“Quam bonum est et quam jucundum, habitare fratres in unum”
Cardeal Bartolucci: “Esta é a força sempre nova do cristão que, como São Paulo, transmite aquilo que recebeu da fonte da graça”.
Na manhã da festa da Imaculada Conceição, o Maestro Domenico Bartolucci, 93 anos, criado Cardeal no dia 20 de novembro passado pelo Papa Bento XVI, celebrou a Santa Missa segundo o rito antigo na Igreja Romana da Santissima Trinità dei Pellegrini.
Bartolucci é símbolo vivo daquela grande música sacra, fundamentada sobre o canto gregoriano e polifônico, que, por séculos, se fez uma só coisa com a liturgia católica latina.
Mas o seu episódio pessoal, quando sofreu, em 1997, a expulsão brutal do coro papal da Capela Sistina, do qual era maestro “perpétuo”, é também um símbolo do exílio ao qual foi condenada esta grande música litúrgica.
Eis como o Cardeal Bartolucci traçou as duas faces desse drama, na parte central de sua homilia da missa de 8 de dezembro:
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“Quem não ama a beleza, não ama a Deus”
de Domenico Bartolucci
[...] No meu sacerdócio, eu não fui um pregador, um teólogo, nem um pastor de uma diocese e nunca pronunciei grandes discursos, todavia, tenho procurado frutificar os dons que o Senhor me deu e o fiz através da música sacra, uma nobre arte capaz de penetrar efetivamente a alma dos fiéis, convidando-os à conversão, à alegria, à oração.
Particularmente na civilização ocidental, a música é a arte que, mais do que qualquer outra, deve agradecer à Igreja. Nela, realmente, nasceu, cresceu e se desenvolveu. Como tive a oportunidade de dizer já na ocasião do concerto oferecido ao Papa na Capela Sistina, os coros representaram o berço da arte musical. A própria Igreja dos primeiros séculos, tão logo teve a oportunidade de dar glória ao Senhor publicamente, empenhou-se na criação das “scholae cantorum”, que, gradualmente, ao longo dos séculos, nos deixaram em herança o patrimônio do canto sacro, o canto gregoriano e a polifonia, instrumentos autênticos de pregação, que freqüentemente, por causa de sua intensidade, conseguem fazer perceber a mensagem contida na Palavra de Deus.
Este patrimônio que hoje devemos necessariamente recuperar e que, infelizmente, tem sido negligenciado, nunca teve a intenção de se estabelecer como um “ornamento” [ndt: no sentido de adorno, enfeite] da celebração litúrgica. O cantor, como ensinaram os nossos mestres do passado, é simplesmente um ministro que exprime e torna vivo, da melhor maneira possível, o texto sagrado e a palavra de Deus. Muito freqüentemente nós, músicos da Igreja, temos sido acusados de querer impedir a participação dos fiéis nos ritos sagrados e eu mesmo, como diretor da Capela Sistina, tive de enfrentar momentos difíceis nos quais a Sagrada Liturgia sofria banalizações e experimentações áridas. Hoje, mais do que nunca, devemos assumir a responsabilidade de analisar criticamente o quanto foi feito e devemos ter a coragem de reafirmar a importância das nossas tradições de beleza que exaltam e dão glória a Deus e que são também eficazes meios de conversão. Recordo-me, por ocasião dos concertos da Capela Sistina, o entusiasmo do povo, mesmo de países como Turquia e Japão, onde foram registradas diversas conversões ao catolicismo. “Quem não ama a beleza, não ama a Deus!”, disse o Santo Padre em uma das suas homilias. Precisamos, portanto, saber como nos reapropriarmos de nós mesmos e de quanto a tradição eclesial nos deu.
Como escreveu Bento XVI às vésperas da assembléia geral dos bispos italianos reunida em Assis, em novembro passado: “Todo verdadeiro reformador, na verdade, é um obediente à fé: não se move de forma arbitrária, nem arroga para si qualquer poder discricionário sobre o rito; não é o dono, mas o guardião do tesouro instituído pelo Senhor e a nós confiado”.
Desejando seguir essa descrição, podemos olhar precisamente para a figura de Maria: ela foi a primeira guardiã do Verbo Encarnado, a serva do Senhor que soube agir sempre de acordo com a sua vontade.
Como Maria, também nós somos chamados a ser obedientes na fé, sem nos mover de forma arbitrária, mas sabendo acolher o que nos foi entregue. Esta é a nossa força, esta é a força sempre nova do cristão que, como São Paulo, transmite aquilo que recebeu da fonte da graça que, para ele, assim como para nós, é o encontro com o Senhor.
Também por isso, encontrar-me aqui, na igreja da Trinità dei Pellegrini, onde é vivo o empenho em favor da difusão da liturgia tradicional, é para mim motivo de alegria e esperança que me faz tocar com a mão alguns frutos que se seguiram à publicação do motu proprio “Summorum Pontificum”.
Em um momento difícil, somos todos chamados em nosso serviço a nos unirmos ao sucessor de Pedro: como Pedro, também nós devemos nos converter ao Senhor crucificado e ressuscitado, não nos desanimando nunca diante da realidade da cruz e com a certeza de tomar parte um dia de sua própria ressurreição.
Esse, antes do nosso, foi o caminho de Maria, um caminho que a Igreja procurou propor como modelo e que mesmo os fiéis quiseram exaltar e exprimir na riquíssima devoção popular. Também eu, entre as músicas compostas desde quando era um jovem seminarista, tenho dedicado grande parte a Maria. A festa da Imaculada Conceição me faz pensar em tantas músicas escritas em honra a Nossa Senhora: missas, laudes, motetos, magnificat, Stabat Mater, mas me faz pensar especialmente nas numerosas antífonas marianas que o povo soube fazer suas e que cantava em honra à Mãe celeste, encontrando nela o ícone da fé. [...]
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Uma pequena nota. Quando Bartolucci, em sua homilia, disse que o canto gregoriano e a polifonia “nunca tiveram a intenção de se estabelecer como um ‘ornamento’ da celebração litúrgica”, ele inverte com destreza a imprudente tese de seu atual, desmerecedor, sucessor na direção Capela Sistina, Massimo Palombella , que, em um recente editorial na revista “Armonia di voci”, escreveu que apenas “com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II a música não se põe mais como um elemento ‘ornamental’ do rito”.