Cardeal deliberou sobre a possível deposição de João XXIII | |
Publicamos aqui o artigo de Celso Alcaina, um dos colaboradores do cardeal Alfredo Ottaviani no Santo Ofício, atual Congregação para a Doutrina da Fé. O texto foi publicado no sítio Religión Digital, 20-01-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o texto. Sem entrar na Praça de São Pedro, me protegi percorrendo o braço esquerdo da colunata de Bernini. Chuviscava naquele 03 de fevereiro. Na recôndita Piazza del Sant'Uffizio surge, imponente, o renascentista Palazzo del Sant'Uffizio. Em frente, o convento dos Agostinianos Recoletos. Um amplíssimo portão coroado por uma sacada do séxulo XVI. Umas escadas largas de granito que conduzem à "loggia" que circunda o claustro medieval. Sandro, o zelador, me apresenta a Dom Agustoni, que me trata de colega. Sem chamar, me introduz em um escritório não muito amplo, uns 30 m2. "¡Arriba España!". Sua voz é forte, segura, amigável. Sorri com o olhar um pouco perdido. Depois, descobrirei que ele está quase cego. Sua cegueira não lhe impedirá um minucioso e delicado trabalho no departamento mais sensível do Vaticano. Também não lhe privará do trato direto com cada um dos seus colaboradores. Irá nos chamar pelos nossos nomes. Irá nos reconhecer só pela respiração, ao cruzar conosco nos corredores e escritórios. Prescindirá de intermediários. Tem ao alcance de sua mão uma bateria de botões. Correspondem ao telefone interno de cada oficial, uns 30 no total. Muitas vezes, durante os 18 meses seguintes, ele me chamará no 4881. Eu lhe traduzirei do espanhol ou português. Com simplicidade, ele me pedirá conselho sobre os "nihil obstat" a candidatos ao bispado e sobre problemas diversos, às vezes muito delicados, prazerosos os vergonhosos. Em mais de uma ocasião, Ottaviani se definiu como o "carabiniere della Chiesa". E o foi, a partir de seu quartel inquisitorial durante 33 anos. Pio XI, em 1935, confiou-lhe a ortodoxia diante do "desvio" modernista e o avanço do ateísmo marxista. Primeiro como "assessor", o segundo a bordo. Depois, como máximo responsável do "Supremo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição". Mais tarde, se chamaria simplesmente "Santo Ofício". O Concílio Vaticano II adoçaria o nome: "Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé". Ele havia sido "assessor" da Secretaria Papal com o Papa Ratti. Pio XII temia Ottaviani, ao mesmo tempo em que o considerava o bastião da Igreja. Conheciam-se há muito tempo. Haviam nascido na mesma rua do Trastevere, a via Vascellari. Pacelli, alguns anos antes, de "boa família". Ottaviani, o penúltimo de 12 irmãos, teve como pai um humilde padeiro. Sua mãe, nas horas livres, confeccionava casacos por encomenda. Seus irmãos não passaram da escola primária. Ottaviani estava orgulhoso de suas origens. Pe. Plácido Fernández, o reitor do Colégio Espanhol, foi enigmático. No refeitório do Altemps, se aproximou de mim: "Dom Parente quer te ver. É o assessor do Santo Ofício, o segundo de Ottaviani". Fui ao Palazzo. "O Concílio quer internacionalizar a Cúria. Pensamos em ti. Teu prelado, o cardeal Quiroga, já deu seu assentimento. Certamente, faz de ti um panegírico. O cardeal deseja te ver assim que tenhas defendido tua tese bíblica. Dar-te-emos o grau máximo no escalão: ajudante de estudo. Aceitas?". Ele elogiou Jozef Tomko, o Chefe de Escritório da Seção Doutrinal, ao qual eu seria confiado com outros seus novos contratados de quatro continentes. Agora, eu estava diante do grande Ottaviani, o máximo inquisidor moderno, o terror de teólogos, a cabeça e o crivo de bispos, o mentor de dois Papas, o político instigador do "Pacto de Latrão" que, em 1929, encerrou os 60 anos de desencontro com a República Italiana, o único firme candidato ao papado da facção perdedora no Conclave que preferiu Roncalli, o eloquente orador no Concílio, o canonista autor do texto "Direito Público Eclesiástico", estudado em quase todos os seminários. Sua presença, sua vestimenta, sua conversa, nada o distinguia de um padre bonachão, amável, sem distintivos