terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Um segundo escopo do Motu Proprio: a reforma da reforma

 

A enorme difusão da obra de Monsenhor Nicola Bux, intitulada A Reforma de Bento XVI (1), dá-nos a ocasião de sair o quadro estrito da aplicação do Motu Proprio Summorum Pontifium para fazermos o ponto da situação sobre a “reforma da reforma” que o Sumo Pontífice desencadeou no domínio da liturgia e sobre a relação que, pouco a pouco, se deve estabelecer entre as duas formas da liturgia romana.
O primeiro escopo do Motu Proprio Summorum Pontifium é claro: fazer com que a Missa tradicional possa ser celebrada em todas as paróquias em que se apresente uma solicitação nesse sentido. O MP não estará a ser verdadeiramente aplicado enquanto não pudermos ver nas catedrais de Paris ou de Bayonne e naquelas de Luçon ou de Langres, a Missa das 10 a ser celebrada segundo a forma ordinária e a das 11 em forma extraordinária ou vice-versa. Numa palavra: no que respeita à aplicação do MP, hoje, estamos ainda na linha da partida.
A – O projecto da “reforma da reforma”
O segundo escopo do MP, ainda que implícito, nem por isso é menos evidente, se considerarmos seja tudo aquilo o Cardeal Ratzinger escrevera precedentemente sobre este tema, seja o desejo formulado no próprio texto de 2007: o «enriquecimento recíproco» das duas formas que, a partir de agora, coexistem oficialmente. Enriquecimento: a todos é notório que a forma mais «rica» de modo mais evidente é aquela que goza de uma tradição ininterrupta de dez séculos (e até mesmo de dezassete séculos no que respeita à sua parte essencial, o cânone) e cujo valor doutrinal e ritual é pelo menos semelhante ao das outras grandes liturgias católicas. Na sua obra, Nicola Bux escreve o seguinte: «Os estudos comparativos demonstram que a liturgia romana estava muito mais próxima da liturgia oriental na sua forma pré-conciliar do que a liturgia actual». É por isso que, falando seriamente ninguém se lembra de negar que a forma que, em primeiro lugar, deverá ser enriquecida/transformada há-de ser esta liturgia fabricada à pressa há quarenta anos, pois, como sublinha Nicola Bux: «É preciso confessar que a missa de Paulo VI está longe de ter tudo o que vemos no missal de São Pio V».
Criou-se o hábito de dar o nome de “reforma da reforma” a este processo de enriquecimento/transformação da reforma de Paulo VI com o objectivo de a tornar mais tradicional tanto no fundo como na forma. Se bem que fosse exagerado dizer que a reforma da reforma é algo que pertence ainda ao domínio dos desejos pios, convém todavia admitir que ela está apenas — um pouco como acontece com a forma extraordinária — no começo.
Impõem-se duas observações prévias relativamente ao processo que terá lugar no futuro:
> 1. A reforma da reforma, como o indica a própria expressão, diz apenas respeito à reforma de Paulo VI. De modo algum pode ela induzir uma transformação, supostamente «paralela», da forma tradicional do rito. As duas formas não são de todo comparáveis do ponto de vista da sua relação com a tradição nem do ponto de vista da sua estrutura ritual. Proceder a um bricolage ou a uma composição sobre o rito tradicional seria um verdadeiro torpedeamento com o qual todos sairiam a perder — com isso a reforma da reforma acabaria por ver desabar a sua própria coluna vertebral — e, além do mais, em tempos, uma tal hipótese foi prudente e claramente afastada pelo Cardeal Ratzinger (2).
> 2. Além disso, a reforma da reforma não mira a estabelecer por meio de uma série de reformas feitas por decretos e leis um terceiro missal, a meio caminho entre o missal tridentino e o novo missal (o qual, aliás, é muito mais um conjunto indefinido, diversificado e evolutivo do que um «missal» no sentido tradicional do termo). Ao Cardeal Ratzinger, ontem, e ao Papa Bento XVI, hoje, causa repugnância pôr em prática um movimento de reformas autoritárias e continuadas semelhante — ainda que em sentido inverso — ao que foi realizado pela reforma de Paulo VI. Trata-se, em vez disso, de começar um processo progressivo de aproximação do missal de Paulo VI na direcção do missal tradicional, o que, aliás, é permitido pelo carácter maleável da nova liturgia, alterável a bel-prazer: paradoxalmente, o seu carácter a-normativo permite que se lhe infunda a norma tradicional de que carece. Podemos mesmo perguntar-nos se, no final de um tal processo, ela irá ter um qualquer interesse que não seja o de ser uma mera propedêutica à liturgia tradicional?
