CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII
MEDIATOR DEI
SOBRE A SAGRADA LITURGIA

1.  "O mediador entre Deus e os homens",   o grande pontífice que penetrou  os céus, Jesus filho de Deus,  assumindo a obra de misericórdia com a  qual enriqueceu o gênero humano de benefícios sobrenaturais, visou sem  dúvida a restabelecer entre os homens e o Criador aquela ordem que o  pecado tinha perturbado e a reconduzir ao Pai celeste, primeiro  princípio e último fim, a mísera estirpe de Adão, infeccionada pelo  pecado original. E por isso, durante a sua permanência na terra, não só  anunciou o início da redenção e declarou inaugurado o reino de Deus, mas  ainda cuidou de promover a salvação das almas pelo contínuo exercício  da pregação e do sacrifício, até que, na cruz, se ofereceu a Deus qual  vítima imaculada para "purificar a nossa consciência das obras mortas,  para servir a Deus vivo".   Assim, todos os homens, felizmente chamados  do caminho que os arrastava à ruína e à perdição, foram ordenados de  novo a Deus, a fim de que, com sua pessoal colaboração na obra da  própria santificação, fruto do sangue imaculado do Cordeiro, dessem a  Deus a glória que lhe é devida.

2.  O Divino Redentor quis, ainda, que a vida sacerdotal por ele iniciada  em seu corpo mortal com as suas preces e o seu sacrifício, não cessasse  no correr dos séculos no seu corpo místico, que é a Igreja; e por isso  instituiu um sacerdócio visível para oferecer em toda parte a oblação  pura,   a fim de que todos os homens, do oriente ao ocidente, libertos  do pecado, por dever de consciência servissem espontânea e  voluntariamente a Deus.

3.  A Igreja, pois, fiel ao mandato recebido do seu Fundador, continua o  ofício sacerdotal de Jesus Cristo, sobretudo com a sagrada liturgia. E o  faz em primeiro lugar no altar, onde o sacrifício da cruz é  perpetuamente representado  e renovado, com a só diferença no modo de  oferecer; em seguida, com os sacramentos, que são instrumentos  particulares por meio dos quais os homens participam da vida  sobrenatural; enfim, com o tributo cotidiano de louvores oferecido a  Deus ótimo e máximo    .  

5.  Sem dúvida, sabeis muito bem que esta Sé Apostólica sempre zelou para  que o povo a ela confiado fosse educado num verdadeiro e ativo sentido  litúrgico e que, com zelo não menor se tem preocupado em que os sagrados  ritos brilhem até externamente por uma adequada dignidade. Nessa mesma  ordem de idéias, falando, segundo o costume, aos pregadores quaresmais  desta nossa excelsa cidade, em 1943, nós os havíamos calorosamente  exortado a advertir os seus ouvintes que participassem, com maior  empenho, do sacrifício eucarístico; e recentemente fizemos traduzir de  novo em latim, do texto original, o livro dos Salmos para que as preces  litúrgicas, de que são eles a parte maior na Igreja católica, fossem  mais exatamente entendidas e a sua verdade e suavidade mais facilmente  percebidas. 
 
7.  Ora, se de uma parte verificamos com pesar que em algumas regiões o  sentido, o conhecimento e o estudo da liturgia são às vezes escassos ou  quase nulos; de outra, notamos, com muita apreensão, que há algumas  pessoas muito ávidas de novidades e que se afastam do caminho da sã  doutrina e da prudência. Na intenção e desejo de um renovamento  litúrgico, esses inserem muitas vezes princípios que, em teoria ou na  prática, comprometem esta santíssima causa, e frequentemente até a  contaminam de erros que atingem a fé católica e a doutrina ascética.

10.  Ouçam, pois, os cristãos todos, com docilidade, a voz do Pai comum, o  qual deseja ardentemente que todos, unidos a ele intimamente, se  aproximem do altar de Deus, professando a mesma fé, obedecendo à mesma  lei, participando do mesmo sacrifício com uma só inteligência e uma só  vontade. O respeito devido a Deus o reclama; as necessidades dos tempos  presentes o exigem...  Acreditamos, todavia, que nenhum projeto e  nenhuma iniciativa seja, neste caso, tão eficaz quanto um fervoroso  espírito religioso e zelo ardente, do qual é necessário estejam animados  e guiados todos os cristãos, a fim de que, aceitando de coração aberto  as mesmas verdades e obedecendo docilmente aos legítimos pastores, no  exercício do culto devido a Deus, constituam uma comunidade fraterna,  porquanto, "ainda que muitos, somos um só corpo, participando todos do  único pão.
SOBRE A SAGRADA LIT
 
13.  Note-se ainda que esse é um dever particular dos homens, porquanto Deus  os elevou à ordem sobrenatural. Assim, se consideramos Deus como autor  da antiga Lei, vemo-lo proclamar preceitos rituais e determinar  acuradamente as normas que o povo deve observar ao render-lhe o legítimo  culto. Estabeleceu, para isso, vários sacrifícios e designou várias  cerimónias com que deviam realizar-se e determinou claramente o que se  referia à arca da aliança, ao templo e aos dias festivos; designou a  tribo sacerdotal e o sumo sacerdote, indicou e descreveu as vestes para  uso dos sagrados ministros e tudo o mais que tinha relação com o culto  divino. 
14. Esse culto, aliás, não era mais do que a sombra  daquele que o sumo sacerdote do Novo Testamento havia de render ao Pai  celeste

15.  De fato, apenas "o Verbo se fez carne",  manifesta-se ao mundo no seu  ofício sacerdotal, fazendo ao Pai Eterno um acto de submissão que durará  por todo o tempo de sua vida: "entrando no mundo, diz... eis que  venho... para fazer, ó Deus, a tua vontade...",  um acto que será  consumado de modo admirável no sacrifício cruento da cruz: "Pelo poder  desta vontade fomos santificados por meio da oblação do corpo de Jesus  Cristo feita uma só vez para sempre".  Toda a sua actividade entre os  homens não tem outro escopo.

