A liturgia foi um dos grandes temas que mobilizaram os católicos
no século XX. O desenvolvimento do movimento litúrgico na Bélgica,
França e inclusive no Brasil, acendeu animosidades entre aqueles
que visavam uma liturgia mais viva e aqueles que defendiam a
permanência daquela estabelecida por Pio V, na esteira do Concílio de
Trento. Podemos dizer que o Concílio Vaticano II foi um dos momentos
mais importantes do século XX sobre a questão litúrgica, já que, com
a sua Constituição Sacrosanctum Concilium, lançava novo olhar sobre
ela. As lutas interpretativas em torno desse documento, e não só dele,
mas de todos os textos conciliares, levaram ao que alguns denominam de
“abusos” na prática litúrgica, apontando assim para um olhar negativo
em relação a todo o Concílio, o que levou aos sérios afastamentos,
até ao cisma de Marcel Lefebvre e seus seguidores em 1988. Para o
arcebispo, a missa tridentina era a “missa de sempre” e assim deveria
continuar. A fim de aproximar-se desses grupos no seio da catolicidade,
J. Ratzinger, que acompanhou a criação da Comissão Ecclesia Dei,
especialmente constituída para dialogar com os grupos tradiciona-
listas, publicou, em 2007, o motu proprio de Bento XVI Summorum
Pontificum, possibilitando, desde então, que a missa tridentina pudesse
ser realizada sem a prévia permissão do bispo, como era anterior-
mente acordado. Mais uma vez não faltaram reações exaltadas.
Enquanto uns comemoravam o documento, pela renovada possi-
bilidade de terem a missa tridentina sem precisarem seguir burocracia,
que não raramente não resultava como viam no documento de Bento
XVI mais um ato de traição ao Concílio e sua carga de renovação.
Para incendiar ainda mais a conjuntura, em mais um passo de apro-
ximação, o Papa levantou as excomunhões dos bispos lefebvristas em
janeiro passado. Uma defesa do documento e da atitude de Ratzinger
pode ser lida no livro do consultor da Congregação para a Doutri-
na da Fé, Nicola Bux, La riforma di Benedetto XVI: la liturgia tra
innovazione e tradizione. Prefaciado pelo célebre jornalista Vittorio
Teocomunicação, Porto Alegre, v. 39, n. 1, p. 130-134, jan./abr. 2009
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Messori, Bux trata dos significados da liturgia e das batalhas travadas
em torno dela.
Nos capítulos 1 e 2 – La sacra e divina liturgia e A chi ci avviciniamo
con il culto divino – Bux dá sua compreensão do que significa a liturgia,
quais seus papéis, sua relação com a sacralidade. Para ele, deve-se
retomar a ideia de que existe uma continuidade entre a Igreja, que nasce
do Vaticano II, e aquela que existe antes dele. Deve-se olhar para o
passado, recebê-lo e renová-lo. Isso seria a verdadeira reforma. Assim,
afirma que “senza critica orgogliosa e presunzione aspra, non scaricando
il passato ma sopportandolo in continuità e così rinnovandolo”.
No capítulo 3 – La Battaglia sulla riforma liturgica – o autor
entra no cerne da discussão, ao tratar dos conflitos em torno da questão
e dos significados das posições de Bento XVI sobre o tema. Citando
Ratzinger e o motu proprio Summorum Pontificum, Bux afirma que a
sua promulgação visa à reconciliação com os lefebvristas e a superar a
ruptura operada no processo de reforma litúrgica, que contrapunha o novo
rito ao antigo. A fim de defender a perspectiva de que na liturgia existe
crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura, o autor traz palavras de
Bento XVI e despende algumas páginas analisando a encíclica de Pio
XII Mediator Dei, o documento sobre liturgia mais importante antes
do Vaticano II. No documento pode-se perceber, segundo Bux, que “la
tradizione è necessaria e l’innovazione ineluttabile, ed entrambe sono
nella natura del corpo ecclesiale come del corpo umano”. O autor trata
das contendas nascidas da promulgação do Novus Ordo Missae por Paulo
VI, em 1969, da chamada “intervenção Ottaviani” e de algumas atitudes
que considera desvirtuamentos do projeto original da Sacrosanctum
Concilium e do Papa Montini.
No quarto capítulo – La tregua del papa – Bux trata do motu
proprio Summorum Pontificum e traz um pouco da história dos missais.
Segundo ele, o documento teve três escopos centrais: favorecer a
reconciliação interna da Igreja; oferecer a todos a possibilidade de
participar da “forma extraordinária”, garantir o direito ao povo de
Deus ao uso da “forma extraordinária”. O documento viria a corrigir a
ideia, tanto de progressistas quanto de tradicionalistas, de que o missal
romano, publicado pela última vez em 1962, e o missal de Paulo VI
estavam em contraposição. Bento XVI afirmava que eram “due stesure”
do desenvolvimento de um mesmo rito. Dessa forma, o Papa reafirmava
sua, podemos dizer, hermenêutica da continuidade, tema tratado pela
primeira vez por ele em um discurso aos cardeais, no Natal de 2005.
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Assim afirma no documento: “Non c’è nessuna contraddizione tra l’una
e l’altra edizione del messale romano. Nella storia della liturgia c’è
crescita e progresso, ma nessuna rottura. Cio che per le generazioni
anteriori era sacro, anche per noi resta sacro e grande e non può essere
improvvisamente del tutto proibito o, addirittura, giudicado dannoso.