pontificais. Botões vermelhos em sua batina. "Arriba España". Sabia pouco mais em espanhol. E falou-me de política. Admirava Franco, era entusiasta do nosso nacional-catolicismo. Ele havia visitado a Espanha. Lembrava com ternura o cardeal Segura, maltratado pelos vermelhos. "A Espanha é a reserva da Igreja. Não como outros países, por exemplo, a Holanda". Entregou-me uma carta selada e lacrada. "É tua nomeação pontifícia", disse-me. "Deves entregá-la nas mãos do cardeal Fernando Quiroga. Esperamos-te neste mês de fevereiro". Despedi-me. Poucos sabem que Ottaviani, desde sempre, tinha outras ocupações, outras paixões, às margens de sua função de cérbero da Igreja. O "Pontifício Oratório de São Pedro" foi a menina de seus olhos durante toda a sua vida. Tratava-se de um colégio para crianças do Trastevere romano, com sede em um anexo do Palazzo del Sant'Uffizio. Ao seu oratório, dedicava os finais de semana e suas horas de folga. A essa instituição, desviava boa parte das rendas do importante patrimônio do Santo Ofício que o cardeal administrava sem travas. O oratório esteve presente nas negociações com o governo de Mussolini. Com efeito, foi Ottaviani quem sugeriu que o Palazzo del Sant'Uffizio não fosse formalmente incluído na Cidade Estado do Vaticano, apesar de estar dentro de seus muros. Os Pactos Lateranenses qualificam o Palazzo del Sant' Uffizio como extraterritorial, assim como as três basílicas maiores e a residência de Castel Gandolfo. O motivo? Ottaviani alertou o cardeal Gasparri, plenipotenciário do Papa, sobre um eventual perigo para a educação das crianças do Trastevere. A nova República Italiana, agora reconhecida, poderia dificultar ou proibir o acesso ao novo Estado da Cidade do Vaticano. Isso não aconteceria se o Palazzo era meramente extraterritorial, por analogia com os outros imóveis anônimos. Um mês depois da célebre entrevista, voltei a Roma e me estabeleci no Pontifício Colégio Espanhol, o Palazzo Altemps, da Via Sant'Apolinare 8. Não por muito tempo, porque o cardeal pensou em mim e me animou a aceitar um apartamento de propriedade do Santo Ofício, localizado na Via di Pietro Venturi, por meio de uma renda testemunhal. Não só. Apenas um mês depois, me chamou. "Deverás fazer raízes em Roma e ter um automóvel, como a maior parte dos teus companheiros". Quando lhe disse o que ele esperava, me surpreendeu paternalmente: "Não importa. Vai de minha parte a Dom Masci (era o administrador, mestre de casa, assim era chamado) e que ele te dê quanto tu precises para comprar um bom carro. Devolverás o empréstimo quando possas e como queiras". Duas semanas depois, tirava minhas primeiras férias de verão com meu flamante Volkswagen 1600. Esse era Alfredo Ottaviani. Não só o martelo dos heterodoxos, reais ou supostos. Estava certo de tudo. Os dogmas eram indiscutíveis, sem matizes. Concebia a Igreja como uma pirâmide hierárquica, bem tratada, sociedade perfeita, com poderes divinos. O Primado Romano tinha poderes absolutos e prevalentes. Além disso, era infalível. Assim havia sido instituído por Jesus de Nazaré. Vivia isso, havia ensinado isso no Ateneo Lateranense e havia escrito isso em seu livro. Era doutor em Direito Eclesiástico. Teologia? A de Denzinger. Quem obedece não se equivoca, mandavam os Concílio de quase dois milênios, o dogma, que por isso é dogma. Ele não podia admitir de bom grado o revisionismo do Vaticano II. Considerava-se um importante órgão do Primado, do Papado. Sua responsabilidade lhe havia levado a deliberar sobre a possível deposição do Papa Roncalli, com base na doutrina de teólogos salmantinos. A seu ver, Roncalli beirava a heterodoxia. E sua Igreja precisava de uma cabeça sadia que encarnasse o Primado projetado pelo Vaticano I. Sofria com as mudanças que ele não conseguia deter. Era Era autenticamente espiritual. Depois de meio ano na Via Pietro Venturi, Ottaviani me ofereceu um apartamento dentro do mesmo Palazzo, primeiro piso. Aceitei. Ele morava dois pisos acima. Ottaviani tinha por costume rezar o Breviário passeando pelo terraço do