Menino,  é apresentando no templo ao Senhor; adolescente, ali volta ainda; em  seguida ali vai frequentemente para instruir o povo e para rezar. Antes  de iniciar o ministério público jejua durante quarenta dias, e com seu  conselho e o seu exemplo exorta todos a rezarem de dia e de noite. Como  mestre de verdade, "ilumina todo homem"  para que os mortais reconheçam  convenientemente o Deus imortal, e não "se afastem para sua perdição,  mas guardem a fé para salvar a sua alma".
 
Como  Pastor, depois, ele governa o seu rebanho, conduzindo-o às pastagens da  vida, e dá uma lei a observar, para que ninguém se afaste dele e da  recta via que traçou, mas todos vivam santamente sob o seu influxo e a  sua acção. Na última ceia, com rito e aparato solene, celebra a nova  páscoa e provê a sua continuação mediante a divina instituição da  eucaristia; no dia seguinte, elevado entre o céu e a terra, oferece o  sacrifício salutar de sua vida; de seu peito rasgado faz, de certo modo,  jorrar os sacramentos que distribuem às almas os tesouros da redenção.  Fazendo isso, tem por único fim a glória do Pai e a crescente  santificação do homem.

16.  Entrando, depois, na sede da beatitude celeste, quer que o culto por  ele instituído e prestado durante a sua vida terrena continue  ininterrupto. Já que não deixou órfão o género humano, mas o assiste  sempre com o seu contínuo e valioso patrocínio, fazendo-se nosso  advogado no céu junto do Pai,  assim o ajuda mediante a sua Igreja, na  qual está indefectivelmente presente no correr dos séculos, Igreja que  constituiu coluna da verdade  e dispensadora de graça, e que, com o  sacrifício da cruz, fundou, consagrou e conformou eternamente. 

17.  A Igreja, portanto, tem em comum com o Verbo encarnado o escopo, o  empenho e a função de ensinar a todos a verdade, reger e governar os  homens, oferecer a Deus o sacrifício, aceitável e grato, e assim  restabelecer entre o Criador e as criaturas aquela união e harmonia que o  apóstolo das gentes claramente indica por estas palavras: "Não sois  mais hóspedes ou adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da  família de Deus, educados sobre o fundamento dos apóstolos e dos  profetas, com o próprio Jesus Cristo por pedra angular, sobre a qual  todo o edifício bem ordenado se levanta para ser um templo santo no  Senhor, e sobre ele vós sois também juntamente edificados em morada de  Deus, pelo Espírito".

  Por isso a sociedade fundada pelo divino Redentor não tem outro fim,  seja com a sua doutrina e o seu governo, seja com o sacrifício e os  sacramentos por ele instituídos, seja enfim com o ministério que lhe  contou, com as suas orações e o seu sangue, senão crescer e dilatar-se  sempre mais - o que se dá quando Cristo é edificado e dilatado nas almas  dos mortais, e quando, vice-versa, as almas dos mortais são educadas e  dilatadas em Cristo; de maneira que, neste exílio terreno prospere o  templo no qual a divina majestade recebe o culto grato e legítimo.

  Em toda acção litúrgica, junto com a Igreja está presente o seu divino  Fundador: Cristo está presente no augusto sacrifício do altar, quer na  pessoa do seu ministro, quer por excelência, sob as espécies  eucarísticas; está presente nos sacramentos com a virtude que neles  transfunde, para que sejam instrumentos eficazes de santidade está  presente, enfim, nos louvores e súplicas dirigidas a Deus, como vem  escrito: "Onde estão duas ou três pessoas reunidas em meu nome aí estou  no meio delas".

A  sagrada liturgia é, portanto, o culto público que o nosso Redentor  rende ao Pai como cabeça da Igreja, e é o culto que a sociedade dos  fiéis rende à sua cabeça, e, por meio dela, ao Eterno Pai. É, em uma  palavra, o culto integral do corpo místico de Jesus Cristo, ou seja, da  cabeça e de seus membros.
18.  A acção litúrgica inicia-se com a fundação da própria Igreja. Os  primeiros cristãos, com efeito, "eram assíduos aos ensinamentos dos  apóstolos, e à comum fracção do pão e à oração".  Em toda a parte onde  os pastores possam reunir um núcleo de fiéis, erigem um altar sobre o  qual oferecem o sacrifício, e em torno dele vêm dispostos outros ritos  adaptados à santificação dos homens e à glorificação de Deus. Entre  esses ritos estão, em primeiro lugar, os sacramentos, isto é, as sete  principais fontes de salvação; depois, está a celebração do louvor  divino,  ... depois, ainda, a leitura da Lei, dos Profetas, do Evangelho  e das epístolas apostólicas; e, enfim, a prática com a qual o  presidente da assembléia recorda e comenta utilmente os preceitos do  divino Mestre, os acontecimentos principais de sua vida, e admoesta  todos os presentes com exortações oportunas e exemplos.

19.  O culto se organiza e se desenvolve segundo as circunstâncias e as  necessidades dos cristãos, se enriquece de novos ritos, cerimónias e  fórmulas, sempre com o mesmo intento: "a fim de que sejamos estimulados  por aqueles sinais... conheçamos o progresso realizado e nos sintamos  solicitados a desenvolvê-lo com maior vigor; o efeito, de fato, é mais  digno, se mais ardente é o afecto que o precede".  Assim a alma se eleva  a Deus mais e melhor; assim o sacerdócio de Jesus Cristo está sempre em  acto na sucessão dos tempos, não sendo a liturgia outra coisa que o  exercício desse sacerdócio. Como a sua cabeça divina, assim a Igreja  assiste continuamente os seus filhos, ajuda-os e exorta-os à santidade,  para que, ornados com essa dignidade sobrenatural, possam um dia voltar  ao Pai que está nos céus.  

