domingo, 20 de fevereiro de 2011

A Teologia da Liturgia, por Card. Ratzinger :1. O Sacrifício colocado em questão. 2. Os princípios da pesquisa teológica. 3. Sacrifício e Páscoa. 4. Amor, o coração do sacrifício. 5. O novo templo

A Teologia da Liturgia, por Card. Ratzinger - Parte I



Pax et bonum!

Com muito prazer, depois de algumas semanas de trabalho, começarei a apresentar a minha tradução da conferência sobre Teologia Litúrgica dada pelo Cardeal Joseph Ratzinger nas famosas Journees Liturgiques de Fontgombault, na França, em 2001.
Este texto é muito citado hoje em dia. Acredito que valeria a pena traduzi-lo, colocá-lo à disposição dos fiéis de língua portuguesa. Acredito ser a primeira tradução integral do mesmo.
Como fontes utilizei uma versão em inglês e uma em francês:
http://www.oriensjournal.com/11librat.html
http://www.ratzinger.us/modules.php?name=News&file=article&sid=120
Postá-la-ei de modo seriado, para não colocar tudo numa postagem muito grande.
Desejo boa leitura!


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A TEOLOGIA DA LITURGIA

Uma conferência de Sua Eminência Joseph Cardeal Ratzinger, Prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, proferida durante as Journees liturgiques de Fontgombault, de 22 a 24 de julho de 2001.

O Concílio Vaticano II definiu a Liturgia como “obra de Cristo Sacerdote e de seu Corpo que é a Igreja”.

No mesmo texto a obra de Jesus Cristo é referida como a obra da redenção que Cristo realizou especialmente pelo Mistério Pascal de sua Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão.

“Por este Mistério, morrendo ele destruiu nossa morte e ressurgindo restaurou a vida”. À primeira vista, nessas duas sentenças, a expressão “obra de Cristo” parece ter sido usada com dois sentidos diferentes. “A obra de Cristo” refere-se antes de tudo às ações redentoras, históricas de Jesus, sua Morte e Ressurreição; por outro lado, é a celebração da liturgia que é chamada “obra de Cristo”.

Na verdade, os dois significados estão inseparavelmente unidos: a Morte e a Ressurreição de Cristo, o Mistério Pascal, não são apenas eventos históricos, exteriores. No caso da Ressurreição isto é muito claro. Está unido à história, penetra-a, mas transcende-a de duas formas: não é ação de um homem, mas uma ação de Deus, e assim leva Jesus ressuscitado para além da história, para aquele lugar em que ele está sentado à direita do Pai. Mas também a Cruz não é uma ação meramente humana. O aspecto puramente humano está presente nas pessoas que levaram Jesus para a Cruz. Para o próprio Jesus, a Cruz não é primariamente uma ação, mas uma paixão, e uma paixão que significa que ele se conformou à Divina Vontade – uma união, o caráter dramático do que nos foi mostrado no Jardim do Getsêmani. Assim, a dimensão passiva de ser entregue à morte é transformada numa dimensão ativa de amor: a morte torna-se o abandono de si ao Pai, pelos homens. Assim, o horizonte se estende, como se faz na Ressurreição, para bem além do aspecto puramente humano e do ter sido pregado à cruz e ter morrido. Este elemento adicional para o mero evento histórico é o que a linguagem da fé chama de “mistério” e que condensou no termo “Mistério Pascal” o núcleo mais profundo do evento redentor. Se podemos dizer, por isto, que o “Mistério Pascal” constitui o núcleo da “obra de Jesus”, então a conexão com a liturgia fica imediatamente clara: é precisamente esta “obra de Jesus” que é o conteúdo real da liturgia. Nela, através da fé e da oração da Igreja, a “obra de Jesus” é continuamente posta em contato com a história, a fim de nela se inserir. Assim, na liturgia, o evento histórico meramente humano é sempre mais transcendido, e torna-se parte da ação divina e humana da Redenção. Nela, Cristo é o verdadeiro sujeito operante: é a obra de Cristo; mas nela ele atrai a história para si, precisamente nesta ação permanente onde tem lugar a nossa salvação.

1. O Sacrifício colocado em questão

Se voltarmos até o Vaticano II, encontramos a seguinte descrição desta relação: “A Liturgia, pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, ‘se opera a obra da nossa Redenção’, contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja”.

