terça-feira, 20 de janeiro de 2009
O PROGRESSISMO DO CARDEAL SIRI III PARTE
4. A Bíblia é interpretada só e livremente pelos biblistas.
Este é um princípio basilar do progressismo. Chegamos a uma questão, ou melhor, a uma afirmação verdadeiramente nodal em toda a história do progressismo eclesiástico moderno.
É necessário referir-se aos factos, os quais não começaram precisamente naquela segunda assembleia do Vaticano II, na primeira sessão, na qual alguns se alegraram, crendo que duas intervenções, nada felizes, tivessem posto enfim o machado na raiz da divina tradição e tivessem removido os obstáculos para a conversão em direcção ao Protestantismo.
Aquelas duas intervenções, conscientes ou não de portar a inspiração de pessoas mal intencionadas, tinham dois precedentes. Estávamos presentes em meio a todos os acontecimentos e estamos bem seguros daquilo que dizemos.
Faz tempo, e muitos actos de Pio XII lhe dão fé, o germe do querer interpretar a Sagrada Escritura de modo “privado”, dito científico, havia entrado, embora não ousando entrar nas editoras de divulgação pela estreita vigilância do Imprimatur. A história é, portanto, assaz velha, mas só nos últimos tempos tornou-se disponível a todos. Eis os argumentos:
- a filologia, a arqueologia, as pesquisas linguísticas, os procedimentos comparados (ad usum delphini), mas sobretudo as variadas opiniões de todos os escritores, especialmente transalpinos, aos quais geralmente se dá crédito somente citando seus nomes e títulos (jamais ou quase nunca exigindo as razões e avaliando-as), constituem o verdadeiro, único modo de fato de interpretar a Bíblia.
Não importa se pronunciam uma palavra; a pronunciamos Nós: isto é livre exame, porque o placitum privado substitui o primeiro e verdadeiro meio estabelecido por Deus para a interpretação da sua natureza: o Magistério. A palavra “livre exame” é cuidadosamente silenciada e continuamente aplicada.
- o complexo supracitado, além de que é a repetição de teorias difundidas no século passado e das quais as escolas católicas riram por mais de meio século, está sujeito a um fluxo e refluxo, a um suceder-se de afirmações e de desmentidos, a uma produção de fantasia, que por si não pode ser, em matéria tão grave, verdadeira garantia.
- a hermenêutica católica sempre ensinou que a primeira interpretação das Escrituras, comparada com as Escrituras e com a divina tradição, recebe a autêntica garantia de certeza do Magistério.
Se a libertação de interpretações da Bíblia de todo vínculo pré-estabelecido pelo próprio Deus se chama “progresso”, isto significa que tal progresso carrega consigo a heresia e a apostasia.
Como é bem frequente acontecer aos olhos de todos. Todo elemento é útil a mais adequada interpretação da Bíblia, certo! Mas o primeiro e que condiciona todos os outros, é aquele que Deus determinou. Nada de mais lógico e de mais óbvio.
Não é função de esta carta tirar as consequências práticas de tudo isto. A matéria bíblica não é, em fim de contas, uma matéria exotérica, na qual só os iniciados podem entrar com perfeita reverência e grande circunspecção.
Qualquer homem, hábil de pensamento e de lógica, colocado diante de uma prótase (por suposição, uma locução siríaca) e uma apódose (p. ex. a interpretação de uma passagem de Mateus), quando a primeira lhe é explicada (o que não é muito necessário; frequentemente basta um dicionário), tem condições de ver se é válida a relação de causa, de efeito afirmado entre os dois termos.
Não é o caso de assumir a presunção que o bom Dom Ferrante assumia quando dissertava sobre as estranhas palavras “substância” e “acidente”, delas extraindo a inexistência da peste. O que não era verdadeiro!
Insistimos sobre o argumento porque exactamente aqui está um foco de todo o fenómeno que leva o nome de “progressismo”.
5. As alegres “teologias”.
Parece que um bom progressista se deva pôr aqui na fila.
Eis o fato: se está construindo uma teologia para cada coisa, com propósito e sem propósito; do trabalho, do homem (antropologia), da técnica, das comunicações sociais, da comunidade, da morte de Deus (?), da esperança, da libertação e da revolução... Quase todas estas vozes são decoradas por notáveis volumes. Não há qualquer dúvida que tal proliferação é uma das maiores características do progressismo. Vamos ver se entendemos.
