Testemunhos: Padre Américo
«”Roubou na feira de Margaride, já está presa há mais de um ano”. E o pequenino Manuel vai desfiando contas de amarguras que não sente, enquanto o adormeço num leito de roupa lavada»
É impossível ter crescido no Porto (como foi o meu caso) e nunca ter ouvido falar da personalidade de Américo Monteiro de Aguiar, mais conhecido como Padre Américo. Nascido em 1887 em Penafiel, natural de uma família na altura com algumas possibilidades económicas, frequentou o liceu e trabalhou entre 1906 e 1923 em Moçambique. Regressando a Portugal, ingressou no seminário de Coimbra, após uma passagem pelos Franciscanos, e após ter visto o seu pedido de admissão recusado pelo bispo do Porto. Após a ordenação, foi professor no seminário de Coimbra, até lhe ter sido confiada, em 1932, a direcção da obra Sopa dos Pobres.
A partir daí, iniciou uma vida intensa de acção social, essencialmente junto das crianças de rua, que lhe chamavam “Pai Américo”. Fundou a Casa do Gaiato, as Casas do Património dos Pobres, entre outras obras. Pelo meio, foi publicando algumas obras, dedicadas essencialmente a expor o projecto educativo da Casa do Gaiato, considerado na altura como revolucionário em muitos aspectos, e que suscitou numerosas críticas e oposições. Morreu em 1956 em Valongo, vítima de um acidente de viação. Pelo meio deixou milhares de páginas escritas, entre os periódicos e os livros: textos de uma retórica belíssima e de uma experiência vivida, a explicar que “as crianças, para quem peço, não são minhas: são vossas, são o resultado da vossa sociedade.” Os seguintes excertos são retirados do livro «Padre Américo, páginas escolhidas e documentário fotográfico», Porto 2008.
(…)
«Ontem apresentaram-se quatro. Já tinham chegado há dias, mas, como eu estivesse ausente, eles comiam na cozinha do forno e dormiam no palheiro, à espera. Quatro. Três de Santo Tirso e um fugido a um circo, que não se sabe de onde é! O orador era um dos de Santo Tirso. Não tinha papas na língua. A causa dele e dos outros era muito bem defendida. Depois falei eu. Quatro – nem pensar. Se fosse um, talvez se desse um jeito; assim, não.
Comeram o caldo. Dei a cada um sua moeda de prata e com isso os despedi. À noitinha, sinto bater à porta do meu escritório. Era um dos desgrenhados. Cá estou! É o do circo. É o que não tem ninguém. Traz a moeda de prata que antes lhe dera e entregou-ma! “Os de Santo Tirso”, disse ele, “sempre têm por lá alguma família; eu é que não.” Esta foi a doutrina do pequenino concílio que eles houveram, entre si, a uns tanto quilómetros da nossa Aldeia. Os “Pàrias” a fazerem doutrina. O “esterco” a ensinar: “Sim. Vai tu que não tens ninguém”. Oh, Homens das Esquerdas e das Direitas, encontrai-vos aqui e chorai!»
(…)
«Chegou-nos um pequeno que parece andar na casa dos dez. Ao que apurei, ele tem a mãe na cadeia, ia comer o rancho às grades e mendigava nas redondezas. Como estamos em maré de piões e há setenta deles a bailar cá em Casa, o Manuel, que assim se chama o novo gaiato, compreendeu num relance que a vida aqui não é para penas e começou a jogar. Na tarde desse mesmo dia, foi visto mais os do campo a comparticipar dos seus trabalhos e infinita alegria. Tem uns olhos cheios de expressão. Narra a tragédia da vida sem saber medir, pela idade que tem, a altura da sua desgraça.
-“Andava um homem mais nós, mas agora não quer saber”. Era um grupo de pedintes de feiras. A prisão da mulher afastou o homem e ficou o pequenino preso ao amor da mãe, que é o derradeiro a quebrar. Ela reparte do seu minguado rancho, nem se lhe dava de abrir as veias, que o amor tem mais força do que a morte. O ferro das grades não impede que ela se aproxime do fruto da sua fraqueza. Eu não me atrevo a chamar-lhe fruto do seu pecado; que o digam os mais.
