A Fraternidade Sacerdotal São Pio X celebra seus 40 anos. É o fim da travessia pela deserto, como para os hebreus nos tempos de Moisés?
Creio que o que vivemos se parece mais com uma dessas incursões dos exploradores que entrevêem a terra prometida, sem que as circunstâncias lhes permitam adentrá-la.
Para evitar alguma falsa interpretação da imagem utilizada, quero precisar que continuamos afirmando sempre e firmemente que somos católicos e que, com a ajuda de Deus, queremos permanecer como tais. No entanto, para a Igreja toda, esta crise se parece muito com a travessia pelo deserto, com a diferença de que o maná é muito mais difícil de ser encontrado. Há sinais alentadores, sobretudo da parte de Roma, mas infelizmente estão juntos de outros sinais bem preocupantes. Algumas fiapos de grama no deserto…
Apesar de tudo, como se desenvolve a Fraternidade Sacerdotal São Pio X em todo o mundo?
Com efeito, a Fraternidade se desenvolve um pouco por toda parte. Algumas regiões tem um impulso maior que outras, penso, por exemplo, nos Estados Unidos, mas o grande obstáculo que encontramos é a falta de sacerdotes. Falta-nos desesperadamente sacerdotes para responder como deveríamos aos pedidos de auxílio que nos chegam de todas as partes. A cada nomeação fazemos uma escolha que deixa sem resposta um ou vários grupos de fiéis. Por um lado, é antes um bom sinal, pois mostra claramente o desenvolvimento de nossa obra, mas também é muito doloroso. Pensem nos países de missão, em particular na África ou no Brasil. Se pudéssemos enviar para lá uns cinqüenta sacerdotes seria um grande alívio. A Ásia também espera…
Dom Lefebvre dizia que para as autoridades romanas as cifras deste crescimento eram mais eloqüentes que os argumentos teológicos? Continua sendo assim?
Não sei se devemos dizer as “cifras” ou os “feitos”. De todo modo, ambos pertencem à mesma ordem de coisas. Segundo um velho adágio, contra factum non fit argumentum, contra fatos, não há discussão possível; isto conserva toda a sua força. E a afirmação de Dom Lefebvre é muito correta. Destaquemos que não é tanto o número o que impressiona Roma, pois continuamos a ser uma quantidade insignificante no conjunto do Corpo Místico. Esses frutos magníficos, que certamente são, segundo as próprias palavras de um alto prelado romano, a obra do Espírito Santo, são o que move as autoridades romanas ao voltar seus olhares para nós. Tanto mais quanto se trata de frutos frescos que crescem no meio do deserto.
Neste mês de setembro, os relatórios sobre a aplicação do Motu Proprio com referência à missa tradicional devem ser enviados à Santa Sé. São poucos os bispos que aplicaram generosamente as diretrizes romanas. Como o senhor explica esta reticência, ou melhor, esta resistência?
Do mesmo modo que a nova missa expressa um certo espírito novo que é o do Vaticano II, assim também a missa tradicional expressa o espírito católico. Os que se agarram com unhas e dentes ao Vaticano II por verem nele um novo ponto de partida da Igreja, ou os que consideram que com o Vaticano II uma página da história da Igreja foi deixada para trás definitivamente, são quem simplesmente não podem aceitar a co-existência de uma missa que recorda exatamente tudo o que pensavam ter deixado eternamente para trás. Há dois espíritos diferentes encarnados em duas missas. É um fato! E os dois não caminham juntos! Encontra-se no católico moderno um ódio semelhante para com o rosário, por exemplo. E tudo se relaciona. Vemos na questão da missa um exemplo muito bom da complexidade da crise que sacode a Igreja.
O senhor quer dizer que hoje, na Igreja, por detrás de uma fachada de unidade, esconderiam-se fraturas não só entre os episcopados locais e Roma, mas mesmo Roma entre diversas tendências opostas? O senhor tem provas?
Oh ! Sim, lamentavelmente estamos nos tempos anunciados em que se verão Cardeal contra Cardeal, Bispo contra Bispo. Este tipo de disputa é geralmente muito discreto e escapa à vista dos fiéis. Mas nesses últimos tempos, em diversas ocasiões, converteu-se em algo público e notório, como no ataque gratuito do Cardeal Schönborn contra o Cardeal Sodano. Isso se pareceu muito com um acerto de contas. Mas não é segredo que tendências opostas se chocam mesmo em Roma. Conhecemos vários fatos, mas não creio que seja útil para os fiéis que essas coisas sejam reveladas.
Em uma recente conferência no seminário da Fraternidade São Pedro (1), Mons. Guido Pozzo, secretário da Comissão Ecclesia Dei, esforça-se em dar uma prova de continuidade doutrinal entre Vaticano II e a Tradição. Cita, com este fim, a questão do subsistit in e a do ecumenismo. Esses exemplos lhe parecem convincentes?
Eu não diria convincentes, mas surpreendentes. Esta conferência é a aplicação muito lógica dos princípios enunciados em dezembro de 2005 por Bento XVI. E nos oferece uma apresentação do ecumenismo bastante diferente do que temos escutado durante quarenta anos…, uma apresentação mesclada com os princípios eternos sobre a unidade da Igreja e sua perfeição única, sobre a exclusividade da salvação. Claramente se vê uma tentativa de salvar o ensinamento de sempre e, ao mesmo tempo, um Concílio reconsiderado sob uma luz tradicional. A mescla, ainda que interessante, deixa ainda abertas questões de lógica sobre o papel que desempenham as outras confissões cristãs… chamadas, inclusive por Pio XII, de “falsas religiões”. Eles se atreverão, em algum momento, a utilizar novamente este termo?
