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CARTA DO SUMO PONTÍFICE BENTO XVI PARA PROCLAMAÇÃO DE UM ANO
SACERDOTAL POR OCASIÃO DO 150.º ANIVERSÁRIO DO 'DIES NATALIS'
DO SANTO CURA D’ARS
Todos nós, sacerdotes, deveríamos sentir que nos tocam pessoalmente estas palavras que ele [João Maria Vianney] colocava na boca de Cristo:
«Encarregarei os Meus ministros de anunciar aos pecadores que estou sempre pronto a recebê-los, que a minha Misericórdia é infinita» [24].
Do Santo Cura d’Ars, nós, sacerdotes, podemos aprender não só uma inexaurível confiança no Sacramento da Penitência, que nos instigue a colocá-lo no centro das nossas preocupações pastorais, mas também o método do «diálogo de Salvação», que nele se deve realizar.
O Cura d’Ars tinha maneiras diversas de comportar-se, segundo os vários penitentes.
Quem vinha ao seu Confessionário, atraído por uma íntima e humilde necessidade do perdão de Deus, encontrava nele o encorajamento para mergulhar na «torrente da Misericórdia Divina» que, no seu ímpeto, tudo arrasta e depura.
E se aparecia alguém angustiado com o pensamento da sua debilidade e inconstância, temeroso por futuras quedas, o Cura d’Ars revelava-lhe o Segredo de Deus, com um discurso de comovente beleza:
«O bom Deus sabe tudo. Ainda antes de vos confessardes, Ele já sabe que voltareis a pecar, e todavia perdoa-vos.
Como é grande o Amor do nosso Deus, que vai até ao ponto de esquecer voluntariamente o futuro, só para poder perdoar-nos!» [25].
Diversamente, a quem se acusava de forma tíbia e quase indiferente, expunha, através das suas próprias lágrimas, a séria e dolorosa evidência de quão «abominável» era aquele comportamento:
«Choro, porque vós não chorais!» [26], exclamava ele.
«Se ao menos o Senhor não fosse assim tão bom! Mas é assim tão bom! Só um bárbaro poderia comportar-se assim, diante dum Pai tão bom!» [27]
E [o Santo Cura] fazia brotar o arrependimento no coração dos tíbios, forçando-os a verem, com os próprios olhos, o sofrimento de Deus, causado pelos pecados, quase «encarnado» no rosto do Padre que os atendia de Confissão.
Entretanto, a quem se apresentava já desejoso e capaz duma vida espiritual mais profunda, ele abria-lhe de par em par as profundidades do Amor, explicando a inexprimível beleza de poder viver unido a Deus e na Sua presença:
«Tudo sob o olhar de Deus, tudo com Deus, tudo para agradar a Deus! (...) Como é belo!» [28]
E ensinava a rezar assim:
«Meu Deus, dai-me a graça de Vos amar tanto quanto é possível que eu Vos ame!» [29]
No seu tempo, o Santo Cura d’Ars soube transformar o coração e a vida de muitas pessoas, porque conseguiu fazer-lhes sentir o Amor misericordioso do Senhor.
Também hoje, é urgente um igual anúncio e testemunho da verdade do Amor: «Deus caritas est» (1 Jo 4, 8).
Com a Palavra e os Sacramentos do seu Jesus, João Maria Vianney sabia instruir o seu povo, ainda que frequentemente suspirasse, convencido da sua pessoal inaptidão, ao ponto de ter desejado subtrair-se, diversas vezes, às responsabilidades do Ministério paroquial, de que se sentia indigno.
Mas, com exemplar obediência, ficou sempre no seu lugar, porque o consumia a paixão apostólica pela Salvação das almas.
E procurava aderir totalmente à própria vocação e missão, por meio duma severa ascese:
«Para nós, párocos, a grande desdita – deplorava o Santo – é entorpecer-se a alma» [30], entendendo, com isso, o perigo de o pastor habituar-se ao estado de pecado, ou de indiferença, em que vivem muitas das suas ovelhas.
Com vigílias e jejuns, ele punha freio ao corpo, para evitar que houvesse resistência à sua alma sacerdotal.
E não se esquivava de mortificar-se a si mesmo, para bem das almas que lhe estavam confiadas, e a fim de contribuir para a expiação dos muitos pecados ouvidos em confissão.