– “Roubou na feira de Margaride, já está presa há mais de um ano”. E o pequenino Manuel vai desfiando contas de amarguras que não sente, enquanto o adormeço num leito de roupa lavada. Soube mais: que o pai da condenada é um proprietário do Minho, que não quis receber a filha por lhe ter caído uma nódoa. Se o pai soubesse perdoar, tanto bastaria para lavar a primeira nódoa e não teríamos hoje a enlameada. Quer-me parecer que o verdadeiro pecado vem do acto do pai!»
Padre Américo! Pai Américo 1. Do berço a África A vocação é a “história de um inefável diálogo entre Deus e o homem, entre o amor de Deus que chama e a liberdade do homem que no amor responde a Deus”.1 Toda a pessoa humana é uma vocação. Assim aconteceu com Américo Monteiro de Aguiar. A iniciativa de o chamar à vida foi de Deus, através da sua Palavra e visão criadora. Chama pelo nome, à sua presença e quer que o escutem. O carácter divino da vocação pessoal, desde o princípio, é reconhecido: “A vocação é um selo que Deus põe na alma da gente, ao nascer”.2 Encontra-se o seu berço na paróquia de Galegos, sob a invocação do Salvador, da Diocese do Porto, onde residia uma família católica de lavradores, da secular Casa do Bairro. Foi torrão de evangelização monástica, dos filhos de S. Bento; e que, no século XIX, prestava culto especial à Eucaristia e ao Coração de Jesus, e à lareira rogava a intercessão da Mãe de Jesus. Os seus pais contraíram matrimónio em Outubro de 1873, na vizinha freguesia do Salvador de Paço de Sousa, por ser a naturalidade da mãe, e onde se ergue uma sumptuosa igreja medieval, de história beneditina. Passados 14 anos, a 23 de Outubro de 1887, Deus abençoou o lar de Teresa Rodrigues e Ramiro de Aguiar com o dom do oitavo filho. Era o mais novo de uma boa prole em que o primogénito seguiu o rumo da Índia, como missionário secular. Os pais e os 1 Pastores dabo vobis, n. 36,p. 105. AAS.84 (1992) 715-716. 2 O Gaiato. Paço de Sousa. 3:66 (7 Set. 1946) 2. 232 HUMANÍSTICA E TEOLOGIA padrinhos, 12 dias depois, não hesitaram em encaminhar o menino para o baptistério. Assim, foi recebido na Igreja como o nome de Américo, numa celebração presidida pelo Padre António Reis. Por esse nome, a sua família lembrava gratamente o insigne Cardeal D. Américo, prelado portucalense da época, seduzido pela reforma do seu Seminário. Os pais transmitiram-lhe os princípios básicos da fé e moral cristã. Junto da senhora Rosa do Bento, catequista, foi-lhe ensinada doutrina cristã, que aprendeu rapidamente para se aproximar dos sacramentos da Reconciliação e Eucaristia depois dos 10 anos. A comunhão eucarística provocou nele um grande impacto que o levou a afirmar, mais tarde: “Ninguém faz ideia do que seja o sentir (compreender, não) na alma a presença real do Mestre, inefável mistério a que os crentes chamam Santíssimo Sacramento; ninguém”.3 As suas brincadeiras preferidas versavam temas religiosos. Os irmãos chamavam-lhe beato. Era notória, também, a caridade para com os Pobres que encontrava. Ora vejamos o que revelou: “O Pobre é a minha glória. Por ele sou conhecido e naturalmente amado. Nasci com esta devoção. Em pequenino, furtava coisas à minha mãe. Quantas vezes indo ela à salgadeira e notava a falta de coisas, punha a língua no meu nome e nunca se enganou. Ela também era…! Nasci com esta devoção. Os Pobres também são os meus amigos devotos. São as minhas testemunhas de defesa. Hei-de topar muitos deles no derradeiro