sábado, 28 de abril de 2012

Carta de Bento XVI à Conferência Episcopal Alemã a respeito do “Pro Multis”: “O respeito pela palavra de Jesus é a razão para a formulação da oração”.

 

Fonte: Rorate-Caeli | Tradução: Fratres in Unum.com
Excelência! Venerável, caro senhor Arcebispo!
Durante a sua visita de 15 de março de 2012, o senhor me fez saber que, com relação às palavras “pro multis” no canon da Missa, ainda não existe um consenso entre os bispos de língua alemã. Agora parece existir o perigo de que, com o próximo e esperado lançamento do “Gotteslob” ["Livro de Orações"], alguns locais de língua alemã mantenham a tradução “por todos”, ainda que a Conferência dos Bispos tenha concordado em usar o “por muitos”, como é desejo da Santa Sé. Eu tinha lhe prometido que me pronunciaria por escrito sobre esta séria questão para evitar uma divisão no nosso mais íntimo local de oração. A carta, que eu envio através do senhor aos membros da Conferência Episcopal Alemã, também será enviada aos outros bispos de língua alemã.
Permita-me primeiro dizer algumas palavras acerca da origem do problema. Nos anos 60, quando o Missal Romano foi traduzido para o alemão sob a responsabilidade dos bispos, houve um consenso exegético de que as palavras “muitos” e “muito” encontradas em Is. 53, 11 em diante, era uma expressão hebraica que indicaria a comunidade, o “todos”. A palavra “muitos” na narração de Mateus e de Marcos também foi considerada um semitismo a ser traduzido como “todos”. Isto também tinha relação direta com o texto latino que seria traduzido, em que o “pro multis” nas narrações do Evangelho se referiam a Isaías 53 e deviam, portanto, ser traduzido como “por todos”. Este consenso exegético se esfacelou; ele não mais existe. Na tradução alemã da Sagrada Escritura, a narração da Última Ceia diz: “Este é meu Sangue, o Sangue da Aliança, que é derramado por muitos” (Marcos 14, 24, cf. Mateus 26, 28). Isto indica algo muito importante: a exposição do “pro multis” como “por todos” não foi uma tradução pura, senão uma interpretação que foi e continua sendo razoável, mas já é mais que tradução e interpretação.
Esta mistura de tradução e de interpretação pertence, em retrospecto, aos princípios que, imediatamente após o Concílio, nortearam a tradução dos livros litúrgicos para o vernáculo. Entendeu-se quão longe a Bíblia e os textos litúrgicos estavam ausentes da linguagem e do pensamento do homem moderno, de modo que mesmo traduzidos eles permaneceriam largamente incompreensíveis aos participantes do culto divino. Houve um novo empenho para que os textos sagrados fossem revelados, nas traduções, aos participantes da celebração, mas ainda assim eles permaneceriam alijados de seu mundo, e agora sim seriam ainda mais visíveis nesse alijamento. Sentiam-se não somente justificados, mas mesmo obrigados a misturar a interpretação na tradução para que, desse modo, se encurtasse o caminho para o povo, cujas mentes e corações poderiam ser alcançados através dessas palavras.
Até certo ponto, o princípio de uma substantiva, mas não necessariamente justificada tradução literal dos textos-fontes permanece. Quando eu rezo as orações litúrgicas em várias línguas, noto que é frequentemente difícil encontrar um meio termo entre as várias traduções e que o texto base subjacente muitas vezes permanece visível somente quando visto de longe. Além disso, somam-se as debilitantes banalizações que são verdadeiras perdas. Por causa disso, através dos anos, ficou cada vez mais claro para mim que o princípio da equivalência estrutural, mas não literal, enquanto regra de tradução, tem seus limites. Seguindo tais raciocínios, a instrução de tradução Liturgiam authenticam, publicada pela Congregação para a Doutrina da Fé no dia 28 de março de 2001, mais uma vez colocou a tradução literal em destaque, mas, é claro, sem impor um único vocabulário. A importante idéia que se encontra na base dessa instrução já se encontra expressa na distinção entre tradução e interpretação, como escrevi acima. Isto é necessário tanto para a Palavra das Escrituras quanto para os textos litúrgicos. Por um lado, a Palavra sagrada deveria, se possível, apresentar-se a si mesma, mesmo com a estranheza e perguntas que ela contém em si; por outro lado, à Igreja foi dada a missão de interpretar, dentro dos limites do nosso entendimento, a Boa Nova que o Senhor quis que recebêssemos. Uma tradução empática também não pode substituir a interpretação: faz parte da estrutura da Revelação que a Palavra de Deus seja lida na comunidade interpretativa da Igreja, que a fidelidade e a compreensão sejam combinadas. A Palavra deve existir como ela mesma, em sua própria forma, ainda que estranha; a interpretação deve ser medida pela fidelidade à própria Palavra, mas, ao mesmo tempo, ser acessível ao ouvido moderno.