Explicava ele a um colega sacerdote:
«Dir-vos-ei qual é a minha receita: Dou aos pecadores uma penitência pequena, e o resto faço-o eu no lugar deles» [31].
Independentemente das penitências concretas a que se sujeitava, o Santo Cura d’Ars continua válido para todos o núcleo do seu ensinamento:
As almas custam o Sangue de Cristo, e o sacerdote não pode dedicar-se à sua Salvação se recusar-se a contribuir, com a sua [quota] parte, para o «alto preço» da Redenção.
No mundo actual, não menos do que nos tempos difíceis do Cura d’Ars, é preciso que os presbíteros, na sua vida e acção, se distingam por um vigoroso testemunho evangélico.
Observou, justamente, Paulo VI, que «o homem contemporâneo escuta, com melhor boa vontade, as testemunhas do que os mestres, ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas» [32].
Para que não se forme um vazio existencial em nós, ficando comprometida a eficácia do nosso Ministério, é preciso não cessar de nos interrogarmos:
«Somos verdadeiramente permeados pela Palavra de Deus?
É verdade que esta é o alimento de que vivemos, mais de que o sejam o pão e as coisas deste mundo?
Conhecemo-la verdadeiramente? Amamo-la?
De tal modo nos ocupamos interiormente desta Palavra, que a mesma dá realmente um timbre à nossa vida e forma o nosso pensamento?» [33]
Assim, como Jesus chamou os Doze para estarem com Ele (cf. Mc 3, 14), e só depois é que os enviou a pregar, assim também, nos nossos dias, os sacerdotes são chamados a assimilar aquele «novo estilo de vida» que foi inaugurado pelo Senhor Jesus e assumido pelos Apóstolos [34].
Foi precisamente a adesão, sem reservas, a este «novo estilo de vida» que caracterizou o trabalho ministerial do Cura d’Ars.
O Papa João XXIII, na carta-encíclica "Sacerdotii nostri Primordia" – publicada em 1959, centenário da morte de S. João Maria Vianney –, apresentava a sua fisionomia ascética, referindo-se de modo especial ao tema dos «três Conselhos evangélicos», considerados necessários também para os presbíteros:
«Embora, para alcançar esta santidade de vida, não seja imposta ao sacerdote, como própria do estado clerical, a prática dos Conselhos evangélicos; no entanto, esta representa para ele, como para todos os discípulos do Senhor, o caminho regular da santificação cristã» [35].
O Santo Cura d’Ars soube viver os «Conselhos evangélicos», segundo as modalidades apropriadas à sua condição de presbítero.
Com efeito, a sua pobreza não foi a mesma dum religioso ou dum monge, mas a requerida a um padre:
Embora manejasse com muito dinheiro (dado que os peregrinos mais abonados não deixavam de se interessar pelas suas obras sócio-caritativas), ele sabia que tudo era dado para a sua igreja, para os seus pobres, para os seus órfãos, para as meninas da sua «Providence» [36], para as suas famílias mais indigentes.
Por isso, ele «era rico para dar aos outros, sendo muito pobre para si mesmo» [37].
E explicava: «O meu segredo é simples: Dar tudo e não guardar nada» [38].
Quando ele se encontrava com as mãos vazias, dizia alegremente aos pobres que se lhe dirigiam:
«Hoje sou pobre como vós, sou um dos vossos» [39].
Deste modo, o Santo pôde, no fim da vida, afirmar com absoluta serenidade:
«Não tenho mais nada. Agora o bom Deus pode chamar-me quando quiser» [40].
Também a sua Castidade era aquela que se requeria a um padre para o seu Ministério.
Pode-se dizer que era a Castidade conveniente a quem deve habitualmente tocar na Sagrada Eucaristia, e que habitualmente A fixa com todo o entusiasmo do coração e, com o mesmo entusiasmo, A dá aos seus fiéis.
Dele se dizia que «a Castidade brilhava no seu olhar», e os fiéis apercebiam-se disso quando ele se voltava para o Sacrário, fixando-o com os olhos de um enamorado [41].
Também a Obediência de S. João Maria Vianney foi toda encarnada na dolorosa adesão às exigências diárias do seu Ministério.
É sabido como o atormentava o pensamento da sua própria inaptidão para o Ministério paroquial, e o desejo que tinha de fugir «para chorar a sua pobre vida, na solidão» [42].
