artigo 2 da Sacrossantum Concilium. Aí se estabelecem primeiramente a natureza terreno-celestial da Igreja, seu Mistério, tal como a liturgia deveria expressar isso: todo o que é humano deveria estar ordenado e subordinado ao divino; o visível ao invisível; o activo ao contemplativo; o presente à futura Cidade de Deus que buscamos. De acordo com isso, a renovação da liturgia deve ir de mãos dadas com o desenvolvimento e a renovação do conceito de Igreja.
O artigo 21 deixa assentada a condição prévia para qualquer reforma litúrgica: que há na liturgia uma parte imutável, pois foi decretada por Deus, e partes que podem ser mudadas, ou seja, aquelas que se introduziram no curso do tempo em forma imprópria ou que ficou provado serem menos apropriadas. Os textos e os ritos devem se corresponder com a ordem estabelecida no artigo 2, e por isso podem ser mais bem entendidos e melhor experimentados pelo povo.
No artigo 23 aparecem, sobretudo, guias práticos que devem ser seguidos para lograr a correcta relação entre tradição e progresso. Deve empreender-se uma precisa investigação teológica, histórica e pastoral; ademais, devem considerar-se as leis gerais da estrutura e do sentido da liturgia, e a experiência derivada das reformas litúrgicas mais recentes. Logo, se deixa estabelecido como norma geral que a inovação pode ser introduzida somente se um genuíno beneficio para a Igreja o demanda. Finalmente, as novas formas devem surgir organicamente daquelas já existentes.
Convém assinalar que as normas práticas para a tarefa da reforma surgem da natureza didáctica e pastoral da liturgia.
De acordo com o artigo 33, a liturgia é principalmente o culto à majestade de Deus, pelo qual os crentes entram em relação com Ele por meio de signos visíveis que a liturgia usa para expressar realidades invisíveis, signos que foram eleitos por Cristo mesmo ou pela Igreja. Há aqui um eco vibrante do que o Concílio de Trento já recomendava com o fim de proteger seu património do vazio racionalista e insípido do culto protestante, património que o Santo Padre em seus escritos às Igrejas orientais caracterizou como seu tesouro especial. Este "tesouro especial" também merece ser uma fonte de alimento para a Igreja Católica. Ele se distingue por ser rico em simbolismo, provendo, dessa maneira, educação didáctica pastoral e enriquecimento, tornando- o especialmente adequado até para a gente mais simples.
Quando consideramos que as Igrejas Ortodoxas – apesar de sua separação da rocha da Igreja– através da expressão simbólica e do desenvolvimento teológico que continuamente se incorporaram à sua liturgia preservaram as crenças correctas e os sacramentos, toda reforma litúrgica católica deveria antes aumentar a riqueza simbólica de sua forma de culto em vez de diminuí-la –por vezes até drasticamente.
No que concerne às guias práticas para partes específicas da liturgia – sobretudo para o que é central, o sacrifício da Missa– é suficiente concentrar-se em uns poucos pontos especialmente significativos para a reforma do Ordo Missae.
Para isso, devem se enfatizar especialmente duas directivas Conciliares. No artigo 50 se dá, primeiramente, a directiva de que na reforma deve manifestar-se mais claramente a natureza intrínseca das várias partes da Missa, e a conexão entre elas, com a finalidade de facilitar a activa e devota participação dos fiéis.
Como consequência, se enfatiza que os ritos devem ser simplificados, porém mantendo, ao mesmo tempo, fielmente sua substância, e que certos elementos que tinham sido duplicados no curso dos séculos ou agregados de maneira não especialmente oportuna, deviam ser novamente eliminados; enquanto outros, que tinham sido perdidos com a passagem do tempo, seriam restaurados em harmonia com os padres Conciliares até onde parecera apropriado ou necessário.