Neste contexto, a Santa Sé decidiu que na nova tradução do Missal as palavras “pro multis” devem ser traduzidas enquanto tais e não, ao mesmo tempo, serem interpretadas. A simples tradução “por muitos” deve substituir o interpretativo “por todos”. Gostaria de destacar que tanto em Mateus como em Marcos não há artigo, de modo que não é “pelos muitos”, mas “por muitos”. Tendo entendido, como espero, a decisão fundamental sobre a ordenação da tradução e da interpretação, compreendo que isso represente um enorme desafio para todos os que têm a missão de interpretar a Palavra de Deus na Igreja. Sendo que, para os fiéis regulares, isso parecerá, quase inevitavelmente, uma ruptura no coração daquilo que é mais sagrado. Perguntarão: Cristo não morreu por todos? A Igreja mudou seu ensinamento? Isso é possível e permitido? Esta é uma reação contra a herança do Concílio? Todos sabemos, pela experiência dos últimos 50 anos, quão profundamente as mudanças nas formas e textos litúrgicos afetam as pessoas; quanto uma mudança num texto tão central afeta as pessoas. Embora este seja o caso, há muito se defendeu que a tradução de “muitos” fosse precedida por uma profunda catequese sobre a diferença entre tradução e interpretação, uma catequese na qual os bispos devem informar seus padres que, por sua vez, devem explicar de forma clara para os fiéis do que se trata a questão. Esta catequese é um pré-requisito básico antes que a nova tradução entre em vigor. Até onde eu saiba, uma tal catequese ainda não foi dada nas localidades de língua alemã. A intenção da minha carta, caros irmãos, é de pedir urgentemente que uma tal catequese seja estabelecida, para que então seja discutida com os padres e seja imediatamente disponibilizada aos fiéis.
Tal catequese deve primeiramente explicar porque, depois do Concílio, a palavra “muitos” foi traduzida por “todos” no Missal: para claramente expressar a universalidade da salvação desejada por e advinda de Jesus. Isso leva à seguinte pergunta: se Jesus morreu por todos, por que as palavras da Última Ceia dizem “por muitos”? Além disso, Jesus, de acordo com Mateus e Marcos, disse “por muitos”, mas de acordo com Lucas e são Paulo, disse “por vós”. Tal fato estreita ainda mais a questão. Mas, a partir daqui, também podemos chegar a uma solução. Os discípulos sabem que a missão de Jesus os transcende e ao grupo dos apóstolos; que Ele veio para reunir todos os filhos de Deus dispersos (conforme Jo 11, 52). Este “por vós” torna a missão de Jesus bastante concreta para os presentes: eles não são algum elemento anônimo de alguma vasta totalidade, mas todos sabem que o Senhor morreu particularmente por mim, por nós. “Por vós” alcança o passado e o futuro; eu fui nomeado muito pessoalmente; nós, que aqui estamos, somos conhecidos [pessoalmente] por Jesus. Nesse sentido, “por vós” não é uma constrição, mas uma especificação que é válida para cada comunidade que celebra a Eucaristia, que une a si mesma ao amor de Cristo. Nas palavras da consagração, o Canon Romano uniu as duas leituras bíblicas e lê: “por vós e por muitos”. Na reforma litúrgica, esta fórmula foi levada a todas as orações.