momento da minha vida. Os Pobres têm-me livrado e livram-me sempre do mal”.4 A afeição que sentia pela sua mãe foi retratada amiúde: “A minha mãezinha, a mulher mais fresca e linda do mundo inteiro”. “Eu era o mais novito e ia sempre à lareira buscar um mimo que a minha mãe me guardava; gostava tanto de ver aquela grande fogueira crepitar por entre as panelas… Todos os dias a mesma fogueira, o mesmo lume, e sempre lume novo!” 5 O sonho de uma criança é ser grande e assim aconteceu com Américo: “Quando eu era pequenino, ia ceifar erva nos campos, na companhia de outros irmãos. Ao regressar, em vez de ir directamente lançar erva no palheiro, ficava de cesto à cabeça, a chamar pela mãe, que viesse ver. – Olhe o meu cesto como é grande! Esperava até que ela viesse. Ela ajudava-me, sem dar fé”.6 Quando cerca dos 11 anos experimentou a vontade de ser Padre, o rapazito não conseguiu dar seguimento ao apelo porque o pai se opôs, aliás rectamente intencionado: “O quê?! Não tem feitio para Padre. Cantar, dançar, viola, pândega… Comércio, comércio. Não tem vocação para Padre!”.7 3 Idem. 3:56 (20 Abril 1946) 3. 4 Idem. 9:223 (13 Out. 1952) 2. 5 Idem. 370 (17 Maio 1958) 3. 6 Idem. 3:66 (7 Set. 1946) 4. 7 Idem. 326 (1 Set. 1956) 2. A VÁRIAS VOZES 233 Fez a aprendizagem das primeiras letras, em Galegos. Entre 1897 e 1899, frequentou o Colégio de Nossa Senhora do Carmo, em Penafiel, onde fez exame da 4.ª classe, revelando qualidades intelectuais. Nesse ano foi matriculado no Colégio vicentino de Santa Quitéria, em Felgueiras, no sentido da carreira comercial. Manifestou-se bom estudante e distinguiu-se pela sua conduta moral e espiritual. Foi membro das Associação dos Filhos de Maria, recebeu acompanhamento do Padre Jacinto Borba e pôde conhecer a vida de um Santo que foi da sua predilecção – S. Vicente de Paulo. Em 1 de Junho de 1902, a mãe escreveu ao filho mais velho uma carta muito importante: “Peço-te que me dês andamento a este meu embaraço em que me vejo com este rapaz: ele tem muita vontade de ser Padre. Vamos a ver se agora o podemos apanhar”. Tinha 14 anos. Entretanto, na época agravou-se a questão religiosa, com o caso Calmon. Encetou uma carreira comercial, empregando-se numa loja de ferragens, no Porto, que ficava próxima do Seminário Episcopal e da Sé Catedral. Tinha apenas 15 anos e já se encontrava ao balcão, a “vender ferros”, como dizia a mãe que o visitava. Sentia pena de não estudar; e o ambiente eclesial que frequentava aguçava-lhe o desejo de ser Padre. Confessava-se assiduamente e ajudava à Missa, na igreja de S. Lourenço. O irmão Padre José não o perdia de vista, de forma epistolar, aconselhando-o a participar na vida sacramental, para as suas dificuldades de adolescente, num ambiente urbano, em que seguia “o caminho do Calvário” como o próprio Américo deixou dito. Nesse tempo, recebeu o sacramento da Confirmação, do Bispo D. António Barroso, na igreja mãe da Diocese Portucalense. Aos 19 anos, tomou o rumo da costa oriental de África, onde estava o irmão Jaime Aguiar. Foi num cenário de crescimento económico da África portuguesa até aos anos vinte que se inscreveu um período de 16 anos, em que Américo de Aguiar fez uma carreira comercial de sucesso, em Moçambique. De 1907 a 1921 foi um funcionário competente da firma inglesa The British Central Africa. Ganhava muito dinheiro, mas exercitava-se como homem generoso, não esquecendo os Pobres da sua terra. Dominava o inglês e era