O CONCÍLIO: ÊNFASE ESPECIAL NO SILÊNCIO
No que concerne à participação dos fiéis, os vários elementos de compromisso exterior estão indicados no artigo 30, com ênfase especial no silêncio necessário, nos momentos devidos. O Concílio volta a isso, com mais detalhe, no artigo 48, com uma nota especial sobre a participação interior, através da qual a adoração a Deus e a obtenção da Graça, juntamente com o sacerdote que oferece o sacrifício e os demais participantes, logra seus frutos.
A LINGUAGEM LITÚRGICA
O Artigo 36 fala da linguagem litúrgica em geral, e o artigo 54 dos casos particulares da Missa. Logo após de uma discussão que durou vários dias, na qual se discutiram os argumentos, a favor e contra, os padres Conciliares chegaram à clara conclusão – em total acordo com o Concílio de Trento– de que o Latim devia ser mantido como a língua do culto para o rito Latino, ainda que fossem possíveis e até bem aventurados os casos excepcionais. Voltaremos a este ponto em detalhe.
O CANTO GREGORIANO
O artigo 116 fala extensamente sobre o canto gregoriano, fazendo notar que este foi o canto clássico da liturgia católica desde o tempo de Gregório, o Grande, e que, como tal, deve ser mantido. A música polifónica também merece atenção e estudo. Os demais artigos do capitulo VI, sobre música sacra, falam do canto e a música apropriados para a Igreja e a liturgia, e enfatiza esplendidamente o importante, certamente fundamental, papel do órgão na liturgia Católica.
O artigo 107 analisa a reforma do ano litúrgico, pondo ênfase na afirmação ou reintrodução dos elementos tradicionais, e guardando seu carácter específico. Enfatiza-se particularmente a importância das festas do Senhor e em geral do Propium de tempore na seqüência anual, na qual algumas festas sagradas deviam deixar seu lugar para que a completa efectividade da celebração dos mistérios da redenção não fosse menoscabada.
Por certo que essas menções sobre a reforma litúrgica à luz da Constituição para a Liturgia não são completas, no que concerne aos distintos temas considerados, nem a como foram tratados. Seleccionarei muitos e variados exemplos que parecem necessários para chegar a uma conclusão convincente.
A Igreja e a liturgia crescem e se desenvolvem juntas, porém sempre de modo que o terreno se organize em torno ao celestial.
A Missa vem de Cristo; foi adotada pelos apóstolos e seus sucessores, como também pelos Padres da Igreja. Desenvolveu-se organicamente com a manutenção consciente de sua substância. A liturgia se desenvolveu conforme à Fé que está contida nela; por isso podemos dizer com o Papa Celestino I, em seus escritos aos Bispos Galicanos, no ano 422: Legem credendi lex statuit supplicandi: a liturgia contém e, em formas adequadas e compreensíveis, expressa a Fé. Nesse sentido, o conteúdo da liturgia participa do conteúdo da própria Fé e, certamente, contribui a protegê-la. Nunca se viu, então, em nenhum dos ritos cristãos católicos, uma ruptura, uma criação radicalmente nova – a excepção da reforma pós-conciliar. Porém, o Concílio pediu, uma e outra vez, que a reforma se mantivesse unida à tradição. Todas as reformas, começando com Gregório I, ao longo da Idade Média, durante o ingresso na Igreja dos povos mais díspares com seus variados costumes, observaram essa regra básica.
Essa é, incidentalmente, uma característica de todas as religiões, inclusive as não reveladas, o que prova que um apego à tradição é comum a todo culto religioso, e, portanto, é algo natural.
Não é surpreendente, portanto, que cada broto herético da Igreja Católica tenha gerado uma revolução litúrgica, como é claramente reconhecível no caso dos protestantes e anglicanos; enquanto que as reformas efectuadas pelos Papas e particularmente estimuladas pelo Concílio de Trento e levadas adiante pelo Papa São Pio V, como as de São Pio X, Pio XII e João XXIII, não foram revoluções, mas meramente correcções insignificantes, alinhamentos e enriquecimentos. Não devia introduzir-se nada de novo, como o Concílio diz expressamente referindo-se à reforma desejada pelos Padres Conciliares, salvo que o demandassem o bem genuíno da Igreja.