20.  Todo o conjunto do culto que a Igreja rende a Deus deve ser interno e  externo. É externo porque o exige a natureza do homem composto de corpo e  alma; porque Deus dispõe que "pelo conhecimento das coisas visíveis  sejamos atraídos ao amor das invisíveis";  porque tudo o que vem da alma  é naturalmente expresso pelos sentidos; e ainda porque o culto divino  pertence não somente ao particular mas também à colectividade humana e  consequentemente é necessário que seja social, o que é impossível, no  âmbito religioso, sem vínculos e manifestações exteriores; e, enfim,  porque é um meio que põe particularmente em evidência a unidade do corpo  místico, acrescenta-lhe santos entusiasmos, consolida-lhe as forças,  intensifica-lhe a acção: "se bem que, com efeito, as cerimónias, em si  mesmas, não contenham nenhuma perfeição e santidade, são todavia actos  externos de religião que, como sinais, estimulam a alma à veneração das  coisas sagradas, elevam a mente à realidade sobrenatural, nutrem a  piedade, fomentam a caridade, aumentam a fé, robustecem a devoção,  instruem os simples, ornam o culto de Deus, conservam a religião e  distinguem os verdadeiros dos falsos cristãos e dos heterodoxos. 

21.  Mas o elemento essencial do culto deve ser o interno. É necessário, com  efeito, viver sempre em Cristo, dedicar-se todo a ele, a fim de que  nele, com ele e por ele, se dê glória ao Pai. A sagrada liturgia requer  que estes dois elementos estejam intimamente ligados; o que ela não se  cansa jamais de repetir toda vez que prescreve um acto externo de culto.  Assim, por exemplo, a propósito do jejum, nos exorta: "a fim de que se  opere de fato em nosso íntimo o que a nossa observância professa  externamente".  De outro modo, a religião se torna um formalismo sem  fundamento e sem conteúdo. Sabeis, veneráveis irmãos, que o divino  Mestre considera indignos do templo sagrado e expulsa dele os que crêem  honrar a Deus somente com o som de bem construídas palavras e com  atitudes teatrais e estão persuadidos de poder prover de modo adequado à  sua salvação sem arrancar da alma os vícios inveterados".

A  Igreja, portanto, quer que todos os fiéis se prostrem aos pés do  Redentor para professar-lhe o seu amor e a sua veneração; quer que as  multidões, como as crianças que andaram ao encontro de Cristo quando  entrava em Jerusalém com alegres aclamações, acompanhem o Rei dos reis e  o sumo autor de todos os benefícios, aclamando-o com o canto de glória e  de agradecimento; quer que haja orações em seus lábios, ora súplices,  ora alegres e agradecidas, com as quais, como os apóstolos junto ao lago  de Tiberíades, possam experimentar o auxílio de sua misericórdia e de  seu poder; ou como Pedro, no monte Tabor, a Deus se abandonem e a todas  as suas coisas nos místicos transportes da contemplação.

22.  Não têm, pois, noção exacta da sagrada liturgia aqueles que a  consideram como parte somente externa e sensível do culto divino ou como  cerimonial decorativo; nem se enganam menos aqueles que a consideram  como mero conjunto de leis e preceitos com que a hierarquia eclesiástica  ordena a realização dos ritos.
23. Deve, portanto, ser bem  conhecido de todos que não se pode honrar dignamente a Deus, se a alma  não cuida de conseguir a perfeição da vida, e que o culto rendido a Deus  pela Igreja em união com a sua Cabeça divina tem a eficácia suprema de  santificação.

24. Essa eficácia, se se trata do sacrifício eucarístico e dos sacramentos, provém antes de tudo do valor da acção em si mesma (
ex opere operato);  se se considera ainda a actividade própria da imaculada esposa de Jesus  Cristo com a qual orna de orações e de sacras cerimónias o sacrifício  eucarístico e os sacramentos, ou, se se trata dos sacramentais e de  outros ritos instituídos pela hierarquia eclesiástica, então a eficácia  deriva principalmente da acção da Igreja (
ex opere operantis Ecclesiae), enquanto esta é santa e opera sempre em íntima união com a sua Cabeça.

26.  Nas celebrações litúrgicas e, em particular, no augusto sacrifício do  altar, continua-se, sem dúvida, a obra da nossa redenção, cujos frutos  nos são aplicados. Cristo realiza a nossa salvação cada dia nos  sacramentos e no seu sacrifício e, por meio deles, purifica  continuamente e consagra a Deus o género humano. Têm, portanto, uma  virtude objectiva, com a qual, de fato, fazem nossas almas participantes  da vida divina de Jesus Cristo. Eles, pois, têm não por nossa, mas por  divina virtude, a eficácia de reunir a piedade dos membros com a piedade  da Cabeça e torná-la, de certo modo, uma acção de toda a comunidade.  

28.  É verdade que os sacramentos e o sacrifício do altar têm uma intrínseca  virtude enquanto são acções do próprio Cristo que comunica e difunde a  graça da Cabeça divina nos membros do corpo místico; mas, para terem a  devida eficácia, exigem as boas disposições da nossa alma; como, a  propósito da eucaristia, são Paulo admoesta: "cada um examine a si mesmo  e coma deste pão e beba do cálice". . . Devemos, pois, afirmar que a  obra da redenção, independente em si mesma da nossa vontade, requer o  esforço íntimo da nossa alma para que possamos conseguir a eterna  salvação.

29.  Se a piedade privada e interna dos particulares se descuidasse do  augusto sacrifício do altar e dos sacramentos, e se subtraísse ao  influxo salvador que emana da Cabeça nos membros, seria, sem dúvida,  reprovável e estéril; mas quando todas as providências e os exercícios  de piedade não estritamente litúrgicos fixam o olhar da alma sobre actos  humanos unicamente para endereçá-los ao Pai que está nos céus; para  estimular salutarmente os homens à penitência e ao temor de Deus e  arrancá-los da atracção do mundo e dos vícios, para conduzi-los  felizmente por árduo caminho ao vértice da santidade, então, não apenas  são sumamente louváveis, mas necessários, porque descobrem os perigos da  vida espiritual, estimulam-nos à aquisição da virtude e aumentam o  fervor com o qual nos devemos dedicar todos ao serviço de Jesus Cristo.

A  genuína piedade que o Angélico chama "devoção" e que é o acto principal  da virtude da religião com o qual os homens se ordenam rectamente, se  orientam oportunamente para Deus e livremente se consagram ao culto,   têm necessidade da meditação das realidades sobrenaturais e das práticas  espirituais para que se alimente, estimule e fortifique e nos anime à  perfeição. É que a religião cristã devidamente praticada requer,  sobretudo, que a vontade se consagre a Deus e influa sobre as outras  faculdades da alma.  