amigo de conviver. Na sua casa (república do carapau frito), no Chinde, que gozava de boa reputação, destacava-se como guia moral. Quando chegou à colónia portuguesa do Índico, ainda tinha uma fé viva, testemunhada pela sua prática religiosa em 1909, numa altura em que “ajudava à Missa”. Entregue ao cargo de despachante, a sua carreira profissional progrediu de tal forma que um seu companheiro de trabalho lhe chamou de lucky man. Nos 7 anos que decorreram até ao final de 1913, a nível espiritual, não se conhecem sinais de inquietação interior. Praticou desporto, “uma causa saudável”, numa agremiação: Chinde Sports Club. 234 HUMANÍSTICA E TEOLOGIA 2. Caminho da Luz A década que medeia entre Dezembro de 1913, em que morreu a sua mãe, e Outubro de 1923, representa um transcurso de tempo de crise religiosa. O choque da “sinistra notícia” acentuou o seu carácter meditativo. O contexto eclesial de Moçambique estava marcado positivamente pela presença dos Franciscanos que se tinham estabelecido na Beira desde 1898. Em 1914 conheceu, nessa cidade, o franciscano Padre Rafael Maria da Assunção. Foi um encontro ocasional que recomeçou a rasgar o seu horizonte vocacional. A partir da I Guerra Mundial configurou-se um cenário de múltiplos sofrimentos. Américo de Aguiar parecia um homem “fugido de si mesmo”, segundo o Padre Avelino Soares, e sujeito de uma “vida atribulada”, como escreveu. Em 1921, a insatisfação profissional levou-o a Lourenço Marques, onde trabalhou na casa alemã Breyner & Wirth. Nesse ano morreu o seu pai. Agudizou-se uma crise de índole espiritual. Os colóquios com o Padre Rafael tornaram-se mais intensos a partir de 1922. Ao acompanhá-lo no seu discernimento, activou uma inquietação pré-existente e abriu-o ao Senhor – o “Caminho da Luz”, como deixou escrito. A luta entre o homem e a Graça é descrita desta forma: “Era então um fugitivo. Verdadeiramente não sabia o que queria, tão pouco para onde caminhava! Ninguém estava à minha partida e mais a cidade já naquele tempo era grande e cheia. Tudo era indecisão. Tinha perdido os sentidos. E contudo era eu. Eu passava. Vivia. Começou então a luta. O homem e a Graça. Esta havia de vencer, sim, mas até aí, quanta dor, meu Deus!” 8 No II Concílio do Vaticano, esta temática inclui-se no chamamento universal à santidade, que não acontece por merecimento próprio, mas pela Graça e vontade de Deus. No princípio de 1923, a convite do amigo Simão Neves, com uma casa bancária, no Funchal, transferiu-se para a Madeira, mas por breve tempo. Acabou por regressar ao Continente. Pensava dedicar-se ao comércio de frutas e deslocou-se a Inglaterra por negócios que não tratou. Em Julho de 1923, deu-se uma martelada, segundo a sua própria expressão. Tinha 35 anos. Hesitava no seu regresso a África e chegou a comprar passagem para Lourenço Marques. Em Lisboa, impressionou-se com uma revista onde apareciam padres franciscanos. Procurou aconselhar-se com o Padre Dr. Avelino Soares, seu antigo companheiro de escola e Pároco de Penafiel. Mas esse amigo tentou dissuadi-lo. Disposto a voltar a Moçambique, fez as malas e seguiu para Lisboa. Porém, à última hora Deus desferiu o golpe final no seu coração, através de outra martelada. Confessou que não resistiu mais. 8 Idem. 9:235 (28 Fev. 1953) [1]. A VÁRIAS VOZES 235 As Ordens religiosas ficaram limitadas na sua acção com a Revolução republicana de 1910. Américo de Aguiar procurou os franciscanos na