Desde os primórdios do Cristianismo houve, da parte de potentados temporais, a aplicação de medidas punitivas contra hereges.(1)
Isso porque, quer no Império Romano cristão do Ocidente, quer no Bizantino, e sobretudo nas nações cristãs que foram compondo a Cristandade Medieval, a Religião Católica, sua moral, suas leis e doutrinas respondiam em muito larga medida pela urbanização e sustentação da ordem civil.(2)
Isto não era novidade. Era um conceito comum em toda a Antiguidade. E nas civilizações pagãs, inclusive as menos decadentes punham em prática esse critério com largas doses de abuso e crueldade.
A heresia afigurava-se, pois, freqüentes vezes, como uma séria ameaça à ordem civil estabelecida. Tanto mais quanto quase todas as heresias, que assolaram a Igreja e a Cristandade naqueles séculos, revestiam-se de um caráter nitidamente anarquista e anti-social.(3)
Foi assim que a iniciativa da perseguição - com o fim de aplicação de penas temporais - aos hereges não partiu da Igreja, mas da sociedade civil.
Alguns dos últimos Imperadores romanos - antes da Idade Média, portanto - desterravam hereges, confiscavam-lhes os bens, mas, via de regra, só aplicavam a pena capital aos culpados de atos de violência contra os cristãos.(4)
A ameaça à ordem civil nas nações cristãs da Idade Média, representada pelas heresias, levou muitos monarcas a tomar a iniciativa de perseguir os hereges. Notadamente as heresias neomaniquéias que se desenvolveram no sul da França, nos séculos XII e XIII - os albigenses que assolaram progressivamente quase toda a Cristandade, puseram em contínuo sobressalto reis e imperadores.(5)
Vemos, pois, um Roberto o Piedoso, Rei da França, que, no século XI, solicita insistentemente ao Papa medidas punitivas contra os hereges. Temos ainda, no século XII, Henrique, Arcebispo de Reims e irmão do Rei da França, Luiz VII, que, por instâncias deste último, se apressa a perseguir os hereges cátaros. São os próprios hereges que apelam ao Papa e dão motivo a uma carta de Alexandre III ao Arcebispo de Reims, recomendando-lhe doçura e clemência para com aqueles.
Advogando, junto ao Papa, a causa da punição dos hereges pode ser citado o próprio Rei Luiz VII, encontrando ele, porém, resistências por parte de Alexandre III.(6)
Até mesmo monarcas temporariamente em oposição à Igreja - como Felipe Augusto, da França - ou francamente hostis e excomungados - como Henrique II, da Inglaterra, responsável pelo martírio de São Tomás Becket - se puseram a perseguir, julgar e punir hereges, com a finalidade de manter a ordem civil em seus respectivos Estados
Dentre os Imperadores alemães, o péssimo Frederico Barbarroxa - que alimentou motins, expulsou o Papa de Roma, zombou das excomunhões e suscitou antipapas - bem como seu neto, Frederico II de Hohenstaufen –– dificilmente igualável em ambição e maldade, ele mesmo excomungado –– foram dos mais aguerridos perseguidores dos hereges.(7) Foi mesmo este último que, no século XIII, decretou pela primeira vez a morte dos hereges na fogueira.(8)
Compreende-se, pois, perfeitamente, a quantos abusos o exercício desta indispensável tarefa –– qual seja, a preservação da ordem pública –– se prestava quando executada unicamente pelas autoridades civis.(9) Como poderiam estas últimas, sem a dignidade eclesiástica e os estudos necessários, emitir retamente juízos em matéria de fé e moral?
Em muitos casos, aqueles juízos ocultavam meras vinganças contra inimigos pessoais dos príncipes.
Foi justamente com o fim de coibir semelhantes abusos que a Santa Sé reivindicou para a Igreja a exclusividade do julgamento dos hereges. Nasceram assim os Tribunais da Inquisição.
Primeiramente, a Santa Sé recomendou aos bispos que, diretamente ou através de legados, se incumbissem de tal tarefa, colaborando desta forma com o poder temporal. Posteriormente a própria Santa Sé assumiu a direção geral da Inquisição, através de legados especiais, inquisidores, por ela nomeados, revestidos de poderes especiais e devendo atuar em íntima colaboração com os ordinários e com as autoridades temporais.
Sucessivos regulamentos foram sendo elaborados por bispos e inquisidores, tendo por objetivo estabelecer procedimentos afins com a justiça e a caridade.
Foi o Papa Gregório IX que, através de uma bula de 20 de abril de 1233, estabeleceu os últimos delineamentos da Inquisição Medieval, confiando-a preferencialmente à Ordem de São Domingos. Posteriormente também à de São Francisco.
Consciente de que sua missão primordial é a salvação das almas, a Igreja, na direção da Inquisição, buscava antes de tudo o arrependimento e a conversão dos hereges. Ou pelo a cessação de seu proselitismo subversivo, tendo em vista preservar os fiéis dos males da heresia. Nessas condições, nunca o réu era entregue ao poder civil - "braço secular", segundo a expressão corrente - para a execução da pena. A Igreja, maternalmente, os tomava sob sua proteção.
Apenas os hereges "contumazes" e nocivos à ordem pública eram entregues ao "braço secular". O Estado então executava a sentença, quase sempre de morte na fogueira.
Como se vê, a aplicação da pena capital aos hereges "contumazes" sempre esteve a cargo do poder civil, e disso nunca se ocupou a Igreja.
Histórica e cronologicamente distinta da Inquisição Medieval foi a chamada Inquisição espanhola. Nesta última, e já nos Tempos Modernos, Frei Tomás de Torquemada atuou como inquisidor para os reinos de Castela e Leão em fins do século XV, sendo nomeado para tal função em fevereiro de 14821.(10)
Ora, a historiografia costuma apresentar como principais marcos históricos, indicativos do fim da era medieval e início da época moderna, a. tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453, ou a invenção da imprensa por Guttenberg em 1445
Um exemplo pouco conhecido: o Tribunal da Inquisição foi o único na História em que à virtude da Justiça veio aliar-se a da misericórdia.
NOTAS
1. Cfr. Jean Guiraud. Inquisition Médievale, Bernard Grasset, Paris. 1923, pp 70 e ss., William Thomas Walsh Personajes de la Inquisición, Espasa Calpe S/A, Madrid, 1948, p.50.
2. Cfr. Lea, A Hislory of lhe bU/uisilioll ill lhe Middle Ages. I. p. 106, aplld. W. T. Walsh, op. cit., p.54-55.
3. Cfr. jean Guiraud, 01'. cit, pr. 72 c S5. 4 crI'. W. T. Walsh. op. cit., p. 50.
5. Cfr. Pe. Rohrbacher. Histoire Universelle de l'Église Calholique. Gaume Frères, Libraries. Paris. 1844. tomo XI, pp. 413-114.
6. Cfr. Jean Guiraud. op. cit., pp. 74-76.
7. Cfr. W. T. Walsh. op. cit, pr. 62-65.
8. Cfr. Bernardino Loca S.J . Manual de Historia Eclesiástica. Editorial Labor, Barcelona, 1942, pp. 418-419; Emanuel Barbier, Histoire Populaire de l'Église. Pe. Lethielleux, Paris, 1922.2ª parte, tomo II,. p. 92.
9. Cfr.. Jean Guiraud. op. cit., pp. 76 e ss.
10. Cfr. W. T. Walsh, op. cit., p. 184.