Mons. Pozzo propõe em sua extensa conclusão um Concílio Vaticano II revisado – se não corrigido –, denunciando o relativismo, um certo “pastoralismo”, uma espécie de “dialoguismo” excessivo… O senhor pensa que esta apresentação é capaz de chegar à unanimidade em Roma e nas dioceses? Como o senhor julga esta versão revisada do Concílio?
É interessante no sentido de que se nos apresenta um novo Vaticano II, um Concílio do qual, de fato, nunca tivemos conhecimento, e que se distingue daquele que nos tem sido apresentado nos últimos quarenta anos. Uma espécie de nova pele! É interessante, sobretudo, porque a tendência ultra-moderna é condenada muito fortemente. Nos é apresentado uma espécie de Concílio moderado ou “acalmado”. Permanece, no entanto, a questão da recepção desta fórmula nova, certamente julgada como muito tradicional pelos modernos e não suficientemente tradicional por nós. Digamos que uma boa parte de nossos ataques se vê justificada, uma boa parte do que condenamos é condenado. Mas se certas coisas são condenadas, a divergência permanece sendo grande sobre as causas. Já que, enfim, se foi possível semelhante desorientação acerca do Concílio, e em tal escala, e com tal amplitude… é necessária uma causa proporcional! Se comprovam semelhante divergência de interpretação a propósito dos textos do Concílio, há de se concluir algum dia que as deficiências dos textos têm sua parte de culpa.
Alguns no seio da Tradição pensam que a crise deveria terminar instantaneamente, realizando a passagem desta crise até sua solução de uma só vez. Em sua opinião, trata-se de um sinal de confiança sobrenatural ou de impaciência demasiadamente humana? Em uma solução gradual da crise, quais são as etapas positivas já verificadas? Quais são as que o senhor desejaria ver no futuro?
A solução instantânea da crise, como alguns imaginam, não pode provir senão de um milagre ou de uma grande violência. Se não ocorre assim, permanece então a solução gradual. Mesmo que, em potência absoluta, não se pode excluir que Deus possa fazer tal milagre, todavia, de maneira habitual, Deus governa sua Igreja de outra maneira, por uma cooperação mais normal das criaturas e de seus santos. Em geral, a reabsorção de ma crise dura ao menos tanto tempo como sua ativação, inclusive mais. O caminho da reconstrução é longo, o trabalho é imenso. Mas, acima de tudo, a escolha dos homens será determinante. Se a política de nomeações dos bispos finalmente mudar, podemos ter esperança. Na mesma ordem, seria necessária uma profunda reforma do ensinamento das universidades pontifícias, da formação dos sacerdotes nos seminários. Trata-se de trabalhos de longo prazo que, por ora, são ainda sonhos, mas que em um período de dez anos poderiam já tomar forma concreta. Tudo depende primeiramente do Papa. No momento, o positivo é o reconhecimento de que muitas coisas vão mal… Aceita-se dizer que há uma enfermidade, uma grande crise na Igreja. Eles irão muito mais longe do que isso? Veremos…
Com o que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X pode contribuir, concretamente, para a solução desta crise sem precedentes? Que papel podem ter os fiéis da Tradição nesta obra de restauração? O que o senhor espera da jovem geração que hoje tem 20 anos e que terão 60… dentro de 40 anos?
Recordar que a Igreja tem um passado que ainda hoje permanece completamente válido. Um novo olhar, não empoeirado, sobre a Tradição da Igreja é uma contribuição decisiva para a solução da crise. A isso devemos acrescentar o chamar a atenção sobre o poder da Missa Tradicional, da missão e do papel do sacerdote tal como quer Nosso Senhor, segundo sua imagem e segundo seu Espírito. Quando perguntamos aos sacerdotes que se aproximam da Fraternidade o que esperam de nós, eles nos respondem primeiro que esperam a doutrina. E isso mesmo antes da Missa. É surpreendente, mas ao mesmo tempo é um bom sinal. Os fiéis têm o importante papel do testemunho, de mostrar que a vida cristã como sempre foi entendida, com suas exigências e o respeito à lei de Deus, é perfeitamente possível no mundo moderno. A vida cristã levada à prática é um exemplo muito concreto do que tem necessidade o homem da rua. E quanto à geração dos que hoje têm 20 anos, vejo que ela está à espera, pronta para a aventura da Tradição, sabendo bem que lhes é oferecido fora dela é pura aparência. Estamos em um ponto de inflexão para a reconstrução do futuro, e mesmo que isso ainda não seja visto claramente, creio que tudo é possível.
(1) Conferência dada por Mons. Guido Pozzo, em 2 de julho de 2010, no seminário de Wigratzbad, intitulada, “Aspectos da eclesiologia católica na recepção do Vaticano II” [tradução do Fratres in Unum aqui] . Ver nosso comentário em DICI n. 220 de 7 de agosto de 2010, Vaticano II,um debate entre Romano Amerio, Mons. Gherardini e Mons. Pozzo”. [tradução do Fratres in Unum aqui].
fonte:fratres in unum