Galiza, ingressando no Convento de Vilariño de la Ramallosa, para onde partiu a 21 de Outubro de 1923. Chegou a tomar hábito de noviço franciscano, em 14 de Agosto de 1924. Contudo, em virtude da sua dedicação aos frades idosos e doentes e algumas desobediências às regras do noviciado, a votação do Capítulo foi desfavorável: “não assimilava a vida monástica por ser muito impressionista”.9 Depois, pediu que o recebessem no Seminário do Porto. Porém não foi sucedido, devido à sua idade adiantada. Foi admitido pelo Bispo conimbricense, D. Manuel Luís Coelho da Silva, no Seminário desta Diocese, a 3 de Outubro de 1925, recomendado pelo Padre Frei Inocêncio do Nascimento. Ia fazer 38 anos quando entrou no Seminário de Coimbra, que era frequentado por jovens saídos da adolescência. Em 1925-26 frequentou as aulas de Filosofia; e, entre 1926-30, fez o curso quadrienal de Teologia. No seu curso houve apenas um percalço: Canto Gregoriano, em que ficou adiado. Não seria caso para lembrar o Santo Cura d`Ars. Dos seus trabalhos académicos, conhecemos um exercício, sob o título: A excelência do Cristianismo sobre o Islamismo. De facto, teve conhecimento em Moçambique da religião do Alcorão. Tanto colegas como professores distinguiam nele a sua caridade e o amor à Eucaristia e à oração. Segundo o condiscípulo Padre Augusto Nunes Pereira, o seu amor à Eucaristia era tal que “não se conformava com o regulamento de Sexta-Feira Santa proibindo a Sagrada Comunhão. De uma vez insistiu tanto que lha ministraram naquele dia”.10 Descobriu “o segredo da vida dos místicos: a humildade” 11, conforme escreveu. Colaborou na revista dos alunos do Seminário Maior de Coimbra – Lume Novo, sob o pseudónimo Frei Junípero, revelando já o seu talento de escrever. A sua correspondência demonstra que se servia muito do Novo Testamento para fundamentar as suas reflexões de conteúdo doutrinal. Mais tarde, em 1947, escreveu: “Tenho só um livro: é o Novo Testamento. Começo no princípio e vou por aí fora até ao fim. Torno a começar e vou, vou, vou, até acabar. Isto durante um ano. Isto durante dois. Isto sempre. São perigosos os homens dum só livro e podem vir a ser incendiários. Cautela!” 12. Numa missiva, a 31 de Março de 1926, ao conterrâneo Moreira da Rocha, escreveu: “A vida [do sacerdócio ministerial] é cheia de dificuldades e só se pode equilibrar por meio das forças ocultas da oração e sacrifício. Este é o segredo dos grandes que venceram a vida, pequenos e ridículos aos olhos de 9 Idem. 326 (1 Set. 1956) 2. 10 Idem. 15:390 (21 Fev. 1959) [1]. 11 Idem. 18:449 (26 Maio 1961) [3]. 12 Idem. 4:95 (18 Out. 1947) [1]. 236 HUMANÍSTICA E TEOLOGIA toda a gente. Tome lá esta máxima e escreva na parede do seu quarto e da sua alma: ama nesciri et pro nihilo reputari”.13 Continuava a manifestar a sua devoção pelos Pobres: “Vem aqui todos os dias certa mulher buscar uma panela de caldo para ela, uma filha e 4 netos, obra de ex-estudantes, ocupando todos os seis um mísero cubículo sem luz nem ar”.14 De uma viagem a Lisboa, deixou um belo testemunho de amor às pessoas mal amadas que viu nas ruas: “Amo-as, eu, as prostitutas porque sei que muito sofrem!!”