Somente a obediência e a paixão pelas almas conseguiam convencê-lo a continuar no seu lugar.
A si próprio e aos seus fiéis explicava:
«Não há duas maneiras boas de servir a Deus; há apenas uma: Servi-Lo como Ele quer ser servido» [43].
A regra de ouro, para levar uma vida obediente, parecia-lhe ser esta: «Fazer só aquilo que pode ser oferecido ao bom Deus» [44].
No contexto da espiritualidade, alimentada pela prática dos Conselhos evangélicos, aproveito para dirigir aos Sacerdotes, neste Ano a eles dedicado, um convite particular, a fim de saberem acolher a nova primavera que, em nossos dias, o Espírito Santo está a suscitar na Igreja, nomeadamente através dos Movimentos Eclesiais e das novas Comunidades:
«O Espírito é multiforme nos Seus dons. (…) Ele sopra onde quer. E fá-lo, de maneira inesperada, em lugares imprevistos, segundo formas precedentemente inimagináveis (…); mas demonstra-nos também que Ele age em vista do único Corpo e na unidade do único Corpo» [45].
A propósito disto, vale a indicação do decreto "Presbyterorum Ordinis":
«Sabendo discernir se o espírito vêm de Deus, [os presbíteros] perscrutem com o sentido da Fé, reconheçam com alegria e promovam com diligência os multiformes carismas dos leigos, tanto os mais modestos como os mais altos» [46].
Estes dons, que impelem não poucos para uma vida espiritual mais elevada, podem ser de proveito não só para os fiéis leigos, mas também para os próprios ministros.
Com efeito, da comunhão entre ministros ordenados e carismas, pode brotar «um válido impulso para um renovado compromisso da Igreja no anúncio e no testemunho do Evangelho da Esperança e da Caridade em todos os recantos do mundo» [47].
Queria ainda acrescentar, apoiado na exortação apostólica "Pastores dabo vobis", do Papa João Paulo II, que o Ministério ordenado tem uma radical «forma comunitária», e pode ser cumprido apenas na comunhão dos presbíteros com o seu Bispo [48].
É preciso que esta comunhão, entre os sacerdotes e com o respectivo Bispo, baseada no Sacramento da Ordem e manifestada na Concelebração Eucarística, se traduza nas diversas formas concretas de uma Fraternidade sacerdotal efectiva e afectiva [49].
Só deste modo, é que os sacerdotes poderão viver em plenitude o dom do Celibato, e serão capazes de fazer florir comunidades cristãs, onde se renovem os prodígios da primeira pregação do Evangelho.
O Ano Paulino, que está a chegar ao fim, encaminha o nosso pensamento também para o Apóstolo das Nações, em quem refulge, aos nossos olhos, um modelo esplêndido de sacerdote, totalmente «doado» ao seu Ministério.
«O Amor de Cristo absorve-nos completamente – escrevia ele –, ao pensarmos que Um só morreu por todos, e que todos, portanto, devem morrer [por Ele]» (2 Cor 5, 14).
E acrescenta: «Ele morreu por todos, para que os vivos deixem de viver para si próprios, mas vivam [só] para Aquele que morreu e ressuscitou por eles» (2 Cor 5, 15).
Que programa, melhor do que este, poderia ser proposto a um sacerdote, empenhado a avançar pela estrada da perfeição cristã?
Amados Sacerdotes:
A Celebração, dos cento e cinquenta Anos da morte de S. João Maria Vianney (1859), segue-se imediatamente às Celebrações, há pouco encerradas, dos cento e cinquenta Anos das Aparições de Lourdes (1858).
Já em 1959, o Beato Papa João XXIII anotara:
«Pouco antes do Santo Cura d’Ars concluir a sua longa carreira cheia de méritos, a Virgem Imaculada aparecera, noutra região da França, a uma menina humilde e pura, para lhe transmitir uma mensagem de Oração e Penitência, cuja imensa ressonância espiritual há um século que é bem conhecida.
Na realidade, a vida do Santo Sacerdote, cuja comemoração celebramos, foi, de antemão, uma viva ilustração das grandes verdades sobrenaturais ensinadas à vidente de Massabielle.
Ele próprio [o Cura d'Ares] nutria pela Imaculada Conceição da Santíssima Virgem uma vivíssima devoção; ele que, em 1836, tinha consagrado a sua paróquia a Maria Concebida sem Pecado, e havia de acolher, com tanta fé e alegria, a Definição dogmática de 1854 [Imaculada Conceição de Nossa Senhora]» [50].