B – O livro de Nicola Bux
A importância da publicação deste livro deve-se em primeiro lugar ao peso do seu autor. Mons. Nicola Bux, professor de liturgia e de teologia sacramental no Instituto de Teologia Ecuménico-Patrística de Bari, na Itália, é consultor da Congregação para a Doutrina da Fé e da Congregação para a Causa dos Santos e ainda do Gabinete para as Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice, conselheiro da revista Communio e autor de numerosos livros (nomeadamente, Il Signore dei Misteri. Eucaristia e Relativismo — O Senhor dos Mistérios. Eucaristia e Relativismo, Cantagalli, 2005) e de múltiplos artigos (“Sessenta Anos Depois da Encíclica Mediator Dei de Pio XII, Debater Serenamente sobre a Liturgia”, in Osservatore Romano, 18 de Novembro, 2007). Além disso, é um dos defensores mais influentes da reforma da reforma de Paulo VI.
À sua volta poderíamos citar muitos outros nomes, como o do Pe. Alcuin Reid (The Organic Development of the Liturgy, Ad Solem, 2006), Mons. Nicola Giampietro (publicação das memórias do Cardeal Antonelli, Apoc 2004), Mons. Athanasius Schneider (Dominus Est - Riflessioni di un Vescovo dell'Asia Centrale sulla Sacra Comunione, Libreria Editrice Vaticana, 2008), Pe. Aidan Nichols (Liturgie et Modernité, Ad Solem, 1998) ou ainda o Pe. Mauro Gagliardi (Lturgia, Fonte di Vita, Fede & Cultura, 2009). Sem esquecer as iniciativas promovidas pelo Pe. Manelli e pelos Franciscanos da Imaculada ou, claro está, a acção quotidiana de importantes prelados como o Bispo Ranjith, o Arcebispo Burke, o Cardeal Cañizares, etc.
A par disso, o livro de Mons. Bux pôde contar com três prefácios, o do famoso jornalista italiano Vittorio Messori (que realizou o Diálogos sobre a Fé com o Cardeal Ratzinger) para a edição italiana, o do Bispo Marc Aillet, bispo de Bayonne, para a edição francesa, e o do próprio Prefeito da Congregação para o Culto Divino, o Cardeal Cañizares, para a edição espanhola.
Segundo Nicola Bux, a crise que feriu a liturgia romana deve-se ao facto de que a mesma já não se centra em Deus e na Sua adoração, mas antes sobre os homens e sobre a comunidade. «No início está a adoração e, logo, Deus (…) A Igreja provém da adoração, da missão de glorificar a Deus», assim escrevera a este propósito Joseph Ratzinger. A crise da liturgia começa no momento em que deixa de ser uma adoração, no momento em que se reduz à celebração de uma comunidade particular, na qual padres e bispos, em vez de serem ministros, isto é, servidores, passam a ser “líderes”. É por isso que, hoje, «as pessoas pedem cada vez mais respeito para que se garanta um espaço pessoal de silêncio, com vista a uma participação íntima da fé nos mistérios sagrados».
Assim, há que voltar a ensinar a um clero machucado na sua prática e consciência cultuais que a liturgia é sagrada e divina, que ela provém das alturas como a da Jerusalém celeste no Apocalipse. «A este propósito, seria necessário envidar esforços para tentar saber porque é que, afinal e apesar das aparências, a língua vernácula não consegue tornar a liturgia mais compreensível.» Será conveniente reeducar o sacerdote para a realização dos sagrados mistérios in persona Christi, na Igreja, enquanto ministro e não como um animador de uma assembleia fechada sobre si mesma, pois foi nisso que ele se transformou.
C – O projecto da reforma da reforma: proceder com base mais no exemplo do que nos textos de leis
Sem embargo da gravidade dos factos observados pelo Mons. Bux, em particular, e pelos “homens do Papa”, em geral, e isto no seguimento da linha do pensamento do Santo Padre nesta matéria, nem ele nem eles pretendem leis e decretos que, ao jeito daqueles da época de Bugnini, tentassem revirar tudo de maneira autoritária. Mesmo estando hoje a Igreja seriamente doente, em termos litúrgicos, eles preferem agir através do medicamento doce que é o exemplo: o do Sumo Pontífice, em primeiro lugar, e depois, o dos bispos que, à semelhança do Papa, também queiram dar o exemplo.
Deste modo, Bento XVI multiplica, em jeito de beliscões, os gestos correctores; estes, sem dúvida, poderão parecer meras questões de pormenor, mas é também certo que a liturgia não pode deixar de ser constituída por um conjunto de pormenores: a grande dignidade das celebrações pontificais, a beleza dos paramentos da sacristia de São Pedro que têm sido usados de novo pelo mestre-de-cerimónias pontifício, Mons. Marini, a colocação dos grandes e pesados castiçais sobre o altar que vêm esbater o efeito teatral do estar voltado face ao povo, e sobretudo a distribuição da comunhão na boca e de joelhos.
Cabe agora aos bispos fazer o mesmo nas suas celebrações públicas. Sabemos também que, recentemente, com uma ordem emanada a 27 de Abril de 2009, o Cardeal Carlo Caffarra, arcebispo de Bolonha e um dos expoentes teológicos mais valiosos do episcopado italiano, decidiu que «dada a frequência das informações sobre comportamentos irreverentes no momento de receber a Eucaristia», «a partir deste dia, na igreja metropolita de São Pedro, na basílica de São Petrónio e no santuário de Nossa Senhora de São Lucas, em Bolonha, os fiéis deverão receber o Pão Consagrado de um ministro, apenas directamente sobre a língua».