.15 Esperava-o, em Coimbra, uma visita providencial: o Padre Matéo. O grande apóstolo do Sagrado Coração de Jesus veio a Portugal no final de 1927. Em carta de Fevereiro de 1928, desvendou um segredo: “À última [conferência] não fui. Desejara imenso ir. Oh, sim. Desejara. Não fui. Um sacrifício. Durante a conferência conversei com Deus, de joelhos. Pedi para que aqueles intelectuais vissem todos o que eu dantes não via e agora vejo. Mas pelo menos um, Senhor, disse eu.” 16 Em Junho de 1928, escreveu ao seu Bispo: “No conceito da sociedade que abandonei, o Padre é um homem inútil e prejudicial; a Religião, uma fábula e Deus, um mito. Eu mesmo assim considerava e confessava as coisas! Hoje, porém, vejo a verdade e quero convencer os que deixei. Com argumentos? Inútil. Como então? Subindo para que me vejam. Subir como? Desprendendo- -me do que tenho e do que sou”.17 Em Outubro de 1928 comprometeu-se por livre decisão, pelos Votos de Pobreza e de Obediência, prestados ao seu Bispo; e quis vivê-los como Padre diocesano, à imitação de Cristo que se fez pobre para nos “enriquecer com a Sua pobreza” (2 Cor 8,9). Deixou escrito: “Não ando sozinho. Quero viver da obediência aos Bispos; alimentar-me da autoridade deles como as crianças nos seios das mães se alimentam da substância delas. Fora da Igreja, nada de grande; contra ela, muito menos”.18 A 28 de Julho de 1929, com 41 anos, recebeu a Ordem de Presbítero das mãos do mesmo Bispo que o acolhera no Seminário, D. Manuel Luís Coelho da Silva. Quando se finou o seu Bispo, em 1936, escreveu: “Deu-me Ordens Sacras, fez-me Sacerdote: o maior de todos os títulos, para a maior de todas as gratidões”.19 Daí em diante passou a assinar o nome de baptismo acrescido do título, bem como de um significativo ponto de exclamação: P. Américo! Expres13 Penafiel. 1 (1972) 42. 14 O Gaiato. 17:441 (4 Fev. 1961) [3]. 15 Idem. 18:446 (15 Abril 1961) 3. 16 Idem. 20:496 (16 Março 1963) [1]. 17 Idem. 325 (18 Agosto 1956) [1]. 18 Pão dos Pobres. Paço de Sousa, 1984, vol. 4, p. 126. 19 Pão dos Pobres. Coimbra. 1941, vol. I, p.139. A VÁRIAS VOZES 237 sava assim a sua admiração e alegria que sentia ao ter sido ordenado Padre para o amoris officium (Santo Agostinho). E exprimiu: Já não tenho tempo de perder mais tempo! A 5 de Agosto de 1929, Segunda-feira, celebrou a sua segunda Missa Nova, na igreja de Paço de Sousa. Em carta, profundamente eucarística, ao amigo Simão Neves, diz: ”Meu irmão Jaime, ex-discípulo de Renan, Voltaire e outros, recebeu das minhas mãos pecadoras o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo.[…] Antes, fiz uma pequenina alocução acerca da presença real, do mistério da Eucaristia”.20 A presidência da comunidade é um traço da identidade presbiteral que o Padre Américo transmitiu desta forma: “O Sacerdote deve ser no mundo ponto de referência, para que todos possam atinar com o Céu, fixando nele o olhar. A palavra de ordem e voz de comando hão-de sair da sua boca, porquanto mais ninguém foi encarregado de tal missão (“Assim como Pai Me enviou, assim eu te envio”).21 Em 1947, emitiu esta bela Profissão de Fé: “Cuida-se que alguém possa ser simultaneamente protestante com os protestantes, judeu com os judeus, espírita com os espíritas, católico com os católicos, e assim por diante. Ora não é verdade. Isso seria não ser. Eu cá tenho só uma casaca. Casaca que não dou, nem viro, nem troco. Agora se eu disser que me faço tudo para todos, para que todos sejam meus, isso sim. Isso faço. Mas não deixo de ser católico. Católico, apostólico, romano. Sou da Santa Madre Igreja Católica, aonde espero morrer”.22 O Padre Américo afirmou a sua pertença inequívoca à Igreja de Cristo e tem a consciência clara da missão do Presbítero: “Ai de mim se eu não fosse da Igreja! Que podia eu sem ela? E que não posso eu com ela? Mesmo que eu fosse sequestrado, reduzido a silêncio, posto a tormentos – todo o mal que o homem pode e sabe fazer – que importa? Sendo da Igreja não estou nunca sozinho. Eu acredito na comunicação dos Santos!”