30.   Tudo, pois, seja orgânico e teocêntrico se queremos que tudo seja em  verdade endereçado à glória de Deus pela vida e pela virtude que nos vêm  da nossa Cabeça divina: "tendo, pois, confiança de entrar no santo dos  santos pelo sangue de Cristo, pelo novo e vivo caminho que ele inaugurou  para nós através da sua carne, e tendo um grande sacerdote que preside à  casa de Deus, aproximemo-nos com um coração sincero, com plenitude de  fé, alma purificada da consciência de culpa, lavado o corpo com água  limpa, apeguemo-nos firmes à profissão da nossa esperança... e sejamos  solícitos uns para com os outros, para nos estimularmos à caridade e às  boas obras".  

31.  Disso deriva o harmonioso equilíbrio dos membros do corpo místico de  Jesus Cristo. Com o ensino da fé católica, com a exortação à observância  dos preceitos cristãos, a Igreja prepara o caminho à sua acção  propriamente sacerdotal e santificadora; dispõe-nos a uma contemplação  mais íntima da vida do divino Redentor e nos conduz a uma consciência  mais profunda dos mistérios da fé para que recebamos o alimento  sobrenatural e a força para seguro progresso na vida perfeita por meio  de Jesus Cristo. Não somente pelas obras de seus ministros mas ainda  pelas obras dos fiéis particulares imbuídos do espírito de Jesus Cristo,  a Igreja se esforça em fazer penetrar esse mesmo espírito na vida e na  actividade privada, familiar, social, e até económica e política dos  homens, para que todos os que são chamados filhos de Deus possam mais  facilmente conseguir o seu próprio fim.

32.  Dessa maneira a acção particular e o esforço ascético dirigido à  purificação da alma estimulam as energias dos fiéis e os preparam a  participar com melhores disposições do augusto sacrifício do altar e a  receber os sacramentos com maior fruto, e a celebrar os sagrados ritos,  de modo a torná-los mais animados e formados para a oração e para a  abnegação cristã para cooperar activamente nas inspirações e nos  convites da graça, para imitar cada dia mais a virtude do Redentor, não  somente para vantagem própria mas ainda para a vantagem de todo o corpo  da Igreja, no qual todo o bem que se cumpre provém da virtude da Cabeça e  redunda em benefício dos membros.
33. Por isso na vida  espiritual nenhuma oposição ou repugnância pode haver entre a acção  divina que infunde a graça nas almas para continuar a nossa redenção e a  operosa colaboração do homem que não deve tornar vão o dom de Deus;    entre a eficácia do rito externo dos sacramentos que provém do seu  intrínseco valor (
ex opere operato), e o mérito de quem os administra ou recebe (
opus operantis);  entre as orações privadas e as preces públicas; entre a ética e a  contemplação; entre a vida ascética e a piedade litúrgica; entre o poder  de jurisdição e de legítimo magistério e o poder eminentemente  sacerdotal que se exercita no próprio sagrado ministério.

34.  Por graves motivos a Igreja prescreve aos ministros do altar e aos  religiosos, precisamente porque são destinados de modo particular a  realizar as funções litúrgicas do sacrifício e do louvor divino, que,  nos tempos estabelecidos, atendam à meditação piedosa, ao exame  diligente e à emenda da consciência e aos outros exercícios  espirituais.  Sem dúvida, a prece litúrgica, sendo pública oração da  ínclita esposa de Jesus Cristo, tem maior dignidade do que a das orações  privadas; mas esta superioridade não quer dizer que entre estes dois  géneros de oração haja contraste ou oposição. Ambas as duas se fundem e  se harmonizam porque animadas de um único espírito: "tudo e em todos,  Cristo"   e tendem ao mesmo fim: até que Cristo seja formado em nós.
35. Para melhor compreender, ainda, a sagrada liturgia é necessário considerar outro seu caráter importante.
A  Igreja é uma sociedade; exige, por isso, uma autoridade e hierarquia  próprias. Se todos os membros do corpo místico participam dos mesmos  bens e tendem aos mesmos uns, nem todos gozam do mesmo poder e são  habilitados a cumprir as mesmas ações. O divino Redentor estabeleceu,  com efeito, o seu reino sob fundamentos da ordem sagrada, que é reflexo  da hierarquia celeste.  . Somente aos apóstolos e àqueles que, depois  deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é conferido o  poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo  que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo  diante de Deus. Esse sacerdócio não vem transmitido nem por herança,  nem por descendência carnal, nem resulta da emanação da comunidade  cristã ou de delegação popular.
 

Antes  de representar o povo, perante Deus, o sacerdote representa o divino  Redentor, e porque Jesus Cristo é a cabeça daquele corpo do qual os  cristãos são membros, ele representa Deus junto do povo. O poder que lhe  foi conferido não tem, pois, nada de humano em sua natureza; é  sobrenatural e vem de Deus: "assim como o Pai me enviou, assim eu vos  envio:..' ;  "quem vos ouve, a mim ouve..."; 
 "percorrendo todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura; quem crer e for batizado, será salvo".

37.  Por isso o sacerdócio externo e visível de Jesus Cristo se transmite na  Igreja não de modo universal, genérico e indeterminado, mas é conferido  a indivíduos eleitos, com a geração espiritual da ordem, um dos sete  sacramentos, o qual não somente confere uma graça particular, própria  deste estado e deste ofício, mas ainda um caráter indelével que  configura os ministros sagrados a Jesus Cristo sacerdote,  demonstrando-os capazes de cumprir aqueles atos legítimos de religião  com os quais os homens são santificados e Deus é glorificado, segundo as  exigências da economia sobrenatural.