Palazzo, ático, quinto piso. Não lia, sabia o ofício de memória. Recitava-o em voz alta, sempre com algum oficial. Chamava-me algumas vezes, quando os habituais Casazza ou Agustoni não podiam acompanhá-lo. Jamais vi Ottaviani enfadado. Jamais me repreendeu. E acredito que eu o mereci mais de uma vez. Paulo VI, aconselhado por novos banqueiros – leia-se Marcinkus –, decidiu unificar as diversas Administrações da Santa Sé. Isso significava suprimir a autonomia econômica do Santo Ofício. Também a de outros dicastérios. Não a do "Propaganda Fide". Conheci a decepção de Ottaviani. Foi infrutífera uma audiência especial com o Papa para que desistisse desse propósito. Em uma conversa com poucos oficiais, Ottaviani manifestou sua profunda preocupação com o Oratório de São Pedro e também por ter que prescindir de ajudas econômicas secretas e inconfessáveis. Algumas dessas ajudas eram furtadas do próprio Papa. Não era pelo Papa pessoalmente. Era pelos assistentes que podiam conhecer e difundir o que deve ser ocultado a todo custo. Um segredo deixa de sê-lo quando sai de duas pessoas. Eclesiásticos degenerados, alguns de altíssimo cargo, em vias de recuperação, enclaustrados por seus crimes, ou castigados com remoção de cargo e de lugar. Compensações econômicas por reais abusos sexuais, ou de outra índole, escondidos da opinião pública. Seguimento, patrocínio e colaboração com o partido democrata-cristão do Pe. Sturzo. Identificação, marginalização e perseguição dos comunistas, inimigos da Igreja. Pude vê-los casualmente. O armário não estava fechado. Dentro, havia centenas de pastas desordenadas com milhares de fichas. Perguntei a um colega veterano. "São as fichas de militantes comunistas do Partido de Togliati. Devemos descê-las para o Arquivo". Eram os anos do bipartidismo italiano. Os comunistas pisavam nos calcanhares dos democrata-cristãos. Estes buscavam o apoio do Vaticano. Sem esse apoio, teriam perdido. A cruzada jesuítica, impulsionada por Pio XII, havia declinado. Mas o Decreto de 1949, redigido por Ottaviani, continuava vigente. O Comunismo era perverso e condenável. Excomunhão automática aos católicos que se filiassem ou colaborassem. Ottaviani não podia, não queria afrouxar. Mas Ottaviani teve que tolerar, mais do que aceitar, o Concílio Vaticano II. Também vi os volumosos "esquemas" elaborados no Santo Ofício sob os auspícios e a ideologia do Santo Ofício. Estavam prontos para serem propostos aos Padres Conciliares. Convencido como estava de sua ortodoxia e de sua oportunidade, o cardeal esperava sua consequente aprovação. Todos sabemos o que aconteceu. Desde o primeiro dia, após o discurso do cardeal francês Liénart, o Concílio derivou em um motim contra a Cúria personificada em Ottaviani. Foi vaiado, zombado. Calou-se, mas não cedeu. Só lhe restou a sensação de que o Concílio havia se equivocado. A doutrina conciliarista do século XV já havia sido definitivamente abolida por Pio IX e seu Vaticano I. A Igreja era una, romana, dogmática, divina e "semper idem". Paulo VI decidiu se desembaraçar de Ottaviani. Sabia que Ottaviani não executaria o Concílio sem uma dura luta cotidiana. Montini idealizou a aposentadoria forçada generalizada aos 75 anos, 80 anos para entrar no Conclave. Comentava-se entre nós. O Papa hamlético resolveu um problema particular com uma norma geral. Ottaviani, 78 anos, renunciou. Sobreviveria 11 anos à sua defenestração. Continuei como vizinho seu no Palazzo durante outros sete anos. Assistia às reuniões das quartas-feiras como membro da Plenária. Seguro de si mesmo, fiel a suas convicções, a seus amigos, a seus jovens do oratório, à sua Igreja. Com Montini falecido, Ottaviani sem mandado, um novo Papa integrista chegou da Polônia resistente e martirizada. O Concílio é freado pela Cúria, a fiel poderosa filha de Ottaviani. Seper, seu sucessor, um croata frágil, inculto e inexperiente, deu de ombros ou se deixou enredar pelos neoconservadores. E veio Ratzinger, que faz bem para Ottaviani, meu superior, meu amigo. | |
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