O Santo Cura d’Ars sempre recordava aos seus fiéis que «Jesus Cristo, depois de nos ter dado tudo aquilo que nos podia dar, quis ainda fazer-nos herdeiros de quanto Ele tem de mais precioso, ou seja, da Sua Santa Mãe» [51].
À Virgem Santíssima, entrego este Ano Sacerdotal, pedindo-Lhe para suscitar, no ânimo de cada presbítero, um generoso relançamento daqueles ideais de total doação a Cristo e à Igreja, que inspiraram o pensamento e a acção do Santo Cura d’Ars.
Com a sua fervorosa vida de oração e o seu amor apaixonado a Jesus Crucificado, João Maria Vianney alimentou a sua quotidiana doação, sem reservas, a Deus e à Igreja.
Possa o seu exemplo suscitar nos sacerdotes aquele testemunho de unidade com o Bispo, entre eles próprios, e com os leigos, o que é tão necessário hoje, como sempre o foi.
Não obstante o mal que existe no mundo, ressoa sempre actual a Palavra de Cristo aos Seus Apóstolos, no Cenáculo:
«No mundo sofrereis tribulações. Mas tende confiança: Eu venci o mundo» (Jo 16, 33).
A Fé no Divino Mestre dá-nos a força para olharmos confiadamente o futuro.
Amados Sacerdotes, Cristo conta convosco.
A exemplo do Santo Cura d’Ars, deixai-vos conquistar por Ele, e sereis também vós, no mundo actual, mensageiros de esperança, de reconciliação e de paz.
Com a minha bênção.
Vaticano, 16 de Junho de 2009.
+ Benedictus PP. XVI
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NOTAS:
[24] Nodet, 131.
[25] Ibid., 130.
[26] Ibid., 27.
[27] Ibid., 139.
[28] Ibid., 28.
[29] Ibid., 77.
[30] Ibid., 102.
[31] Ibid., 189.
[32] Evangelii nuntiandi, 41.
[33] BENTO XVI, Homilia na Missa Crismal
(9 de Abril de 2009).
[34] Cf. BENTO XVI, Discurso à Assembleia plenária
da Congregação do Clero (16 de Março de 2009).
[35] Parte I.
[36] Este foi o nome que deu à casa
onde fez alojar e educar mais de 60 meninas abandonadas.
Para mantê-la, a nada se poupava:
«J’ai fait tous les commerces imaginables» - dizia ele sorrindo (Nodet, 214).
[37] Nodet, 216.
[38] Ibid., 215.
[39] Ibid., 216.
[40] Ibid., 214.
[41] Cf. ibid., 112.
[42] Cf. ibid., 82-84.102-103.
[43] Ibid., 75.
[44] Ibid., 76.
[45] BENTO XVI, Homilia na Vigília de Pentecostes (3 de Junho de 2006).
[46] N. 9.
[47] BENTO XVI, Discurso aos Bispos amigos do Movimento dos Focolares
e da Comunidade de Santo Egídio (8 de Fevereiro de 2007).
[48] Cf. n. 17.
[49] Cf. JOÃO PAULO II, Exort. ap. Pastores dabo vobis, 74.
[50] Carta enc. Sacerdotii nostri primordia, parte III.
[51] Nodet, 244.
* * * * *
- E senti o espírito inundado por um mistério de luz que é Deus e N´Ele vi e ouvi -A ponta da lança como chama que se desprende, toca o eixo da terra, – Ela estremece: montanhas, cidades, vilas e aldeias com os seus moradores são sepultados. - O mar, os rios e as nuvens saem dos seus limites, transbordam, inundam e arrastam consigo num redemoinho, moradias e gente em número que não se pode contar , é a purificação do mundo pelo pecado em que se mergulha. - O ódio, a ambição provocam a guerra destruidora! - Depois senti no palpitar acelerado do coração e no meu espírito o eco duma voz suave que dizia: – No tempo, uma só Fé, um só Batismo, uma só Igreja, Santa, Católica, Apostólica: - Na eternidade, o Céu! (escreve a irmã Lúcia a 3 de janeiro de 1944, em "O Meu Caminho," I, p. 158 – 160 – Carmelo de Coimbra)