Antes de tudo, estas são verdadeiras “teologias”?
É “teologia” aquela em que as afirmações são demonstradas pelas fontes teológicas.
Quando as afirmações se baseiam sobre critérios de qualquer manifestação de prosa, não temos Teologia. Teremos tudo o que se quer, verdadeiro ou falso, mas certamente não teremos Teologia. Estas teologias, salvo em algum lugar e uma ou outra apenas, não são de facto “Teologia”. Nós devemos protestar contra o abuso de um termo que o trabalho dos séculos tornou venerando e absolutamente próprio.
Em segundo lugar deveremos nos colocar a pergunta se estas teologias contêm a verdade. Não está na intenção e no assunto desta nota, ocupar-nos do mérito, ou seja, dos “conteúdos” destas teologias ou auto-intituladas teologias. Limitamo-nos somente a fixar-lhes algumas características comuns.
- O esquema destas teologias segue os estados de ânimo que se vivem em nosso atormentado século e, portanto, têm mais um carácter de revelação da nossa situação concreta que um verdadeiro conteúdo objectivo e permanente.
- De facto dependem de axiomas caros a qualquer pensador do século XVIII ou XIX. Vão segundo o vento que sopra. O “sociologismo”, do qual já falámos e que domina a cena, derivando de um princípio posto pelo cristianíssimo e devoto Mounier, na verdade se inspira no marxismo, do qual a pobre gente já exauriu a experiência que, ao invés, não iluminou ainda os seus mais ou menos frágeis defensores.
Seria, talvez, esta a “Nova Theologia”? Podemos ouvir ainda hoje com perfeita clareza uma voz poderosa, modulada magnificamente pela oratória, que no Vaticano II se elevou para pedir – com outras coisas – uma “Nova Theologia”.
Não podíamos ver do nosso lugar o Padre a quem pertencia aquela magnífica voz. Passaram-se quase dez anos e não fui capaz de entender o que o Orador pretendia dizer propriamente com “Nova Theologia”.
Se as várias teologias das quais falámos, denominando-as “alegres”, são uma resposta à pergunta, é necessário declarar-se totalmente insatisfeitos.
Mas sobre o facto, apresentado como um fenómeno “que caracteriza o progressismo”, é outra resposta e bem mais importante.
Há uma valorização negativa de toda a teologia até 1962. E isto é grave. Com certeza.
A Teologia conduziu por tantos séculos este grande trabalho.
Tomou de todas as Fontes autênticas o pensamento da revelação divina e, e sem coação ou deformação (falamos do veio principal, não dos cantores extra corum), as conjugaram pacientemente, reduzindo-as a fórmulas acessíveis à investigação de nosso pensamento. Trabalho paciente de pesquisa, de combinação, de síntese. A tudo deu uma ordem que fosse mais acessível à lógica do aprendizado humano. Nada foi acolhido que não estivesse segundo a mente das Fontes.
Este trabalho imenso e precioso se chama “institucionalização”. Tudo aquilo que, documentadamente recolhido, procurou penetrar, servindo-se dos princípios do bom-senso humano, na medida em que eram conformes às fontes ou mesmo derivado delas, tudo isto constitui a parte “especulativa” da Teologia, sem a qual a parte acima descrita (positiva) não abriria suficientemente o seu significado à inteligência humana.
Entendamos bem: não acolheu as filosofias passageiras, mas o bom-senso humano, aquele assumido pelo próprio Deus no ato de estabelecer a Sua Revelação nas formas conceituais comuns a nós.
E eis o final interessante: tudo isto, pela seriedade do procedimento, ou seja, do método, não permite fazer aquilo que se quer, aquilo que convém, aquilo que segue as modas passageiras. Por isto a teologia especulativa tornou-se entediante; melhor é comprazer-se nas “variações” estranhas ao método.
Tudo isto repugna à Teologia. Não, pois, “Nova Theologia”, mas “anematizada Teologia”.
A Teologia, ocupando-se do pensamento de Deus comunicado aos homens, deve caminhar até o fim dos tempos e somente assim cumprirá a sua missão. Há nela ainda veios ainda inexplorados, que podem dar ocupação ao génio de muitos santos Tomás de Aquino. Mas convenhamos, será uma coisa séria!
A questão será esclarecida pelo que estamos para dizer no número seguinte.
Continua...
O progressismo - do Cardeal Giuseppe Siri [in «Rivista Diocesana Genovese», janeiro de 1975, pp. 22-36]
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