38.  Com efeito, como o lavacro do batismo distingue os cristãos e os separa  dos outros que não foram lavados na água purificadora e não são membros  de Cristo, assim o sacramento da ordem distingue os sacerdotes de todos  os outros cristãos não consagrados, porque somente eles, por vocação  sobrenatural, foram introduzidos no augusto ministério que os destina  aos sagrados altares e os constituem instrumentos divinos por meio dos  quais se participa da vida sobrenatural com o corpo místico de Jesus  Cristo. Além disso, como já dissemos, somente estes são marcados com  caráter indelével que os configura ao sacerdócio de Cristo e somente as  suas mãos são consagradas "para que seja abençoado tudo o que abençoam e  tudo o que consagram seja consagrado e santificado em nome de nosso  Senhor Jesus Cristo".  Aos sacerdotes, pois, deve recorrer quem quer que  deseje viver em Cristo, a fim de receber deles o conforto, o alimento  da vida espiritual, o remédio salutar que o curará e o fortificará para  que possa felizmente ressurgir da perdição e do abismo dos vícios;  deles, enfim, receberá a bênção que consagra a família e por eles o  último suspiro da vida mortal será dirigido ao ingresso na beatitude  eterna.
 
39.  Já que a sagrada liturgia é exercida sobretudo pelos sacerdotes em nome  da Igreja, a sua organização, o seu regulamento e a sua forma não podem  depender senão da autoridade da Igreja. Esta é não somente uma  conseqüência da natureza mesma do culto cristão, mas é ainda confirmada  pelo testemunho da história.
40. Esse direito inconcusso da  hierarquia eclesiástica é provado ainda pelo fato de ter a sagrada  liturgia estreita ligação com aqueles princípios doutrinários que a  Igreja propõe como fazendo parte de verdades certíssimas, e por isso  deve conformar-se aos ditames da fé católica proclamados pela autoridade  do supremo magistério para proteger a integridade da religião revelada  por Deus

41.  A esse propósito, veneráveis irmãos, fazemos questão de pôr em sua  justa luz uma coisa que pensamos não ignorais, isto é, o erro daqueles  que pretenderam que a sagrada liturgia fosse como uma experimentação do  dogma, de modo que, se uma destas verdades tivesse, através dos ritos da  sagrada liturgia, trazido frutos de piedade e de santidade, a Igreja  deveria aprová-la, e repudiá-la em caso contrário. Donde o princípio: "a  lei da oração é lei da fé".

42.  Não é, porém, assim que ensina e manda a Igreja. O culto que ela rende a  Deus é, como de modo breve e claro diz santo Agostinho, uma contínua  profissão de fé católica, e um exercício da esperança e da caridade: "a  Deus se deve honrar com a fé, a esperança e a caridade".  Na sagrada  liturgia fazemos explícita profissão de fé não somente com a celebração  dos divinos mistérios, com o cumprimento do sacrifício e a administração  dos sacramentos, mas ainda recitando e cantando o Símbolo da fé, que é  como o distintivo e a téssera dos cristãos, com a leitura de outros  documentos e das sagradas letras escritas por inspiração do Espírito  Santo. Toda a liturgia tem, pois, um conteúdo de fé católica enquanto  atesta publicamente a fé da Igreja.

43.  Por esse motivo, sempre que se tratou de definir um dogma, os sumos  pontífices e os concílios, abeberando-se das chamadas "fontes  teológicas", não raramente tiraram argumentos também dessa sagrada  disciplina, como fez, por exemplo, o nosso predecessor de imortal  memória Pio IX quando definiu a imaculada conceição de Maria virgem. Do  mesmo modo, a Igreja e os santos padres, quando se discutia uma verdade  controversa ou posta em dúvida, não deixaram de pedir luz também aos  ritos veneráveis transmitidos pela antiguidade. Assim se tornou  conhecida e venerada a sentença: "A lei da oração estabeleça a lei da  fé".

A  liturgia, portanto, não determina nem constitui em sentido absoluto e  por virtude própria a fé católica, mas antes, sendo ainda uma profissão  da verdade celeste, profissão dependente do supremo magistério da  Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pouco valor para  esclarecer um ponto particular da doutrina cristã. Se queremos  distinguir e determinar, de modo geral e absoluto, as relações que  intercorrem entre fé e liturgia, podemos afirmar com razão que "a lei da  fé deve estabelecer a lei da oração". O mesmo deve dizer-se ainda  quando se trata das outras virtudes teológicas: "na... fé, na esperança e  na caridade oramos sempre com desejo contínuo" .

44.  A hierarquia eclesiástica tem usado sempre desse seu direito em matéria  litúrgica, preparando e ordenando o culto divino e enriquecendo-o  sempre de novo esplendor e decoro para glória de Deus e vantagem dos  féis. Não duvidou, além disto - salva a substância do sacrifício  eucarístico e dos sacramentos - em mudar aquilo que não julgava  adaptado, em acrescentar o que parecia contribuir melhor para a glória  de Jesus Cristo e da augusta Trindade, para instrução e estímulo salutar  do povo cristão. 

45.  A sagrada liturgia, com efeito, consta de elementos humanos e de  elementos divinos. Esses, tendo sido instituídos pelo divino Redentor,  não podem, evidentemente, ser mudados pelos homens; aqueles, ao  contrário, podem sofrer várias modificações, aprovadas pela hierarquia  sagrada, assistida do Espírito Santo, segundo as exigências dos tempos,  das coisas e das almas. Disso se origina a estupenda variedade dos ritos  orientais e ocidentais; o desenvolvimento progressivo de hábitos  particulares religiosos e práticas de piedade inicialmente apenas  acenadas; disso advém que muitas vezes são repristinadas e renovadas  pias instituições obliteradas pelo tempo. Tudo isso testemunha a vida da  intemerata esposa de Jesus Cristo durante tantos séculos; exprime a  linguagem usada por ela para manifestar ao Esposo divino a fé e o amor  inexauríveis dela e das gentes que lhe foram confiadas; demonstra a sua  sábia pedagogia para estimular e incrementar nos crentes "o sentido de  Cristo".
 