Mas, novamente: por que “por muitos”? O Senhor não morreu então por todos? O fato de Jesus Cristo, enquanto Filho de Deus encarnado, ser o Homem para todos os homens, o novo Adão, pertence às certezas básicas da nossa fé. Gostaria de lembrá-los de somente três passagens das Escrituras: Deus deu Seu Filho “por todos nós”, Paulo escreve na Carta aos Romanos (Rom, 8, 32). “Um só morreu por todos”, São Paulo diz na Segunda Carta aos Coríntios, sobre a morte de Jesus (1Cor 5, 14). Jesus “Se deu em resgate por todos”, diz a 1ª Carta a Timóteo (1Tim 2, 6). Mas então podemos nos perguntar novamente: quando tudo isso é tão claro, por que então a Oração Eucarística diz “por muitos”? Bem, a Igreja tomou esta formulação da narrativa da instituição do Novo Testamento. Ela assim o faz por respeito à Palavra de Jesus, para permanecer fiel a Ele também na Palavra. O respeito pela palavra de Jesus é a razão para a formulação da oração. Mas então perguntamos: por que o próprio Jesus falou isso? O verdadeiro motivo para isso é que Jesus, dessa forma, Se revelou como o servo de Deus de Is. 53, Se identificou como a forma que a palavra do profeta esperava. Respeito da Igreja pela Palavra de Jesus, fidelidade a Jesus Palavra das Escrituras: nesta dupla fidelidade se encontra a base sólida para a fórmula “por muitos”. É nesta cadeia de reverente fidelidade que encontramos a tradução literal da Palavra das Escrituras.
Como dissemos anteriormente, o “por vós” na tradição Luca-Paulina não constringe, senão especifica, de modo que podemos afirmar que a dialética de “muitos”- “todos” tem seu próprio significado. “Todos” existe num nível ontológico – o ser e a ação de Jesus inclui toda a humanidade, passada, presente e futura. Mas, de fato, na comunidade concreta daqueles que celebram a Eucaristia, isso envolve somente “muitos”. Deste modo, podemos ver um significado triplo no ordenamento de “muitos” e de “todos”. Em primeiro lugar, deveria significar para nós, que podemos sentar à Sua mesa, surpresa, alegria e gratidão pelo fato d’Ele ter nos chamado, de estarmos com Ele e de podermos conhecê-Lo. “Graças ao Senhor, que por misericórdia me chamou à Sua Igreja …”. Em segundo lugar, é também uma responsabilidade. Como o Senhor alcança os outros – “todos” – a Seu próprio modo permanece um mistério. Mas, sem dúvida, é uma responsabilidade ser chamado para Ele e para Sua mesa, de modo que eu possa ouvir: por vós, por mim Ele sofreu. Os muitos carregam a responsabilidade por todos. A comunidade dos muitos deve ser a luz das velas, a cidade nas montanhas, fermento para todos. É um chamado que se aplica a todos pessoalmente. Os muitos, que somos nós, devem conscientemente praticar sua missão em responsabilidade pela totalidade. Finalmente, podemos adicionar um terceiro aspecto. Na sociedade moderna, temos a impressão que estamos longe de ser “muitos”, senão bem poucos – um pequeno número que continuamente diminui. Mas não – nós somos “muitos”: “Depois disso, eis que vi uma grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” nos diz o Apocalipse de João (Ap 7, 9). Somos muitos e representamos todos. Dessa maneira ambas as palavras, “muitos” e “todos” devem ficar juntas e se relacionam entre si na responsabilidade e na promessa.
Excelência, amados irmãos bispos! Com o que escrevi acima, desejei indicar o conteúdo básico da catequese que deve preparar, o quanto antes, padres e leigos, para a nova tradução. Espero que tudo isso possa servir para uma celebração mais profunda da Eucaristia e se torne parte de uma grande missão que se nos desvela no “Ano da Fé”. Espero que esta catequese seja logo apresentada para que se torne parte de uma renovação litúrgica pela qual o Concílio trabalhou desde sua primeira sessão.
Com minhas bênçãos Pascais, permaneço no Senhor,
Benedictus PP XVI