domingo, 5 de abril de 2009
O respeito é aquela atitude fundamental que, por assim dizer, se pode apontar como mãe de toda a vida moral
O Respeito - Mãe de Toda a Vida Moral
Por Dietrich von Hildebrand
O respeito é aquela atitude fundamental que, por assim dizer, se pode apontar como mãe de toda a vida moral, porque é ela que, antes de qualquer coisa, permite abeirar-se do mundo e abrir os olhos para os valores que encerra.
Os valores éticos são o que há de mais elevado entre todos os valores naturais. Acima da genialidade, da sensatez, da vida próspera, acima da formosura da natureza e da arte, acima da estrutura perfeita e da força de um Estado, estão a bondade, a pureza, a veracidade e a humildade do homem. Um ato de autêntico perdão, uma renúncia magnânima, um amor ardentemente abnegado encerram um significado e magnitude, uma transcendência e perenidade muito maiores do que todos os valores da nossa civilização. Os valores éticos são o âmago do mundo; a sua negação, o pior dos males: pior do que o sofrimento, a doença, a morte, pior do que a ruína das culturas mais florescentes.
Assim o reconheceram já todos os grandes espíritos, um Sócrates e um Platão, insistindo sempre em que é melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la. Mas é, sobretudo, no cristianismo que esta preferência pelos valores éticos toma o lugar de uma concepção fundamental.
Os valores morais são sempre valores da pessoa. Inerentes unicamente ao homem, só no homem se podem realizar. Uma coisa material, digamos uma pedra, uma casa, não pode ser moralmente boa ou má; nem pode sê-lo um ser vivo, como, por exemplo, uma árvore ou um cão. De modo semelhante, as invenções, as obras do espírito humano - os livros científicos, as obras de arte - também não podem ser sujeitos de valores morais: não lhes é dado serem leais, humildes, cordiais. Podem, quando muito, como sedimento do espírito humano, refletir indiretamente esses valores.
Só o homem, como ser livre, no uso da sua responsabilidade, pode ser moralmente bom ou mau na sua ação e nos seus negócios, no seu querer e no seu esforço, no seu amor e ódio, na sua alegria e tristeza, e nas suas atitudes fundamentais duradouras. Eis por que o ser do próprio homem, a personalidade penetrada de valores éticos - o homem humilde, puro, veraz, fiel, justo, dedicado - é mais transcendente do que a criação de bens culturais.
Mas de que modo chega o homem a participar desses valores morais? Acaso se formam por si sós, como a beleza do semblante, como a inteligência de que foi dotado, como um temperamento vivo? Não: têm origem em atitudes livres e conscientes; exigem uma colaboração essencial. A sua presença depende de uma dedicação consciente e livre. E quanto mais o homem se abrir aos valores éticos, quanto mais pura e incondicionalmente se dedicar a eles, tanto mais rico será também ele próprio em valores morais.
Um homem é incapaz de ser moralmente bom se estiver cego para o valor moral das outras pessoas, se não distinguir o valor inerente à verdade do não-valor inerente ao erro, se não entender o valor que há numa vida humana ou o não-valor de uma injustiça. Se alguém se interessa apenas por saber se determinada coisa o satisfaz ou não, se lhe é agradável, em vez de se interrogar sobre o seu significado, a sua beleza, a sua bondade, ou sobre o que vem a ser em si mesma; numa palavra, se não se interessa por saber se essa coisa é valiosa, é-lhe impossível ser moralmente bom.
A alma de todo o comportamento eticamente bom reside na dedicação àquilo que objetivamente valioso, no interesse por uma ação na medida em que esta encerra valores morais.
Suponhamos dois homens que testemunham uma injustiça sofrida por um terceiro. Um interessado apenas na sua satisfação pessoal, não se importa nada com o ocorrido, dizendo de si para si: antes ele do que eu. O outro, em contrapartida, prefere sofrer pessoalmente a injustiça a ver o terceiro padecê-la. Este é que tem um comportamento moralmente bom; aquele, um comportamento imoral, porquanto passa indiferente pela questão dos valores.
Fazer ou deixar de fazer o que é agradável, mas indiferente do ponto de vista dos valores, isso fica à discrição de cada um; se uma pessoa come ou não um prato saboroso, isso é lá com ela. O que é valioso, porém, exige de nós uma resposta afirmativa, assim como o não-valioso nos exige uma recusa.
Aqui já não se pode adotar um comportamento qualquer; impõe-se dar a resposta correta. Ajudar alguém que passa necessidade não é uma questão de gosto; quem não o faz torna-se culpado de ignorar o valor objetivo da ajuda. Só o homem que entende que há coisas belas e boas em si mesmas é que capta a exigência sublime dos valores, o seu apelo a deixar-se guiar por eles e a submeter-se à sua lei. Só esse homem é capaz de ultrapassar o seu horizonte subjetivo e de crescer moralmente, entregando-se ao que é significativo e vencendo a limitação de sempre perguntar si próprio o que é que o satisfaz. Só esse homem pode tornar-se propriamente portador de valores éticos.