46. Em verdade, não poucas são as causas pelas quais se explica e  desenvolve o progresso da sagrada liturgia durante a longa e gloriosa  história da Igreja.
Assim, por exemplo, uma formação mais certa e  ampla da doutrina católica sobre a encarnação do Verbo de Deus, sobre os  sacramentos, sobre o sacrifício eucarístico, e sobre a virgem Maria Mãe  de Deus, contribuiu para a adoção de novos ritos, por meio dos quais a  luz, mais esplendidamente brilhante na declaração do magistério  eclesiástico, veio a refletir melhor e mais claramente nas ações  litúrgicas para unir-se com maior facilidade à mente e ao coração do  povo cristão

47.  O ulterior desenvolvimento da disciplina eclesiástica na administração  dos sacramentos, por exemplo, do sacramento da penitência, a instituição  e depois o desaparecimento do catecumenato, a comunhão eucarística sob  uma só espécie na Igreja latina, contribuíram não pouco para a  modificação dos antigos ritos e a gradual adoção de novos e mais  condizentes com as disposições disciplinares mudadas.

48. Para essa evolução e para essas mudanças contribuíram  notavelmente as iniciativas e as práticas piedosas não estritamente  ligadas à sagrada liturgia, nascidas em épocas sucessivas por admirável  disposição de Deus e assim difundidas no povo, como, por exemplo, o  culto mais amplo e mais fervoroso da divina eucaristia, da acerbíssima  paixão do nosso Redentor, do sacratíssimo coração de Jesus, da virgem  Mãe de Deus e do seu puríssimo esposo.
48. Entre as circunstâncias  exteriores, tiveram a sua parte as peregrinações públicas de devoção  aos sepulcros dos mártires, a observância de jejuns particulares  instituídos para o mesmo fim, as procissões estacionais de penitência  que se celebravam nesta excelsa cidade e às quais, não raro, comparecia o  próprio sumo pontífice.
50. Também facilmente se compreende como o  progresso das belas artes, especialmente da arquitetura, da pintura e  da música tenham influído não pouco sobre a determinação e a diversa  conformação dos elementos exteriores da sagrada liturgia.

51.  Do mesmo direito seu em matéria litúrgica serviu-se a Igreja para  tutelar a santidade do culto contra os abusos temerariamente  introduzidos por indivíduos e por Igrejas particulares. Assim aconteceu  que nosso predecessor de imortal memória, Sixto V, vendo multiplicar-se  os usos e costumes deste gênero durante o século XVI e as iniciativas  privadas porem em perigo a integridade da fé e da piedade, com grande  vantagem dos hereges e da propaganda do seu erro, instituiu em 1588,  para defender os legítimos ritos da Igreja e impedir as infiltrações  espúrias, a Congregação dos ritos, órgão a que compete ainda hoje  ordenar e prescrever, com cuidado vigilante, tudo o que diz respeito à  sagrada liturgia. 

52.  Por isso, somente o sumo pontífice tem o direito de reconhecer e  estabelecer quaisquer praxes do culto, de introduzir e aprovar novos  ritos, e mudar aqueles que julgar devem ser mudados;  os bispos têm o  direito e o dever de vigiar diligentemente para que as prescrições dos  sagrados cânones relativamente ao culto divino sejam pontualmente  observadas.  Não é possível deixar ao arbítrio dos particulares, ainda  que sejam membros do clero, as coisas santas e venerandas relativas à  vida religiosa da comunidade cristã, ao exercício do sacerdócio de Jesus  Cristo e ao culto divino, à honra que se deve à santíssima Trindade, ao  Verbo encarnado, à sua augusta Mãe e aos outros santo, e à salvação dos  homens; pelo mesmo motivo a ninguém é permitido regular neste campo  ações externas que têm nexo íntimo com a disciplina eclesiástica, com a  ordem, a unidade, a concórdia do corpo místico e, não raro, com a  própria integridade da fé católica.

Certamente,  a Igreja é um organismo vivo e, por isso, ainda no que diz respeito à  sagrada liturgia, firme a integridade de seu ensinamento, cresce e se  desenvolve, adaptando-se e conformando-se às circunstâncias e às  exigências que se verificam no correr dos tempos; deve-se, todavia,  reprovar severamente a temerária audácia daqueles que introduzem de  propósito novos costumes litúrgicos ou fazem reviver ritos já caídos em  desuso e que não concordam com as leis e as rubricas vigentes. Assim,  não sem grande pesar, sabemos que isso acontece não somente em coisas de  pouca monta, mas ainda de gravíssima importância; não falta, com  efeito, quem use a língua vulgar na celebração do sacrifício  eucarístico, quem transfira para outros tempos festas fixadas já por  razões ponderáveis; quem exclua dos legítimos livros da oração pública  os escritos sagrados do Antigo Testamento, reputando-os pouco adaptados e  pouco oportunos para os nossos tempos.

53.  O uso da língua latina vigente em grande parte da Igreja, é um caro e  nobre sinal de unidade e um eficaz remédio contra toda corruptela da  pura doutrina. Em muitos ritos o uso da língua vulgar pode ser assaz  útil para o povo, mas somente a Sé Apostólica tem o poder de concedê-lo,  e por isso, neste campo, nada é lícito fazer sem o seu juízo e a sua  aprovação, porque, como havíamos dito, a regulamentação da sagrada  liturgia é de sua exclusiva competência.

54.  Do mesmo modo se devem julgar os esforços de alguns para revigorar  certos antigos ritos e cerimônias. A liturgia da época antiga é, sem  dúvida, digna de veneração, mas o uso antigo não é, por motivo somente  de sua antiguidade, o melhor, seja em si mesmo, seja em relação aos  tempos posteriores e às novas condições verificadas. Os ritos litúrgicos  mais recentes também são respeitáveis, pois que foram estabelecidos por  influxo do Espírito Santo que está com a Igreja até à consumação dos  séculos,   e são meios dos quais se serve a ínclita esposa de Jesus  Cristo para estimular e conseguir a santidade dos homens.
55.  É certamente coisa sábia e muito louvável retornar com a inteligência e  com a alma às fontes da sagrada liturgia, porque o seu estudo,  reportando-se às origens, auxilia não pouco a compreender o significado  das festas e a penetrar com maior profundidade e agudeza o sentido das  cerimônias, mas não é certamente coisa tão sábia e louvável reduzir tudo  e de qualquer modo ao antigo. Assim, para dar um exemplo, está fora do  caminho quem quer restituir ao altar a antiga forma de mesa; quem quer  eliminar dos paramentos litúrgicos a cor negra; quem quer excluir dos  templos as imagens e as estátuas sagradas; quem quer suprimir na  representação do Redentor crucificado as dores acérrimas por ele  sofridas; quem repudia e reprova o canto polifônico, ainda quando  conforme às normas emanadas da santa sé.
 