.23 3. Ao serviço dos Pobres Em 1965, alguns Bispos portugueses afirmaram que o Padre Américo tinha o carisma da evangelização dos Pobres. Ele próprio contou o seguinte: “Depois de ter dobrado cabos e continentes e malhado com os meus ossos, a altas horas da vida, em comunidades religiosas, tenho sido sempre na mesma: rasteirinho. 20 O Gaiato. 16:401 (25 Julho 1959) [1]. 21 Pão dos Pobres. Coimbra, 1942, vol.2 p. 52. 22 O Gaiato. 4:81 (5 Abril 1947) 2. 23 Pão dos Pobres. Paço de Sousa, 1984, vol.4, p. 280. 238 HUMANÍSTICA E TEOLOGIA Desejei entrar nas sagradas letras, porém houve de desistir por não chegar à craveira; vendo os meus superiores que eu não dava tábua lisa, aproveitaram a casqueira e mandaram-me visitar Pobres a quem dei sopa bem feita, no rolar de muitos anos”.24 Na secção “Sopa dos Pobres”, da sua pena, no jornal diocesano Correio de Coimbra, desde 1932, referiu-se à missão confiada pelo seu Bispo: “foi inaugurada por ele no dia 19 de Março de 1932. Nessa data andava eu enfermo e, como não pudesse trabalhar, roguei ao então meu prelado que me deixasse ao menos visitar Pobres e cuidar da sopa deles, serviço este compatível com as minhas dores de cabeça de então”.25 A Sopa dos Pobres funcionava na rua da Matemática, em Coimbra, sob o patrocínio de S. José. O operário chamado em dor, para cuidar dos aflitos, entregou-se em pleno e com entusiasmo a visitar os Pobres, os Doentes e os Reclusos, com licença do seu Bispo, como pregoeiro da doutrina dos Apóstolos: “visitar os órfãos e as viúvas nas tribulações” (Tg 1,27). E a dar de comer, cumprindo a ordem das Obras de Misericórdia, segundo disse: O Evangelho entra pelo estômago. Ao serviço dos Pobres, escreveu com satisfação: “A hora em que hoje tiro da cabeça um piolho ocasional apanhado à beira dos catres, é para mim muitíssimo mais alegre do que foi a vida da minha mocidade inteira, passada nas delícias do paraíso terreal!” 26 Não tardou que fosse tido por imprudente. O Bispo de Coimbra chamou-o a contas e deu esta “resposta pronta e textual: a sua vida é um mistifório.” 27 A seguir, foi tomado por indesejável na sua actuação entre os doentes dos hospitais e sanatórios de Coimbra. O Bispo D. Manuel Luís ignorou o dito para o desterrar. O motivo foi este: “De uma vez fui acusado ao meu superior, por rebelde. Pediu-se a minha deportação para longe da cidade. Moveram-se grandes empenhos neste sentido. Em vão. Os servos do Evangelho podem calcar serpentes que nada os molesta. Qual a causa de tanta afronta? Um doente pulmonar a quem mandaram embora, sem meios, sem família, sem nada”.28 Também foi mandado retirar de membro activo no Patronato das Prisões, pelo então ministro da Justiça, dadas as suas inconveniências. É notório que era bem acolhido pelos reclusos: “Um dia chegou o rancho às grades; era o último dos meus trabalhos. Fomos todos comer. Dirige-me a uma bacia que estava no fundo da sala, lavar as mãos. Volto-me para as limpar, e dou de cara com dezoito reclusos, que tantos eram os ocupantes da cadeia, cada um com sua toalha 24 Pão dos Pobres. Coimbra, 1942, vol. 2, p. [119]. 25 Pão dos Pobres. Coimbra, 1941, vol.1, p. [1]. 