Tudo isso tornou-se estranho ao pensamento moderno e, apenas passados 30 anos do Concílio, foi posto em questão mesmo entre liturgistas católicos. Quem hoje em dia ainda fala do “divino Sacrifício Eucarístico”? Discussões sobre a ideia de sacrifício tem se tornado novamente bem vivas, tanto no lado católico como no protestante. Qualquer um percebe que uma ideia que sempre esteve presente, sob várias formas, não só na história da Igreja, mas na história inteira da humanidade, deve ser expressão de algo que bem nos diz respeito. Mas, ao mesmo tempo, as posições do antigo Iluminismo ainda vivem por toda parte: acusações de mágica e paganismo, contrastes entre o culto e o serviço da Palavra, entre o rito e o ethos, a ideia de um Cristianismo que se abstrai do culto e adentra o mundo profano, teólogos católicos que não tem o menor desejo de serem acusados de anti-modernismo. Mesmo se o povo quiser, de uma forma ou de outra, redescobrir o conceito de sacrifício, embaraço e crítica são o resultado final. Assim, Stefan Orth, no vasto panorama de uma bibliografia de obras recentes voltadas para a temática do sacrifício, acreditou que poderia fazer a seguinte afirmação como uma síntese de sua pesquisa: "De fato, vários Católicos hoje ratificam o veredito e as conclusões de Martinho Lutero, que diz que falar de sacrifício é 'o maior e mais terrível horror' e uma 'impiedade detestável': eis por que queremos evitar tudo que remete a sacrifício, incluindo todo o Cânon, e manter somente o que é puro e sagrado”. Orth, então, acrescenta: “Esta máxima foi também seguida na Igreja Católica depois do Vaticano II, pelo menos como tendência, e levou o a se pensar no culto divino sobretudo a partir da Festa da Páscoa nos relatos da Última Ceia”. Recorrendo a uma obra sobre o sacrifício, editada por dois liturgistas católicos modernos, ele então disse, em termos levemente mais moderados, que realmente pareceu que a noção de sacrifício da Missa – ainda mais que a de sacrifício da Cruz – foi, na melhor das opiniões, uma ideia muito aberta a incompreensões.

Certamente não preciso dizer que eu não sou um dos “numerosos católicos” que consideram o maior e mais terrível horror e uma impiedade detestável o falar do sacrifício da Missa. Isso sem falar que o escritor não mencionou meu livro sobre o espírito da liturgia, o qual analisa detalhadamente a ideia do sacrifício. Seu diagnóstico continua a ser apavorante. Ele é verídico? Eu não conheço esses numerosos católicos que consideram uma impiedade detestável entender a Eucaristia como um sacrifício. O segundo diagnóstico, mais discreto, que afirma que o sacrifício da Missa está aberto a incompreensões, é, por outro lado, facilmente verificável. Mesmo se alguém deixar de um lado a primeira afirmação como um exagero de retórica, permanece um problema preocupante, o qual deveríamos enfrentar. Uma parte considerável de liturgistas católicos parece ter praticamente chegado à conclusão de que Lutero, mais do que Trento, é que estava substancialmente correto no debate do séc. XVI; muito se pode perceber a mesma posição nas discussões pós-conciliares sobre o Sacerdócio. O grande historiador do Concílio de Trento, Hubert Jedin, apontou para isto em 1975, no prefácio ao ultimo volume de sua História do Concílio de Trento: “O leitor atento... ao ler isto não ficará menos consternado que o autor, ao perceber que muitas das coisas – quase tudo, de fato – que perturbaram os homens do passado estão sendo repropostas hoje em dia”. Somente neste contexto de negação efetiva da autoridade de Trento é que se pode entender a violência da luta contra a permissão para a celebração da Missa de acordo com o Missal de 1962, depois da reforma litúrgica. A possibilidade de celebrar assim constitui a mais forte e, por isso (para eles), mais intolerável objeção à opinião daqueles que acreditam que a fé na Eucaristia, formulada por Trento, perdeu seu valor.