56.  Como, em verdade, nenhum católico fiel pode rejeitar as fórmulas da  doutrina cristã compostas e decretadas com grande vantagem em época mais  recente da Igreja, inspirada e dirigida pelo Espírito Santo, para  voltar às antigas fórmulas dos primeiros concílios, ou repudiar as leis  vigentes para voltar às prescrições das antigas fontes do direito  canônico; assim, quando se trata da sagrada liturgia, não estaria  animado de zelo reto e inteligente aquele que quisesse voltar aos  antigos ritos e usos, recusando as recentes normas introduzidas por  disposição da divina Providência e por mudança de circunstâncias.

57.  Este modo de pensar e de proceder, com efeito, faz reviver o excessivo e  insano arqueologismo suscitado pelo ilegítimo concílio de Pistóia, e se  esforça em revigorar os múltiplos erros que foram as bases daquele  conciliábulo e os que se lhe seguiram com grande dano das almas, e que a  Igreja - guarda vigilante do "depósito da fé" confïado pelo seu divino  Fundador - condenou com todo o direito.  De fato, deploráveis propósitos  e iniciativas tendem a paralisar a ação santificadora com a qual a  sagrada liturgia orienta salutarmente ao Pai celeste os filhos de  adoção.
58. Tudo, pois, seja feito em indispensável união com a  hierarquia eclesiástica. Ninguém se arrogue o direito de ser lei para si  mesmo e de impô-la aos outros por sua vontade. Somente o sumo  pontífice, na qualidade de sucessor de Pedro, ao qual o divino Redentor  confiou o rebanho universal,  e juntamente os bispos, que sob a  dependência da Sé Apostólica "o Espírito Santo colocou para reger a  Igreja de Deus",  têm o direito e o dever de governar o povo cristão.  Por isso, veneráveis irmãos, toda vez que defendeis a vossa autoridade -  oportunamente, ainda que com severidade salutar não somente cumpris o  vosso dever, mas defendeis a própria vontade do Fundador da Igreja.
SEGUNDA PARTE
O CULTO EUCARÍSTICO
59.  O mistério da santíssima eucaristia, instituída pelo sumo sacerdote  Jesus Cristo e, por vontade sua, perpetuamente renovada pelos seus  ministros, é como a súmula e o centro da religião cristã. Em se tratando  do ápice da sagrada liturgia, julgamos oportuno, veneráveis irmãos,  deter-nos um pouco, chamando a vossa atenção para esta importantíssima  temática.

60.  O Cristo Senhor, "sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque"  ,  "tendo amado os seus que estavam no mundo",   "na última ceia, na noite  em que foi traído, para deixar à Igreja, sua esposa dileta, um  sacrifício visível, como exige a natureza dos homens, o qual  representasse o sacrifício cruento que devia cumprir-se na cruz uma só  vez, e para que a sua lembrança permanecesse até o fim dos séculos e nos  fosse aplicada sua salutar virtude em remissão dos nossos pecados  cotidianos... ofereceu a Deus Pai o seu corpo e o seu sangue sob as  espécies de pão e de vinho e deu-os aos apóstolos então constituídos  sacerdotes do Novo Testamento, para que sob essas mesmas espécies o  recebessem, e ordenou a eles e aos seus sucessores no sacerdócio, que o  oferecessem". 

61.  O augusto sacrifício do altar não é, pois, uma pura e simples  comemoração da paixão e morte de Jesus Cristo, mas é um verdadeiro e  próprio sacrifício, no qual, imolando-se incruentamente, o sumo  Sacerdote faz aquilo que fez uma vez sobre a cruz, oferecendo-se todo ao  Pai, vítima agradabilíssima. "Uma... e idêntica é a vítima: aquele  mesmo, que agora oferece pelo ministério dos sacerdotes, se ofereceu  então sobre a cruz; é diferente apenas, o modo de fazer a oferta". 
 
62. Idêntico, pois, é o sacerdote, Jesus Cristo, cuja sagrada  pessoa é representada pelo seu ministro. Este, pela consagração  sacerdotal recebida, assemelha-se ao sumo Sacerdote e tem o poder de  agir em virtude e na pessoa do próprio Cristo;  por isso, com sua ação  sacerdotal, de certo modo, "empresta a Cristo a sua língua, e lhe  oferece a sua mão". 

63.  Também idêntica é a vítima, isto é, o divino Redentor, segundo a sua  humana natureza e na realidade do seu corpo e do seu sangue. Diferente,  porém, é o modo pelo qual Cristo é oferecido. Na cruz, com efeito, ele  se ofereceu todo a Deus com os seus sofrimentos, e a imolação da vítima  foi realizada por meio de morte cruenta livremente sofrida; no altar, ao  invés, por causa do estado glorioso de sua natureza humana, "a morte  não tem mais domínio sobre ele"  e, por conseguinte, não é possível a  efusão do sangue; mas a divina sabedoria encontrou o modo admirável de  tornar manifesto o sacrifício de nosso Redentor com sinais exteriores  que são símbolos de morte.

  Já que, por meio da transubstanciação do pão no corpo e do vinho no  sangue de Cristo, têm-se realmente presentes o seu corpo e o seu sangue;  as espécies eucarísticas, sob as quais está presente, simbolizam a  cruenta separação do corpo e do sangue. Assim o memorial da sua morte  real sobre o Calvário repete-se sempre no sacrifício do altar, porque,  por meio de símbolos distintos, se significa e demonstra que Jesus  Cristo se encontra em estado de vítima.