Ora, isso só se verifica no homem respeitador. O respeito é aquela atitude fundamental que, por assim dizer, se pode apontar como mãe de toda a vida moral, porque é ela que, antes de qualquer coisa, permite abeirar-se do mundo e abrir os olhos para os valores que encerra. Por isso, quando se fala sobre as atitudes éticas fundamentais, isto é, sobre atitudes que fundamentam toda a vida moral, temos de falar em primeiro lugar do respeito.
O homem desrespeitoso, atrevido, é incapaz de toda e qualquer dedicação e subordinação. Ora se torna escravo da soberba, daquela contração do eu que o encerra em si mesmo e o mergulha em cegueira, levando-o a perguntar constantemente: Terá subido de ponto o meu prestígio, terá aumentado o meu poder?; ora se faz escravo da avidez com que reduz o mundo inteiro a uma mera ocasião de prazer. Por isso não consegue criar no seu íntimo aquele silêncio, aquela atitude receptiva que permite compreender o que há de peculiar e valioso em cada situação e em cada homem. Trata tudo com a impertinência e a indelicadeza de quem só repara em si mesmo e só se escuta a si mesmo, sem cuidar do mais que existe. Não sabe manter distância alguma em relação ao mundo.
Esta falta de respeito apresenta duas modalidades, conforme se baseie na soberba ou na avidez. A primeira, a falta de respeito que procede da soberba, é a insolência. O homem deste tipo, com uma sobranceria petulante, abeira-se de tudo sem se dar ao incômodo de entender a fundo coisa alguma. É o sabichão enfadonho que, sem mais, tudo julga descobrir e conhecer de antemão. É o homem para quem nada pode haver de superior a si mesmo, nada que ultrapasse o seu horizonte ou encerre algum segredo. É o homem a quem Shakespeare, no seu Hamlet, avisa que há mais coisas entre céu e terra do que sonha a vossa filosofia. É o homem ignorante, obtuso, do gênero daquele Wagner, fâmulo do Fausto, todo satisfeito por ver quanto progrediu.
Um homem destes não sabe nada da amplidão e da profundeza do mundo, do sentido misterioso e da plenitude incomensurável do belo e do bom, de que nos falam cada raio de sol e cada planta, e que se desvendam no sorriso inocente de uma criança e nas lágrimas de arrependimento do pecador. Para o seu olhar estreito, arrogante, o mundo achatou-se, tornou-se unidimensional, insípido, insignificante. Está cego para os valores e para o mundo. Passa por eles ignorando-os.
A outra modalidade de falta de respeito, a do ávido embotado, é igualmente cega para os valores. Só lhe interessa saber se uma coisa lhe é ou não agradável, se lhe dá prazer, se lhe traz alguma utilidade, se precisa dela. Em tudo se limita a ver o aspecto que se prende com o seu interesse ocasional, imediato. Tudo quanto há se cifra para ele num meio de atingir os seus fins egoístas. Gira eternamente no círculo da sua estreiteza, sem dele sair jamais. Daí o não conhecer também a felicidade profunda e verdadeira que só brota da dedicação a valores puros, do contacto com aquilo que em si é belo e bom.
Não se dirige com insolência a tudo o que existe, como o primeiro tipo, mas é como ele falto de abertura e de distância; porque, como apenas procura o que num dado momento lhe é útil e necessário, tudo passa por alto. Não logra jamais o silêncio interior, não consegue abrir-se, não se deixa presentear. Também ele vive num eu espasmodicamente contraído. O seu olhar resvala em tudo estupidamente, sem penetrar no verdadeiro sentido e valor de qualquer assunto. É também míope, e põe-se tão perto de tudo, que lhe escapa o conhecimento da verdadeira essência das coisas; deste modo, não concede a nada do que existe o espaço necessário para que se desenvolva na sua peculiaridade e plenitude, e o mundo fecha-lhe por seu turno a sua amplitude, profundeza e altura.
Quem é respeitador encara o mundo de uma maneira inteiramente diferente. Descontraído, sem espasmos, livre da soberba e da avidez, longe de encher o mundo com o seu eu, cede ao que existe a sua vez, para deixá-lo desenvolver-se na sua peculiaridade. Percebe a dignidade e a nobreza do que existe, simplesmente por existir em face do nada; percebe o valor que possui cada pedra, cada fio de água, cada talo de erva, enquanto é real, enquanto é criação que possui o seu ser próprio; percebe que cada coisa é o que é, que é algo independente da pessoa do observador e subtraído ao seu arbítrio, ao contrário de qualquer simples quimera ou aparência.
Eis por que, em vez de fazer da criação um simples meio para si e para os seus eventuais objetivos e fins egoístas, toma-a a sério em si mesma, dando-lhe a vez de se mostrar na sua peculiaridade. Cala-se para deixar falar o existente.