Seria fácil reunir provas para sustentar esta afirmação sobre esta posição. Eu deixo de lado a extrema teologia litúrgica de Harald Schützeichel, que se distancia completamente dos dogmas católicos e expõe, por exemplo, a afirmação audaz de que foi apenas na Idade Média que a ideia da Presença Real foi inventada. Um liturgista moderno como David N. Power conta-nos que no decorrer da história, não só a maneira de se expressar uma verdade, mas também o conteúdo expresso pode perder seu significado. Concretamente ele relaciona sua teoria com as afirmações de Trento. Theodore Schnitker conta-nos que uma liturgia atualizada inclui tanto uma expressão diferente da fé como mudanças teológicas. Além disso, de acordo com ele, há teólogos, pelo menos nos círculos da Igreja Romana e de sua liturgia, que ainda não assimilaram toda a importância das transformações levadas a cabo pela Reforma Litúrgica na área da doutrina da fé. A obra certamente respeitável de R. Meßner sobre a reforma da Missa realizada por Martinho Lutero, e sobre a Eucaristia na Igreja primitiva, que contém várias ideias interessantes, chega, entretanto, à conclusão de que a Igreja primitiva foi melhor compreendida por Lutero do que pelo Concílio de Trento.

A natureza séria dessas teorias vêm do fato de que frequentemente elas são imediatamente postas em prática. A tese segundo a qual é a própria comunidade que é o sujeito da liturgia, serve como uma autorização para se manipular a liturgia de acordo com a compreensão de cada um. Novas descobertas, como chamam, e as formas que daí seguem, são difundidas com uma rapidez assustadora e com uma tal obediência às modas como há muito deixou de existir às normas da autoridade eclesiástica. Teorias, na área da liturgia, são transformadas em prática muito rapidamente hoje, e a prática, por sua vez, cria ou destrói maneiras de se comportar e pensar.

Entretanto o problema se agravou pelo fato de que o pensamento do recente movimento do Iluminismo vai muito além de Lutero: onde Lutero literalmente levou em conta as considerações da Instituição e fez delas, como norma normans, a base de seus ensaios na Reforma, as hipóteses do criticismo histórico há muito tentam causar uma vasta erosão nos textos. Os relatos da Última Ceia aparecem como o produto da construção litúrgica da comunidade; procura-se um Jesus histórico, entre os textos, que não poderia estar pensando no dom do seu Corpo e Sangue e que não compreendeu sua Cruz como um sacrifício de expiação; deveríamos, melhor, imaginar uma refeição de despedida que incluiu uma perspectiva escatológica. Não só a autoridade do magistério eclesiástico decaiu aos olhos de muitos, mas a da Escritura também; em seu lugar são postas hipóteses pseudo-históricas mutantes, que imediatamente são substituídas por qualquer ideia arbitrária e põem a liturgia à mercê da moda. Onde, na base de tais ideias, a liturgia é sempre mais livremente manipulada, os fiéis sentem que, na verdade, nada é celebrado, e é compreensível que eles abandonem a liturgia e, com ela, a Igreja.

A Teologia da Liturgia, por Card. Ratzinger - Parte II

Pax et bonum!


Segue a segunda parte da conferência sobre Teologia Litúrgica, dada pelo Cardeal Joseph Ratzinger nas famosas Journees Liturgiques de Fontgombault, na França, em 2001. O texto será disponibilizado, dentro de alguns dias, em PDF e na íntegra, após a postagem com a última parte.

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2. Os princípios da pesquisa teológica

Voltemos para a questão fundamental: é correto descrever a liturgia como um sacrifício divino, ou isto se trata de uma impiedade detestável? Nesta discussão, deve-se primeiramente estabelecer os pressupostos principais que, em todo caso, determinam a leitura da Escritura, e assim as conclusões que se tiram dela. Para o cristão católico, duas linhas de orientação hermenêutica essenciais se afirmam aqui. A primeira: confiamos nas Escrituras e nela nos baseamos, não em reconstruções hipotéticas que vão além dela e, de acordo com o seu próprio gosto, refazem uma história em que a ideia presunçosa do nosso saber o que pode ou não ser atribuído a Jesus tem um papel fundamental; o qual, é claro, significa atribuir a ele apenas o que algum acadêmico moderno se contenta em atribuir a um homem pertencente a uma época que o próprio acadêmico reconstruiu.

