ENTREVISTA DE SUA EXCIA. MONS. ALBERT MALCOLM RANJITH, ARCEBISPO SECRETÁRIO EMÉRITO DA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS SOBRE O MOTU PROPRIO DE SUA SANTIDADE O PAPA BENTO XVI.
1. Excelência Reverendíssima, qual é, a seu ver o significado profundo do Motu Proprio Summorum Pontificum?
“Vejo nessa decisão não só a solicitude do Santo Padre em abrir caminho para a reentrada à plena comunhão da Igreja para os seguidores de Monsenhor Lefebvre, mas também um sinal para toda a Igreja sobre alguns princípios teológico-disciplinares a salvaguardar tendo em vista uma sua profunda renovação, tão desejada pelo Concílio.
Parece-me que há nisso um forte desejo do Papa para corrigir aquelas tentações, patentes em alguns ambientes, que vêem o Concílio como um momento de ruptura com o passado, e como um novo início. Basta recordar seu discurso à Cúria Romana, em 22 de Dezembro de 2005. De outro lado, nem o Concílio pensou, nesses termos. Seja em suas escolhas doutrinárias, seja nas litúrgicas, como também nas jurídicas-pastorais, o Concílio foi um outro momento de aprofundamento e de atualização da rica herança teológica-espiritual da Igreja na sua história bimilenar. Com o Motu Proprio, o Papa quis afirmar claramente que toda tentação de desprezo dessas veneráveis tradições está fora de lugar. A Mensagem é clara: progresso, sim, mas não às custas, ou sem a história. Também a reforma litúrgica deve ser fiel a tudo aquilo que aconteceu desde o início até hoje, sem exclusões.
Por outro lado, não devemos jamais esquecer que, para a Igreja Católica, a Revelação Divina não é algo proveniente apenas da Sagrada Escritura, mas também da Tradição viva da Igreja. Tal fé nos distingue nitidamente das outras manifestações da fé cristã. A verdade para nós é aquilo que emerge, por assim dizer, destes dois pólos, isto é, a Sagrada Escritura e a Tradição. Esta posição, para mim, é muito mais rica do que outras visões, porque respeita a liberdade do Senhor a guiar-nos em direção a uma compreensão mais adequada da verdade revelada também através daquilo que acontecerá no futuro.
Naturalmente, o processo de discernimento daquilo que emerge será atualizado através do Magistério da Igreja. Mas aquilo que devemos recolher é a importância atribuída à Tradição. A Constituição Dogmática Dei Verbum afirmou essa verdade claramente (DV 10).
Ademais, a Igreja é uma realidade que supera os níveis de uma pura invenção humana. Ela é o Corpo místico de Cristo, a Jerusalém celeste e a estirpe eleita de Deus. Ela, por isso, supera as fronteiras terrestres assim como toda limitação de tempo e é uma realidade que transcende de muito a sua manifestação terrestre e hierárquica. Por isso, nela, aquilo que é recebido, deverá ser transmitido fielmente. Nós não somos nem inventores da verdade, nem os seus donos, mas apenas aqueles que a recebem, e que têm o dever de protegê-la e transmiti-la aos outros. Como dizia São Paulo falando da Eucaristia: “Eu de fato recebi do Senhor aquilo que, por minha vez, vos transmiti” (1Cor 11, 23).
O respeito da Tradição não é, portanto, uma livre escolha nossa na busca da verdade, mas a sua base que deve ser aceita. Na Igreja, a fidelidade à Tradição, por isso, é uma atitude essencial da própria Igreja. O Motu Proprio, a meu ver, deve ser entendido também nesse sentido. Ele é um possível estímulo para uma necessária correção de rumo. De fato, em algumas escolhas da reforma litúrgica feita depois do Concílio, foram adotadas orientações que ofuscaram alguns aspetos da Liturgia, melhor refletida da prática precedente, porque, a renovação litúrgica foi entendida por alguns como algo a ser feito totalmente “ex novo” (do novo). Sabemos bem, porém, que tal não foi a intenção da Sacrosanctum Concilium, que destaca que “as novas formas, de qualquer modo, desabrocharão organicamente daquelas já existentes” (SC 23).
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