64. Idênticos, finalmente, são os fins, dos quais o primeiro é a  glorificação de Deus. Do nascimento à morte, Jesus Cristo foi abrasado  pelo zelo da glória divina e, da cruz, a oferenda do sangue chegou ao  céu em odor de suavidade. E porque este cântico não havia de cessar, no  sacrifício eucarístico os membros se unem à Cabeça divina e com ela, com  os anjos e os arcanjos, cantam a Deus louvores perenes,  dando ao Pai  onipotente toda honra e glória.   

65. O segundo fim é a ação de graças a Deus. O divino Redentor  somente, como Filho de predileção do Eterno Pai de quem conhecia o  imenso amor, pôde entoar-lhe um digno cântico de ação de graças. A isso  visou e isso desejou "rendendo graças"  na última ceia, e não cessou de  fazê-lo na cruz, não cessa de realizá-lo no augusto sacrifício do altar,  cujo significado é justamente a ação de graças ou eucaristia; e porque  isso é "verdadeiramente digno e justo e salutar". 

66.  O terceiro fim é a expiação e a propiciação. Certamente ninguém, fora  Cristo, podia dar a Deus onipotente satisfação adequada pelas culpas do  gênero humano; ele, pois, quis imolar-se na cruz, "propiciação pelos  nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas ainda pelos de todo o  mundo".  Nos altares se oferece igualmente cada dia pela nossa redenção,  afim de que, libertados da eterna condenação, sejamos acolhidos no  rebanho dos eleitos. E isso não somente por nós que estamos nesta vida  mortal, mas ainda "por todos aqueles que repousam em Cristo, os quais  nos precederam com o sinal da fé, e dormem o sono da paz",  pois, quer  vivamos, quer morramos, "não nos separamos do único Cristo". 

67.  O quarto fim é a impetração. Filho pródigo, o homem malbaratou e  dissipou todos os bens recebidos do Pai celeste, por isso está reduzido à  suprema miséria e inanição; da cruz, porém, Cristo, "tendo em alta voz e  com lágrimas oferecido orações e súplicas... foi ouvido pela sua  piedade",  e nos sagrados altares exercita a mesma mediação eficaz; a  fim de que sejamos cumulados de toda bênção e graça.
68.  Compreende-se, portanto, facilmente, porque o sacrossanto concílio de  Trento afirma que com o sacrifício eucarístico nos é aplicada a salutar  virtude da cruz para a remissão dos nossos pecados cotidianos. 

69.  Também o apóstolo das gentes, proclamando a superabundante plenitude e  perfeição do sacrifício da cruz, declarou que Cristo com uma só oblação,  tornou perfeitos para sempre os santificados.  Os infinitos e imensos  méritos desse sacrifício, com efeito, não têm limites: estendem-se à  universalidade dos homens de todo lugar e de todo tempo, porque, nele, o  sacerdote e a vítima é Deus Homem; porque a sua imolação como a sua  obediência à vontade do Eterno Pai foi perfeitíssima, e porque foi como  Cabeça do gênero humano, que ele quis morrer. "Considera como foi  tratado o nosso resgate: Cristo pende do madeiro; vê a que preço  comprou; ...derramou o seu sangue, comprou com o seu sangue, com o  sangue do Cordeiro imaculado, com o sangue do unigênito Filho de Deus...  Quem compra é Cristo, o preço é o sangue, a aquisição é todo o mundo". 
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70.  Esse resgate, porém, não teve logo o seu pleno efeito: é necessário  que, depois de haver resgatado o mundo com o elevadíssimo preço de si  mesmo, Cristo entre na real e efetiva posse das almas. Conseqüentemente,  a fim de que, com o beneplácito de Deus, se cumpra para todos os  indivíduos e para todas as gerações até o fim dos séculos, a sua  redenção e salvação, é absolutamente necessário que cada um tenha vital  contato com o sacrifício da cruz, e assim os méritos que dele derivam  lhe sejam transmitidos e aplicados. Pode-se dizer que Cristo construiu  no Calvário uma piscina de purificação e de salvação e a encheu com o  sangue por ele derramado; mas se os homens não mergulham nas suas ondas e  aí não lavam as manchas de sua iniqüidade, não podem certamente ser  purificados e salvos.

71.  A fim de que, pois, os pecadores individualmente se purifiquem no  sangue do Cordeiro, é necessária a colaboração dos fiéis. Se bem que,  falando em geral, Cristo haja reconciliado com o Pai por meio da sua  morte cruenta todo o gênero humano, quis todavia que todos se  aproximassem e fossem conduzidos à cruz por meio dos sacramentos e do  sacrifício da eucaristia, para poderem conseguir os frutos salutares por  ele granjeados na cruz. Com esta atual e pessoal participação assim  como os membros se configuram cada dia mais à sua Cabeça divina, assim  também a salvação que vem da Cabeça flui para os membros, de modo que  cada um de nós pode repetir as palavras de são Paulo: "Estou crucificado  com Cristo na cruz, e vivo não mais eu, mas Cristo vive em mim"  Como  realmente, em outra ocasião, de propósito e concisamente dissemos, Jesus  Cristo enquanto morria na cruz, deu à sua Igreja, sem nenhuma  cooperação da parte dela, o imenso tesouro da Redenção; quando, ao  invés, se trata de distribuir tal tesouro, não só participa com sua  esposa incontaminada desta obra de santificação, mas deseja que tal  atividade jorre, de certo modo, por ação dela. 

72.  O augusto sacrifício do altar é insigne instrumento para aos crentes  distribuir os méritos derivados da cruz do divino Redentor: "toda vez  que se oferece este sacrifício, cumpre-se a obra da nossa redenção".   Isso, porém, longe de diminuir a dignidade do sacrifício cruento, dele  faz ressaltar a grandeza, como afirma o concílio de Trento,"   e lhe  proclama a necessidade. Renovado cada dia, admoesta-nos que não há  salvação fora da cruz de nosso Senhor Jesus Cristo;   que Deus quer a  continuação deste sacrifício "do surgir ao pôr-do-sol",   para que não  cesse jamais o hino de glorificação e de ação de graças que os homens  devem ao Criador, visto que têm necessidade de seu contínuo auxílio e do  sangue do Redentor para redimir os pecados que ofendem a sua justiça.