A segunda é que lemos a Escritura na comunidade viva da Igreja e, portanto, na base de decisões fundamentais que lançaram os alicerces da Igreja, graças às quais ela, a Escritura, tornou-se historicamente eficaz. Não se deve separar o texto deste vivo contexto. Neste sentido, a Escritura e a Tradição formam um todo inseparável, e é isto que Lutero, na aurora do despertar da consciência histórica, não podia enxergar. Ele acreditou que um texto só poderia ter um significado, mas esta univocidade não existe, e a historiografia moderna há muito abandonou esta ideia. Que na Igreja nascente a Eucaristia tenha sido, desde o início, entendida como um sacrifício, até num texto como a Didaquê, que é de certo modo difícil e marginal face à grande Tradição, é uma chave interpretativa de primeira importância.

Mas há outro aspecto hermenêutico fundamental na leitura e na interpretação do testemunho bíblico. O fato de que eu posso, ou não, reconhecer um sacrifício na Eucaristia tal qual o Senhor instituiu, depende mais essencialmente da questão de saber o que eu entendo por sacrifício, consequentemente no que se chama de pré-compreensão. A pré-compreensão de Lutero, por exemplo, em particular sua concepção da relação entre o Antigo e o Novo Testamento, sua concepção do evento e da presença histórica da Igreja, era tal que a categoria de sacrifício, como ele via, não poderia aparecer como outra coisa a não ser uma impiedade quando aplicada à Eucaristia e à Igreja. O debate a que Stefan Orth se refere mostra o quão confusa e atrapalhada é a ideia de sacrifício entre quase todos os autores, e mostra claramente quanto se precisa fazer aqui. Para o teólogo crente, é claro que é a própria Escritura que deve ensinar-lhe a definição essencial de sacrifício, e isto resultará de uma leitura “canônica” da Bíblia, em que a Escritura é lida em sua unidade e em seu dinamismo. Os diferentes estágios dela recebem seu significado final de Cristo, a quem tudo isso conduz. Por esta mesma norma a hermenêutica que aqui se pressupõe é uma hermenêutica de fé, encontrada na lógica interna da fé. Não é óbvio? Sem a fé, a própria Escritura não é Escritura, mas sim uma coletânea desorganizada de obras literárias que não pode pretender ter qualquer significado normativo atualmente.

3. Sacrifício e Páscoa

A tarefa a que se alude aqui excede, obviamente, os limites de uma palestra; permitam-me, então, fazer uma referência ao meu livro sobre o “Espírito da Liturgia” no qual procurei dar as linhas principais desta questão. O que emerge disso é que, no seu curso através da história das religiões e da história bíblica, a ideia de sacrifício teve conotações que vão muito além da área de discussão que costumeiramente associamos à ideia de sacrifício. De fato, abre-se um portão para uma compreensão global do culto e da liturgia: estas são as grandes perspectivas que eu gostaria de tentar apontar aqui. Necessariamente preciso omitir também questões particulares de exegese, em particular o problema fundamental da importância da Instituição, na temática da qual tentei prover alguns pensamentos na minha contribuição em “A Eucaristia e a Missão”.

Há, contudo, uma observação que não posso deixar de fazer. Na revisão bibliográfica mencionada, Stefan Orth diz que o fato de se ter evitado, após o Vaticano II, a ideia de sacrifício, “levou o povo a pensar no culto divino a partir da Festa da Páscoa nos relatos da Última Ceia”. À primeira vista, esta formulação parece ambígua: pensa-se no culto divino nos termos das narrativas da Última Ceia, ou nos termos da Páscoa, à qual as narrativas se referem como contexto cronológico, sem contudo a descreverem? Seria correto dizer que a Páscoa Judaica, a instituição relatada em Êx 12, adquire um novo significado no Novo Testamento. É aí que se manifesta um grande movimento histórico que, nas origens, remonta à Última Ceia, à Cruz e à Ressurreição de Jesus. Mas o que é mais espantoso na exposição de Orth é a oposição posta entre a ideia de sacrifício e a Páscoa. O Antigo Testamento Judeu priva a tese de Orth de significado, pois da lei do Deuteronômio em diante, a imolação de cordeiros está associada ao templo; e mesmo no período mais antigo, quando a Páscoa ainda era uma festa familiar, a imolação dos cordeiros já tinha um caráter sacrifical. Assim, precisamente pela tradição da Páscoa, a ideia de sacrifício é levada às palavras e gestos da Última Ceia, onde está presente também na base de um segunda passagem do Antigo Testamento, Êxodo 24, que relata a conclusão da Aliança no Sinai. Aí é relatado que o povo era aspergido com o sangue das vítimas trazidas previamente, e que Moisés disse, nesta ocasião: “Este é o sangue da Aliança que Javé faz convosco, de acordo com todas estas disposições” (Êx 24,8). Assim, a nova Páscoa Cristã é expressamente interpretada nas narrativas da Última Ceia. A Igreja nascente sabia que a Cruz era um sacrifício, porque a Última Ceia seria um gesto vazio sem a realidade da Cruz e da Ressurreição que nela é antecipada e tornada acessível por todo o tempo em seu conteúdo interior.