Ci fa bene a tutti conservare le ricchezze che sono cresciute nella fede
e nella preghiera della Chiesa, e di dar loro il giusto posto”. Para Bux,
a atitude do Papa vem no sentido de se achar o equilíbrio: primeiro,
inserir novamente na unidade os tradicionalistas, especialmente os
seguidores de Lefebvre e, segundo, demonstrar aos “inovadores” que
a liturgia não é propriedade privada e que não deve ser manipulada
ao livre gosto. Segundo o autor, logo após a promulgação do motu
próprio, surgiram algumas interpretações equivocadas, como aquelas
que afirmam que a atitude do Papa se deu apenas para aproximar os
tradicionalistas. Para Bux, ao contrário, o documento visava demonstrar
que a antiga liturgia jamais tinha sido abolida e que “l’aggiornamento
di Papa Giovanni del messale del 1962 non può essere contrapposto a
quello di Paolo VI avvenuto otto anni dopo, ma tenuto insieme come una
ricchezza: appartiene alla regula fidei come espressione straordinaria e
non eccezionale, accanto a quella ordinaria e normale”.
No capítulo 5 – La crisi ecclesiale e il crollo della liturgia – Bux
trata de alguns aspectos crise pós-conciliar no campo litúrgico. O
estudioso faz uma defesa ampla do motu proprio Summorum Pontificum.
Para o teólogo, a crise que se abateu sobre a liturgia foi devido ao fato
de que, no centro da ação litúrgica, frequentemente, não está mais Deus
e a adoração a Ele, mas os homens e a comunidade. A crise começa,
quando a liturgia deixa de ser vivida como adoração em Jesus Cristo na
Trindade e como celebração de toda a Igreja e se aprofunda, quando se
extravia o espírito da liturgia, reduzindo-a a uma autocelebração de uma
comunidade particular. Para corroborar sua afirmação, Bux cita palavras
retiradas das memórias pessoas de Joseph Ratzinger: “Sono convinto che
la crisi ecclesiale in cui oggi ci troviamo dipende in gran parte dal crollo
della liturgia”. A tese central do capítulo é que o motu proprio de Bento
XVI significa mais um ato de Bento XVI em prol da hermenêutica da
continuidade do Vaticano II. Se, por um lado, os tradicionalistas afirmam
que a Igreja pré-conciliar foi traída pelo Concílio, os progressistas
defendem que a Igreja pós-conciliar traiu o Concílio. Ambos os grupos
partem, assim, de uma interpretação descontínua do Vaticano II. Bux
nos diz: “L’unico modo di capire il motu proprio è quindi di inquadrarlo
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come ulteriore sviluppo in continuità con tutta la tradizione della
Chiesa [...] nel senso della continuità della comunione cattolica anche
in ambito liturgico, tra tradizione e innovazione”. Dessa forma, o missal
de Paulo VI (1969) constitui uma renovatio do missal promulgado por
Pio V em 1570.
No capítulo VI – Come incontrare il mistero – Bux inicia com uma
persuasiva afirmação: perdeu-se o senso da liturgia, porque foi perdido
o senso da presença de Deus entre nós. O autor deseja trazer elementos
específicos para uma vivência litúrgica que respeite seus elementos mais
profundos. Despende algumas páginas sobre o “serviço sacerdotal”
onde afirma que “la santa messa è come un’opera musicale scritta
da un autore: va eseguita con fedeltà e non interpretata”. Em outra
seção, fala da participação dos fiéis. Segundo o autor, o culto ca-
tólico passou da adoração de Deus ao exibicionismo do padre, dos
ministros e dos fiéis, com a piedade sendo abolida e liquidada pelos
liturgistas como devocionismo, negando formas espontâneas de devoção
de piedade.
O último capítulo – Un nuovo movimento liturgico – passa a ser
um clamor por uma nova forma de pensar a liturgia, não mais como
uma ruptura, mas sim como algo orgânico e que respeite o passado.
Para Bux, a renovação conciliar da liturgia tem ainda riquezas nãoexploradas,
que necessitam ser colocadas em andamento, além de
correções e integrações. O autor chega a sugerir algumas formas de
reverter a “confusão” que se instalou na liturgia: a instituição de “visitas
apostólicas” para a liturgia, já que, devido à crise de obediência, os
documentos da Congregação para o Culto Divino ficam sem a devida
acolhida; que os reitores e diretores das faculdades teológicas estejam
conscientes das “deformações” e do “modo reto de celebrar”; promover
encontro de sacerdotes e seminaristas dos movimentos eclesiais, que
são atentos à disciplina da Igreja; estudar o Magistério eclesiológico e
litúrgico de Pio XII (encíclicas Mystici Corporis e Mediator Dei) e a
tradição litúrgica do Oriente. Bux tem como documento-chave de suas
considerações a Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis.
A visão de liturgia e de Igreja que é trazida por Nicola Bux, nessa
obra, é aquela orgânica, ligada estritamente ao âmbito eclesial e que
reporta inúmeras vezes ao próprio pensamento de Bento XVI. O que
podemos entrever em suas linhas é uma defesa da conduta seguida
por Ratzinger na sua aproximação com os grupos tradicionalistas,
principalmente com os padres da Fraternidade Sacerdotal São Pio X
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(FSSPX), e uma estratégia bem-pensada, contudo não tão bem-executada
(vide a “questão Richard Willianson”): a de pôr mais uma pedra sobre
a hermenêutica da ruptura (base das gramáticas tradicionalistas e
progressistas), a principal responsável, segundo o Pontífice, da chamada
“crise pós-conciliar”. A partir da liturgia, Bento XVI coloca mais uma
pedra, senão a mais pesada delas.
Rodrigo Coppe Caldeira
PUC-Minas/ISTA