26 Pão dos Pobres. Coimbra, 1942, vol. 2, p. 209. 27 Pão dos Pobres. Coimbra, 1941, vol. 1, p. 2. 28 O Gaiato. 11:282 (18 Dez. 1954) [1]. A VÁRIAS VOZES 239 nos braços e estes estendidos para mim: Limpe-se aqui! Eu limpei as minhas mãos pecadoras dezoito vezes, a dezoito toalhas – Ande, Padre, que a toalha é minha.” 29 O caminho era esperar contra toda a esperança. E tomou o exemplo de S. João Bosco, como revelou: “Ele foi, no seu tempo, o apóstolo do garoto das ruas. Os biógrafos dizem o que ele fez, não o que sofreu”.30 Assim começou a dar-se às crianças da rua. “Foi no Beco do Moreno, em Maio de trinta e cinco, que o miúdo me apareceu.[…] Passava eu por ali, naquele mês e ano, quando um garoto da rua embarga o meu caminho num angustioso e imperativo venha ver o meu pai que está na cama e a gente passamos fome. […] Quantas vezes não fui eu assobiado às portas daquela casa, só porque uso batina e digo Missa no altar – quantas! Nós éramos conhecidos. O Padre é o grande mal do mundo, assim diziam os companheiros mai-los livros que ele compunha; corrê-lo da sociedade é um grande benefício”.31 Então, deu corpo às Colónias de Férias dos Garotos da Baixa de Coimbra, que começaram na Paróquia de S. Pedro de Alva, concelho de Penacova, onde fora pregar, cujo Pároco, Padre Simões e Sousa, o incentivou, dizendo, que não deixasse arrefecer a ideia. Depois, estendeu-se a Vila Nova do Ceira e Miranda do Corvo. Nos livros de registo constam na casa dos mil, os Rapazes que beneficiaram. Em plena II Guerra Mundial, a 7 de Janeiro de 1940, começava a desabrochar o que hoje se chama Obra da Rua, ao acolher os primeiros Rapazes na Casa do Gaiato, em Miranda do Corvo, sob a protecção do Santíssimo Nome de Jesus. Não lhe bastou saber que Deus é Pai, mas saiu em ajuda do Próximo, como defensor dos pequenos, em nome de Deus: “Pai dos órfãos e tutor das viúvas, é Deus em Sua morada santa” (Sl 68,6). Foram os primeiros passos da sementeira que consumiu o Padre Américo até ao desgaste final. O nome de pai passou o seu tempo, como dom de Deus, pois o “justo deixará memória eterna” (Sl 112,6). Conhecido por Pai Américo, a lição da sua vida “resume-se toda naquela evolução fonética e semântica”, na expressão certeira de D. António Ferreira Gomes. No centenário do seu nascimento (1987), a Conferência Episcopal Portuguesa afirmou que a História da Igreja entre nós, neste século, não se poderá fazer sem lhe reconhecer lugar de primeiro plano. Neste sentido, foi um dom à Igreja e ao mundo, no anúncio da Palavra da fé e com o seu testemunho de vida, no serviço humilde da Caridade, em nome da Igreja e na pessoa de Cristo Cabeça, Pastor e Servo: “Sim; sirvo os Pobres nas cadeias, nos hospitais, nos tugúrios, nos caminhos – e no Altar”.32 29 Pão dos Pobres. Coimbra, 1943, vol. 3, p. 195. 30 Pão dos Pobres. Paço de Sousa, 1984, vol. 4, p. 155. 31 Obra da Rua. Paço de Sousa, 1983, p.9, 11. 32 Coimbra, 1943, vol.3, p. 94. 240 HUMANÍSTICA E TEOLOGIA Na verdade, uma das chaves teológicas de leitura em que se pode encontrar o Padre Américo Monteiro de Aguiar é o tema dos Pobres e da Pobreza, como preconizava o Papa João XXIII e a Constituição dogmática Lumen Gentium proclamou: a Igreja reconhece nos Pobres e nos que sofrem a imagem do seu Fundador pobre e sofredor. Finalmente, deixou-nos, na sua última vontade: Não desejo os paramentos do altar, mas somente a batina e descalço. Padre Manuel António dos Santos Carvalho Mendes