Eu menciono esta estranha oposição entre a Páscoa e o sacrifício, porque representa o princípio arquitetônico de um livro recém publicado pela Fraternidade São Pio X, afirmando que há uma ruptura dogmática entre a nova liturgia de Paulo VI e a precedente tradição litúrgica católica. Essa ruptura é vista precisamente no fato de tudo ser interpretado, de agora em diante, à luz do “mistério pascal”, e não do sacrifício expiatório e redentor de Cristo; a categoria de mistério pascal é tida como o coração da reforma litúrgica, e é precisamente isto que parece ser a prova de ruptura com a doutrina clássica da Igreja. É claro que há autores que são abertos a tal equívoco; mas que isso seja um equívoco é completamente evidente para os que olham mais de perto. Na realidade, o termo “mistério pascal” claramente se refere às realidade que tomaram lugar da Quinta-feira Santa até a manhã do Domingo de Páscoa: a Última Ceia como antecipação da Cruz, o drama do Gólgota e a Ressurreição do Senhor. Na expressão “mistério pascal” estes acontecimentos são vistos de modo sintético, como um só evento, como “a obra de Cristo”, como ouvimos o Concílio dizer no início, que teve lugar historicamente e ao mesmo tempo transcende este ponto específico no tempo. Como este evento é, interiormente, um ato de culto prestado a Deus, poderia tornar-se culto divino, e dessa forma estar presente para todas as épocas. A teologia pascal do Novo Testamento, sobre a qual lançamos um rápido olhar, dá-nos a entender precisamente isto: o aparente episódio profano da Crucificação de Cristo é um sacrifício de expiação, um ato salvador do amor reconciliador de Deus feito homem. A teologia da Páscoa é a teologia da redenção, uma liturgia de um sacrifício expiatório. O Pastor tornou-se Cordeiro. A visão do cordeiro, que aparece na história de Isaac, o cordeiro que fica preso nos arbustos e resgata o filho, tornou-se uma realidade; o Senhor tornou-se um Cordeiro; ele se permite ser preso e sacrificado, para nos libertar.

Tudo isto se tornou muito estranho ao pensamento contemporâneo. Reparação (“expiação”) pode significar talvez algo dentro dos limites dos conflitos humanos e o pagamento da culpa que domina entre os seres humanos, mas sua transposição para o relacionamento entre Deus e o homem não pode acontecer. Isto, com certeza, é o grande resultado do fato de que nossa imagem de Deus tem se obscurecido, tem se aproximado do deísmo. Não se pode mais imaginar que as ofensas humanas possam ferir a Deus, e menos ainda que elas precisem de uma expiação tal a que constitui a Cruz de Cristo. O mesmo se aplica à substituição vicária: nós dificilmente podemos ainda imaginar algo deste tipo – nossa imagem do homem tornou-se por demais individualista para isso. Assim, a crise da liturgia teve suas bases em ideias centrais acerca do homem. No intuito de superar a crise, banalizar a liturgia e transformá-la numa simples reunião e uma refeição fraterna não é a solução. Mas como podemos escapar de tais desorientações? Como podemos recuperar o significado desta coisa imensa que está no coração da mensagem da Cruz e da Ressurreição? Numa última análise, não através de teorias e reflexões acadêmicas, mas somente através da conversão, por uma mudança radical de vida. É, contudo, possível destacar algumas coisas que abrem o caminho para esta mudança de coração, e eu gostaria de apresentar algumas sugestões neste sentido, em três etapas.
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A Teologia da Liturgia, por Card. Ratzinger - Parte III

Terceira parte da conferência sobre Teologia Litúrgica, dada pelo Cardeal Joseph Ratzinger nas famosas Journees Liturgiques de Fontgombault, na França, em 2001. 



