A crise da Igreja à luz do Segredo de Fátima.
Por Roberto de Mattei, Corrispondenza Romana, 25-05-2016 | Tradução: FratresInUnum.com: O ano do centenário de Fátima (2016-2017) foi aberto no dia de Pentecostes com uma notícia que suscitou clamor. O teólogo alemão Ingo Dollinger referiu ao site “OnePeterFive” que após a publicação do Terceiro Segredo de Fátima, o cardeal Ratzinger lhe teria confiado: “Das ist noch nicht alles!” – “Isto ainda não é tudo”. A Sala de Imprensa do Vaticano interveio com um desmentido imediato, no qual se diz que “o Papa emérito Bento XVI comunica ‘não ter falado com o Prof. Dollinger sobre Fátima’ e afirma claramente que as frases atribuídas ao Prof. Dollinger sobre este tema ‘são puras invenções, absolutamente não verdadeiras’ e reitera decididamente: ‘A publicação do Terceiro Segredo de Fátima é completa’.”
O desmentido não convence aqueles que, como Antonio Socci, sempre sustentaram a existência de uma parte não revelada do segredo, que falaria do abandono da fé por parte dos líderes da Igreja. Outros estudiosos, como o Dr. Antonio Augusto Borelli Machado, julgam integral e tragicamente eloquente o segredo divulgado pela Santa Sé. Com base nos dados à nossa disposição, hoje não se pode afirmar com certeza absoluta nem que o texto do Terceiro Segredo seja integral, nem que seja incompleto. No entanto, o que parece absolutamente certo é que a profecia de Fátima ainda não foi cumprida e que sua realização diz respeito a uma crise sem precedentes na Igreja.
A este propósito deve-se recordar um importante princípio hermenêutico. O Senhor, através de revelações privadas e profecias que nada acrescentam ao depósito da fé, oferece às vezes uma “direção espiritual” para nos orientar nos períodos mais negros da História. Mas se é verdade que as palavras divinas projetam luz sobre as épocas tenebrosas, o contrário também é verdade: em seu desenvolvimento dramático,os eventos históricos nos ajudam a compreender o significado das profecias.
Quando, em 13 de Julho de 1917, Nossa Senhora anunciou em Fátima que se a humanidade não se convertesse a Rússia espalharia seus erros pelo mundo, estas palavras pareciam incompreensíveis. Foram os fatos históricos que desvendaram o seu significado. Após a Revolução bolchevique de outubro 1917, ficou claro que a expansão do comunismo era o instrumento do qual Deus queria Se servir para punir o mundo pelos seus pecados. Entre 1989 e 1991, o império do mal soviético aparentemente se desintegrou, mas o desaparecimento do invólucro político permitiu uma maior difusão mundial do comunismo, que tem o seu núcleo ideológico no evolucionismo filosófico e no relativismo moral. A “filosofia da práxis”, que de acordo com Antonio Gramsci resume a revolução cultural marxista, tornou-se o horizonte teológico do novo pontificado, traçado por teólogos como o cardeal alemão Walter Kasper e o arcebispo argentino Dom Víctor Manuel Fernández, inspiradores da Exortação Apostólica Amoris Laetitia.
Nesse sentido, não é do segredo de Fátima que devemos partir para compreender a existência de uma tragédia na Igreja, mas da crise na Igreja para compreender o significado último do segredo de Fátima. Uma crise que data dos anos sessenta do século XX, mas que com a abdicação de Bento XVI e o pontificado do Papa Francisco conheceu uma impressionante aceleração.
