SEGUNDA PARTE
O CULTO EUCARÍSTICO
59. O mistério da santíssima eucaristia, instituída pelo sumo sacerdote Jesus Cristo e, por vontade sua, perpetuamente renovada pelos seus ministros, é como a súmula e o centro da religião cristã. Em se tratando do ápice da sagrada liturgia, julgamos oportuno, veneráveis irmãos, deter-nos um pouco, chamando a vossa atenção para esta importantíssima temática.
60. O Cristo Senhor, "sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque" (56) "tendo amado os seus que estavam no mundo",(57) "na última ceia, na noite em que foi traído, para deixar à Igreja, sua esposa dileta, um sacrifício visível, como exige a natureza dos homens, o qual representasse o sacrifício cruento que devia cumprir-se na cruz uma só vez, e para que a sua lembrança permanecesse até o fim dos séculos e nos fosse aplicada sua salutar virtude em remissão dos nossos pecados cotidianos... ofereceu a Deus Pai o seu corpo e o seu sangue sob as espécies de pão e de vinho e deu-os aos apóstolos então constituídos sacerdotes do Novo Testamento, para que sob essas mesmas espécies o recebessem, e ordenou a eles e aos seus sucessores no sacerdócio, que o oferecessem".(58)
61. O augusto sacrifício do altar não é, pois, uma pura e simples comemoração da paixão e morte de Jesus Cristo, mas é um verdadeiro e próprio sacrifício, no qual, imolando-se incruentamente, o sumo Sacerdote faz aquilo que fez uma vez sobre a cruz, oferecendo-se todo ao Pai, vítima agradabilíssima. "Uma... e idêntica é a vítima: aquele mesmo, que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes, se ofereceu então sobre a cruz; é diferente apenas, o modo de fazer a oferta".(59)
62. Idêntico, pois, é o sacerdote, Jesus Cristo, cuja sagrada pessoa é representada pelo seu ministro. Este, pela consagração sacerdotal recebida, assemelha-se ao sumo Sacerdote e tem o poder de agir em virtude e na pessoa do próprio Cristo;(60) por isso, com sua ação sacerdotal, de certo modo, "empresta a Cristo a sua língua, e lhe oferece a sua mão".(61)
63. Também idêntica é a vítima, isto é, o divino Redentor, segundo a sua humana natureza e na realidade do seu corpo e do seu sangue. Diferente, porém, é o modo pelo qual Cristo é oferecido. Na cruz, com efeito, ele se ofereceu todo a Deus com os seus sofrimentos, e a imolação da vítima foi realizada por meio de morte cruenta livremente sofrida; no altar, ao invés, por causa do estado glorioso de sua natureza humana, "a morte não tem mais domínio sobre ele"(62) e, por conseguinte, não é possível a efusão do sangue; mas a divina sabedoria encontrou o modo admirável de tornar manifesto o sacrifício de nosso Redentor com sinais exteriores que são símbolos de morte. Já que, por meio da transubstanciação do pão no corpo e do vinho no sangue de Cristo, têm-se realmente presentes o seu corpo e o seu sangue; as espécies eucarísticas, sob as quais está presente, simbolizam a cruenta separação do corpo e do sangue. Assim o memorial da sua morte real sobre o Calvário repete-se sempre no sacrifício do altar, porque, por meio de símbolos distintos, se significa e demonstra que Jesus Cristo se encontra em estado de vítima.
64. Idênticos, finalmente, são os fins, dos quais o primeiro é a glorificação de Deus. Do nascimento à morte, Jesus Cristo foi abrasado pelo zelo da glória divina e, da cruz, a oferenda do sangue chegou ao céu em odor de suavidade. E porque este cântico não havia de cessar, no sacrifício eucarístico os membros se unem à Cabeça divina e com ela, com os anjos e os arcanjos, cantam a Deus louvores perenes, (63) dando ao Pai onipotente toda honra e glória.(64)
65. O segundo fim é a ação de graças a Deus. O divino Redentor somente, como Filho de predileção do Eterno Pai de quem conhecia o imenso amor, pôde entoar-lhe um digno cântico de ação de graças. A isso visou e isso desejou "rendendo graças"(65) na última ceia, e não cessou de fazê-lo na cruz, não cessa de realizá-lo no augusto sacrifício do altar, cujo significado é justamente a ação de graças ou eucaristia; e porque isso é "verdadeiramente digno e justo e salutar".(66)
66. O terceiro fim é a expiação e a propiciação. Certamente ninguém, fora Cristo, podia dar a Deus onipotente satisfação adequada pelas culpas do gênero humano; ele, pois, quis imolar-se na cruz, "propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas ainda pelos de todo o mundo".(67) Nos altares se oferece igualmente cada dia pela nossa redenção, afim de que, libertados da eterna condenação, sejamos acolhidos no rebanho dos eleitos. E isso não somente por nós que estamos nesta vida mortal, mas ainda "por todos aqueles que repousam em Cristo, os quais nos precederam com o sinal da fé, e dormem o sono da paz",(68) pois, quer vivamos, quer morramos, "não nos separamos do único Cristo".(69)
67. O quarto fim é a impetração. Filho pródigo, o homem malbaratou e dissipou todos os bens recebidos do Pai celeste, por isso está reduzido à suprema miséria e inanição; da cruz, porém, Cristo, "tendo em alta voz e com lágrimas oferecido orações e súplicas... foi ouvido pela sua piedade",(70) e nos sagrados altares exercita a mesma mediação eficaz; a fim de que sejamos cumulados de toda bênção e graça.