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4. Amor, o coração do sacrifício

A primeira etapa deverá ser uma questão preliminar sobre o significado essencial da palavra “sacrifício”. As pessoas comumente consideram sacrifício como a destruição de algo precioso aos olhos do homem; destruindo isto o homem deseja consagrar esta realidade a Deus, para reconhecer sua soberania. Na verdade, porém, uma destruição não honra a Deus. A imolação de animais ou do que quer que seja não pode honrar a Deus. “Se tivesse fome, não precisava dizer-te, porque minha é a terra e tudo o que ela contém. Porventura preciso comer carne de touros, ou beber sangue de cabrito?... Oferece, antes, a Deus um sacrifício de louvor e cumpre teus votos para com o Altíssimo”, diz Deus a Israel no Salmo 50(49),12-14. Em que, então, consiste o sacrifício? Não na destruição, nem nisso ou naquilo, mas na transformação do homem, no fato de ele se conformar a Deus. Ele se torna conforme a Deus quando ele se torna amor. “Eis a razão por que o verdadeiro sacrifício é toda obra que permite unirmo-nos a Deus numa santa amizade”, como afirmou Agostinho.

Com esta chave do Novo Testamento, Agostinho interpreta os sacrifícios do Antigo Testamento como símbolos indicando este sacrifício propriamente dito, e isto porque, diz ele, o culto tinha que ser transformado, o símbolo tinha que desaparecer em favor da realidade. “Todas as prescrições divinas das Escrituras que dizem respeito aos sacrifícios do tabernáculo ou do templo, são figuras que se referem ao amor de Deus e do próximo” (Cidade de Deus, X, 5). Mas Agostinho também sabe que o amor só se torna verdadeiro quando leva o homem a Deus e o conduz ao seu verdadeiro fim; ele sozinho pode, igualmente, trazer a unidade dos homens entre si. Por isso, o conceito de sacrifício se refere à comunidade, e a primeira tentativa de definição de Agostinho é ampliada pela seguinte declaração: “A inteira comunidade humana redimida, isto é, a assembleia e a comunidade dos santos, é oferecida a Deus pelo Sumo Sacerdote que ofereceu a si mesmo” (Ibid, X,6). E ainda mais simples: “Este sacrifício somos nós mesmos”, ou novamente: “Tal é o sacrifício cristão: a multidão – um mesmo corpo em Cristo” (Ibid, X, 6). O sacrifício, então, consiste, devemos dizê-lo uma vez mais, num processo de transformação, na conformidade do homem com Deus, em sua teósis, como diriam os [Santos] Padres. Consiste, para expressar numa fraseologia moderna, na abolição da diferença – na união entre Deus e o homem, entre Deus e a criação: “Deus tudo em todos” (1Cor 15,28).

Mas como tem lugar esse processo que nos torna amor e um só corpo com Cristo, que nos faz tornar-se um com Deus? Como acontece esta abolição da diferença? Antes de tudo, existe aqui um limite notável entre as religiões fundadas sobre a fé de Abraão de um lado, e do outro lado as outras formas de religião, como particularmente encontramos na Ásia, e também aquelas baseadas, provavelmente, em tradições asiáticas – no estilo plotiniano do neoplatonismo. Aí, união significa libertação quanto à finitude (auto-consciência), que em última análise é vista como uma fachada, a abolição do eu no oceano daquele que é completamente outro, o qual, comparado ao nosso mundo de fachadas, é negação que, todavia, é o único verdadeiro ser. Na fé cristã, que completa a fé de Abraão, a união é vista de uma forma completamente diferente: é a união de amor, na qual as diferenças não são destruídas, mas transformadas numa mais elevada união dos que se amam, tal como se encontra, como protótipo, na união trinitária de Deus. Considerando que, em Plotino por exemplo, a finitude é um afastamento da unidade e, por assim dizer, o cerne do pecado e, portanto, o cerne de todo mal, a fé cristã não vê a finitude como uma negação, mas como uma criação, o fruto da vontade divina que cria um parceiro livre, uma criatura que não tem de ser destruída, mas deve ser completada, deve inserir-se no ato livre de amor. A diferença não é abolida, mas torna-se o meio para uma unidade mais elevada. Esta filosofia de liberdade, que está na base da fé cristã e a diferencia das religiões asiáticas, inclui a possibilidade da negação. O mal não é um mero afastamento do ser, mas a consequência de uma liberdade mal utilizada. A via da unidade, a via do amor, é, pois, a via da conversão, a via da purificação: toma a forma da cruz, passa pelo Mistério Pascal, pela morte e ressurreição. Ela precisa do Mediador que, em sua morte e Ressurreição, faz-se caminho, atrai-nos para si e nos completa (Jo 12,32).