Esta atitude de abertura ao existente como tal, embebida da disposição de apreciar algo de mais elevado que o próprio arbítrio e prazer, faz do homem um vidente de valores. A quem se há de abrir a sublime beleza de um pôr-de-sol ou de uma Nona Sinfonia de Beethoven, a quem senão àquele que respeitosamente se abeira dela, abrindo-se interiormente ao respectivo ser que nela existe? Para quem há de reluzir o milagre que palpita na vida e desabrocha em qualquer planta, para quem senão para aquele que a contempla cheio de respeito? Em contrapartida, o mundo, cheio de sentido e de finalidades organizadas, nunca se desvenda na sua beleza e misteriosa dignidade a quem se limita a ver nele gêneros alimentícios ou um ganha-pão, isto é, qualquer coisa de que se pode servir e que lhe aproveita.
O respeito é o pressuposto imprescindível de todo o conhecimento profundo, e sobretudo de todo o deixar-se enriquecer e elevar pelos valores, de toda a subordinação à sua majestade. Assim no-lo pode confirmar o comportamento moral nas mais diversas esferas da vida.
Com efeito, a atitude fundamental de respeito está na base de todo o gênero de comportamentos éticos do homem para com o seu próximo e para consigo.
Só o indivíduo respeitador pode descobrir toda a magnitude e profundidade de cada homem enquanto pessoa espiritual, enquanto ser livre e responsável, o único entre os seres conhecidos que é capaz de compreender e comunicar-se com os outros seres, adotando perante as coisas uma posição cheia de sentido; o único destinado a tornar-se um recipiente de bondade, pureza, fidelidade, humildade. Como há de alguém abrir-se realmente a um outro, como há de sacrificar-se por ele, se não faz idéia da preciosidade e da abundância que se encerram numa alma humana, se não tem nenhum respeito por essa criação?
Além disso, esta atitude fundamental de respeito é pressuposto de todo o verdadeiro amor, sobretudo do amor ao próximo, porque nenhum amor é possível sem a compreensão dos valores que a pessoa traz consigo. O respeito pelo ser amado é parte constitutiva de cada amor. A capacidade de escutar a peculiaridade do outro, em vez de violar essa peculiaridade ao sabor dos próprios desejos, a capacidade de tomar a sério o ser amado e de lhe dar largas para que se possa expandir - todos estes elementos, que compõem a estrutura do amor autêntico, derivam do respeito.
Que seria do amor de mãe sem o respeito pela criança em formação, por todas as possibilidades de valor nela latentes, pelas preciosidades da sua alma? E não é nesta atitude fundamental de respeito que repousa a justiça para com os demais, a estima pelos seus direitos, pela liberdade das suas resoluções, bem como a limitação dos caprichos próprios e a compreensão das pretensões alheias? O respeito pelo vizinho é por sua vez o fundamento de toda a verdadeira convivência, da reta incorporação no matrimonio, na família, na nação, no Estado, na humanidade; é ainda o fundamento da submissão à autoridade legítima, do cumprimento dos deveres morais para com a comunidade como um todo e para com os membros individuais que a compõem. A falta de respeito rompe e corrompe a comunidade.
Mas o respeito é também a alma do reto comportamento ético noutras esferas da vida. É o que sucede, por exemplo, na esfera da pureza. O respeito pelo segredo da união conjugal, pela profundidade, delicadeza e caráter rotundamente definitivo dessa intimíssima entrega, constitui o pressuposto da pureza. É o respeito que, antes de mais, permite compreender como é pavoroso invadir abusivamente esse campo íntimo, compreender até que ponto há nessa invasão uma profanação e uma degradação de si mesmo e dos outros.
O respeito pelo milagre da origem da nova vida, na mais estreita união amorosa entre dois seres humanos, fundamenta o horror a todas as demolições da misteriosa conexão que existe entre o amor e a formação de um novo homem, permitindo compreender quanto elas são injuriosas, artificiais ou impertinentes.
Onde quer que se ponham os olhos, onde quer que no homem deva florescer a vida moral, o respeito é sempre o fundamento e simultaneamente um elemento essencial dessa vida.
Sem essa atitude fundamental, não há nenhum amor verdadeiro, nenhuma justiça, nenhuma consideração, nenhuma auto-educação, nenhuma pureza, nenhuma veracidade; mas, sobretudo, nenhuma profundidade.
Sem o respeito, o homem torna-se mesmo trivial e fútil, porque não entende a profundidade que se esconde nos seres, porque para ele não há mundo algum por trás ou acima do visivelmente palpável.
Por isso, também só para o homem respeitador se abre a esfera da religião. O sentido e o valor que se encerram no mundo como um todo, só aos seus olhos se revelam. Assim, o respeito surge como atitude ética fundamental, no início de todo o conhecimento, de toda a vida moral, de toda a religião. O respeito é, portanto, a base de todo o comportamento reto do homem para consigo mesmo, para com o próximo, para com todas as esferas da criação e sobretudo para com Deus.
Dietrich von Hildebrand
Fonte: Atitudes éticas fundamentais, Editora Quadrante. São Paulo, 1995, 3-12.