Enquanto a Sala de Imprensa se apressava para acalmar o caso Dollinger, outra bomba explodia com um fragor bem maior. Durante a apresentação do livro do Prof. Don Roberto Regoli, Oltre la crisi della Chiesa. Il pontificato de Benedetto XVI [Além da crise da Igreja. O pontificado de Bento XVI] (Lindau, Torino 2016), realizada no auditório da Pontifícia Universidade Gregoriana, Mons. Georg Gänswein enfatizou o ato de renúncia do Papa Ratzinger ao pontificado com estas palavras:
“A partir de 11 de fevereiro de 2013 o ministério papal não é mais aquele de antes. Ele continua a ser o fundamento da Igreja Católica; e, entretanto, é um fundamento que Bento XVI transformou profunda e duravelmente no seu pontificado excepcional”. – De acordo com o arcebispo Gänswein, a renúncia do Papa teólogo“marcou época”, porque introduziu na Igreja Católica a nova instituição do “Papa emérito”, transformando o conceito de munus petrinum (“ministério petrino”):
“Antes e depois de sua renúncia, Bento entendeu e ainda entende seu dever como uma participação a tal ‘ministério petrino’. Ele deixou o trono pontifício e, entretanto, com o passo de 11 de fevereiro de 2013, não abandonou absolutamente esse ministério. Em vez disso, integrou o ofício [petrino] pessoal com uma dimensão colegial e sinodal, quase um ministério em comum (…). Desde a eleição de seu sucessor Francisco, em 13 de março de 2013, não há em absoluto dois Papas, mas de fato um ministério expandido – com um membro ativo e um membro contemplativo. É por isso que Bento XVI não renunciou nem ao seu nome, nem à batina branca. Por isso o tratamento correto que se lhe aplica ainda hoje é ‘Santidade’; é também por isso que ele não se retirou para um mosteiro isolado, mas [permaneceu] dentro do Vaticano – como se tivesse dado apenas um passo de lado para abrir espaço ao seu sucessor e a uma nova etapa na história do papado. (…) Com um ato de extraordinária audácia, ele, pelo contrário, renovou esse ofício (mesmo contra a opinião de conselheiros bem-intencionados e sem dúvida competentes), e com um esforço final o tem fortalecido (como espero). Isto, é claro, somente a história poderá demonstrar. Mas na história da Igreja permanecerá que no ano de 2013 o célebre ‘Teólogo no Trono de Pedro’ tornou-se o primeiro ‘Papa emeritus’ da história “.
Este arrazoado tem um caráter perturbador, demonstrando por si só como estamos não “além”, mas mais do que nunca “dentro” da crise da Igreja. O Papado não é um ministério que pode ser “expandido”, porque é um “cargo” concedido pessoalmente por Jesus Cristo a um único Vigário e a um único sucessor de Pedro. O que distingue a Igreja Católica de qualquer outra igreja ou religião é a própria existência de um princípio unitário e indivisível encarnado na pessoa do Sumo Pontífice. O discurso de Mons. Gänswein, que não se entende aonde quer chegar, sugere uma Igreja bicéfala e acrescenta confusão a uma situação já demasiadamente confusa.
Uma frase liga a segunda e a terceira parte do Segredo de Fátima: “Em Portugal se conservará sempre o dogma da fé”. Nossa Senhora se dirige aos três pastorinhos portugueses e lhes assegura que seu País não perderá a fé. Mas onde se perderá a fé? Sempre se pensou que Nossa Senhora estivesse se referindo à apostasia de nações inteiras, mas hoje parece cada vez mais claro que a maior perda da fé está ocorrendo entre os homens da Igreja. Um “bispo vestido de branco” e “vários outros bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas” estão no centro do Terceiro Segredo, sobre um fundo de ruína e de morte, que é legítimo imaginar não só material, mas também espiritual. Confirma-o a revelação que a Irmã Lúcia teve em Tuy no dia 3 de janeiro de 1944, antes de escrever o Terceiro Segredo, e que está, portanto, indissociavelmente ligada a ele. Após a visão de uma catástrofe cósmica terrível, a Irmã Lúcia diz que sentiu em seu coração “o eco de uma voz suave que dizia: – No tempo, uma só fé, um só batismo, uma só Igreja, Santa, Católica Apostólica. Na eternidade, o Céu!”.
Essas palavras representam a negação radical de todas as formas de relativismo religioso, às quais a voz celestial contrapõe a exaltação da Santa Igreja e da Fé católica. A fumaça de Satanás pode invadir a Igreja na história, mas quem defende a integridade da Fé contra os poderes do inferno verá, no tempo e na eternidade, o triunfo da Igreja e do Coração Imaculado de Maria, a chancela definitiva da trágica, mas entusiasmante profecia de Fátima.