Lancemos um olhar sobre aquilo que temos dito. Em sua definição: sacrifício é igual a amor, Agostinho justamente enfatiza o dizer, presente em diferentes variações no Antigo e no Novo Testamento, que ele toma de Oséias: “eu quero amor e não sacrifício” (6,6; Santo Agostinho, Cidade de Deus X, 5). Mas este dizer não coloca meramente uma oposição entre o ethos e o culto – assim o Cristianismo seria reduzido a um moralismo. Ele se refere a um processo que é mais que uma filosofia moral, refere-se a um processo em que Deus toma a iniciativa. Só ele pode despertar o homem para ir em direção ao amor. Este é o amor com que Deus ama, o qual, somente, faz crescer nosso amor por ele. Este fato de ser amado é um processo de purificação e transformação, no qual não estamos apenas abertos a Deus, mas unidos aos outros. A iniciativa de Deus tem um nome: Jesus Cristo, o próprio Deus que se tornou homem e que se dá a nós. Eis porque Agostinho poderia sintetizar tudo dizendo: “Tal é o sacrifício dos cristãos: a multidão é um mesmo corpo em Cristo. A Igreja celebra este mistério pelo sacrifício do Altar, bem conhecido aos crentes, porque nele se mostra que, naquilo que ela oferece, é ela mesma que é oferecida” (Ibid. X, 6). Qualquer um que tenha entendido isto, não mais será da opinião de que falar do sacrifício da Missa seja ao menos muito ambíguo ou mesmo um terrível horror. Pelo contrário: se não nos lembramos disto, nós perdemos de vista a grandeza daquilo que Deus nos dá na Eucaristia.

5. O novo templo

Agora eu gostaria de mencionar, novamente de modo bem breve, duas outras abordagens. Uma importante indicação é dada, na minha opinião, na cena da purificação do templo, particularmente na forma deixada por João. João, de fato, relata uma frase de Jesus que não aparece nos Sinóticos, exceto no julgamento de Jesus, na boca de falsas testemunhas, e de um jeito distorcido. A reação de Jesus aos mercadores e aos cambistas no templo foi praticamente um ataque à imolação de animais, que lá eram oferecidos e, portanto, um ataque à forma existente de culto e à forma existente de sacrifício em geral. Eis porque as autoridades judaicas competentes perguntaram-lhe, com boa razão, por qual sinal ele justificava uma atitude que só poderia ser tomada como um ataque à lei de Moisés e às prescrições sagradas da Aliança. Então Jesus responde: “Destruí (dissolvei) este santuário e em três dias eu o reconstruirei” (Jo 2,19). Esta súbita fórmula evoca uma visão que o próprio João diz que os discípulos não entenderam até a Ressurreição, recordando o que aconteceu, e que os levou a “acreditar na Escritura e na palavra de Jesus” (Jo 2, 22). Por isso eles agora entendem que o templo foi abolido no momento da crucificação de Jesus: Jesus, de acordo com João, foi crucificado exatamente no momento em que os cordeiros pascais eram imolados no santuário. No momento em que o Filho faz de si mesmo cordeiro, isto é, dá-se livremente ao Pai e, assim, a nós, um fim é dado às antigas prescrições de um culto que só poderia ser um sinal das verdadeiras realidades. O templo é “destruído”. Doravante, seu corpo ressuscitado – ele mesmo – torna-se o templo da humanidade, no qual toma lugar a adoração em espírito e verdade (Jo 4, 23). Mas espírito e verdade não são conceitos filosóficos abstratos – ele mesmo é a verdade e o espírito é o Espírito Santo que dele procede. Aqui também, torna-se, assim claro, que o culto não é substituído por uma filosofia moral, mas que o culto antigo chega a um fim, com suas substituições e com seus frequentes trágicos equívocos, porque a realidade mesma se manifesta, o novo templo: o Cristo ressuscitado que nos atrai, que nos transforma e que nos une a ele. Mais uma vez torna-se claro que a Eucaristia da Igreja – para usar a terminologia de Agostinho – é o sacramentum do verdadeiro sacrificium – o sinal sagrado pelo qual aquilo que é significado é produzido, realizado.

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Por Luís Augusto - membro da ARS
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