68. Compreende-se, portanto, facilmente, porque o sacrossanto concílio de Trento afirma que com o sacrifício eucarístico nos é aplicada a salutar virtude da cruz para a remissão dos nossos pecados cotidianos.(71)
69. Também o apóstolo das gentes, proclamando a superabundante plenitude e perfeição do sacrifício da cruz, declarou que Cristo com uma só oblação, tornou perfeitos para sempre os santificados.(72) Os infinitos e imensos méritos desse sacrifício, com efeito, não têm limites: estendem-se à universalidade dos homens de todo lugar e de todo tempo, porque, nele, o sacerdote e a vítima é Deus Homem; porque a sua imolação como a sua obediência à vontade do Eterno Pai foi perfeitíssima, e porque foi como Cabeça do gênero humano, que ele quis morrer. "Considera como foi tratado o nosso resgate: Cristo pende do madeiro; vê a que preço comprou; ...derramou o seu sangue, comprou com o seu sangue, com o sangue do Cordeiro imaculado, com o sangue do unigênito Filho de Deus... Quem compra é Cristo, o preço é o sangue, a aquisição é todo o mundo".(73)
70. Esse resgate, porém, não teve logo o seu pleno efeito: é necessário que, depois de haver resgatado o mundo com o elevadíssimo preço de si mesmo, Cristo entre na real e efetiva posse das almas. Conseqüentemente, a fim de que, com o beneplácito de Deus, se cumpra para todos os indivíduos e para todas as gerações até o fim dos séculos, a sua redenção e salvação, é absolutamente necessário que cada um tenha vital contato com o sacrifício da cruz, e assim os méritos que dele derivam lhe sejam transmitidos e aplicados. Pode-se dizer que Cristo construiu no Calvário uma piscina de purificação e de salvação e a encheu com o sangue por ele derramado; mas se os homens não mergulham nas suas ondas e aí não lavam as manchas de sua iniqüidade, não podem certamente ser purificados e salvos.
71. A fim de que, pois, os pecadores individualmente se purifiquem no sangue do Cordeiro, é necessária a colaboração dos fiéis. Se bem que, falando em geral, Cristo haja reconciliado com o Pai por meio da sua morte cruenta todo o gênero humano, quis todavia que todos se aproximassem e fossem conduzidos à cruz por meio dos sacramentos e do sacrifício da eucaristia, para poderem conseguir os frutos salutares por ele granjeados na cruz. Com esta atual e pessoal participação assim como os membros se configuram cada dia mais à sua Cabeça divina, assim também a salvação que vem da Cabeça flui para os membros, de modo que cada um de nós pode repetir as palavras de são Paulo: "Estou crucificado com Cristo na cruz, e vivo não mais eu, mas Cristo vive em mim".(74) Como realmente, em outra ocasião, de propósito e concisamente dissemos, Jesus Cristo enquanto morria na cruz, deu à sua Igreja, sem nenhuma cooperação da parte dela, o imenso tesouro da Redenção; quando, ao invés, se trata de distribuir tal tesouro, não só participa com sua esposa incontaminada desta obra de santificação, mas deseja que tal atividade jorre, de certo modo, por ação dela.(75)
72. O augusto sacrifício do altar é insigne instrumento para aos crentes distribuir os méritos derivados da cruz do divino Redentor: "toda vez que se oferece este sacrifício, cumpre-se a obra da nossa redenção".(76) Isso, porém, longe de diminuir a dignidade do sacrifício cruento, dele faz ressaltar a grandeza, como afirma o concílio de Trento,"(77) e lhe proclama a necessidade. Renovado cada dia, admoesta-nos que não há salvação fora da cruz de nosso Senhor Jesus Cristo;(78) que Deus quer a continuação deste sacrifício "do surgir ao pôr-do-sol", (79) para que não cesse jamais o hino de glorificação e de ação de graças que os homens devem ao Criador, visto que têm necessidade de seu contínuo auxílio e do sangue do Redentor para redimir os pecados que ofendem a sua justiça.
fonte:vaticano