Por seu turno, Dom Athanasius Schneider, juntamente com o Pe. Mauro Gagliardi (3), pedem-nos para lembrar vigorosamente que o modo «normal» é o da comunhão na boca e que a comunhão na mão não é senão um modo «tolerado», ainda que, desde há bastante tempo, este seja o modo maioritário. Este encorajamento tem grande importância para o renascimento da fé na presença real. O respeito pelo divino e pelo sagrado exprime-se através de gestos de reverência, acrescenta ainda Mons. Bux.
Mas há ainda outros pontos constantemente invocados pelos adeptos da reforma da reforma, entre os quais podemos citar os seguintes:
> 1. A incitação para que se reduza o número dos concelebrantes e mesmo o das concelebrações: «Quando ela [a concelebração] se torna demasiado frequente, a função mediadora de cada sacerdote enquanto sacerdote fica obscurecida.»
> 2. Fazer com que se diminua pouco a pouco a multiplicação das partes opcionais da missa (em vista estão as orações eucarísticas, entre as quais há algumas doutrinalmente problemáticas).
> 3. Reintroduzir elementos da forma extraordinária que favorecem o sentido do sagrado e a adoração, tais como as genuflexões, os beijos do altar, os antiquíssimos sinais da cruz do cânone: «O sagrado também se exprime através dos sinais da cruz e das genuflexões» (N. Bux).
> 4. E ainda muitos outros: lembrar que o sinal da paz é uma acção sagrada e não um gesto de civilidade urbana, reintroduzir em força o uso do latim como língua litúrgica, etc.
Finalmente, e sobretudo, como não nos haveremos de deter a reflectir sobre o encorajamento que se dá ao sacerdote para que celebre voltado para o Senhor, pelo menos durante o ofertório e a oração eucarística. «A medida mais visível da reforma litúrgica», assim escreve Mons. Bux, «foi a mudança da posição do sacerdote em relação ao povo». À luz de tais palavras, é-nos então legítimo estimar que a reforma da reforma se poderá dar por verdadeiramente lançada e já em marcha, logo que o Papa e os bispos se vejam a celebrar regularmente voltados para o Senhor.
D – O forte do projecto de reforma da reforma
No seu livro, Nicola Bux observa que a chave da nova liturgia, tal como ela saiu do gabinete de Bugnini — que foi o autor da reforma litúrgica —, é a adequação ao mundo. É neste preciso ponto que a reflexão por ela operada, em uníssono com aquela dos adeptos da reforma da reforma, se torna mais radical: a essência da liturgia católica é de ser «como que uma crítica permanente que a Igreja dirige ao mundo, ao mesmo tempo que este tenta constantemente convencê-la de que faz parte dela». É aí que urge lembrarmo-nos de que revolução não é o mesmo que reforma: «A reforma não pode ser entendida como uma tentativa de reconstrução que siga os gostos de uma época determinada.»
É por isso mesmo que Mons. Bux cita e comenta à saciedade o Breve Exame Crítico publicado logo após o Concílio pelos Cardeais Ottaviani e Bacci. «Eles lamentavam», lembra ele dando a sua aprovação aos dois cardeais italianos, «a ausência que se sentia do fim ordinário da missa, isto é, o sacrifício propiciatório.» Com efeito, só um cego podia não ver que, de facto, o novo rito da missa tem por efeito uma imanentização da mensagem cristã: a doutrina do sacrifício propiciatório, a adoração da presença real de Cristo, a especificidade do sacerdócio hierárquico e, em geral, o carácter sagrado da celebração eucarística encontram-se expressos nele de maneira muito menos sensível do que no rito tradicional. É por isso que ganham hoje novo vigor as tentativas feitas no sentido de infundir de novo no novo missal as orações que melhor exprimem o seu valor sacrificial, a saber, as do ofertório (ver, por exemplo, o autêntico manifesto neste sentido que foi o livro do padre beneditino Paul Tirot: Histoire des Prières d’Offertoire dans la Liturgie Romaine du VIIe au XVIe Siècle, Edizioni Liturgiche, 1985).
Assim, se há um ponto em relação ao qual é de contar com legislação que faça avançar o projecto de reforma da reforma, com certeza há-de ser este: a possibilidade de introduzir na celebração ordinária as orações do ofertório romano tradicional.
No final, caso este plano venha realmente a ganhar corpo, no seu termo, poderíamos encontrar-nos diante de uma situação inversa à que se constituiu entre 1965 e 1969: como resposta a este período de transformações brutais, altura essa em que tudo mudava num sentido “progressista”, teríamos agora um período de evolução suave em que tudo mudaria no sentido da re-sacralização.
Levar a cabo a reforma da reforma desta maneira seria algo de realmente reformador, no sentido tradicional — e deveras exigente! — do termo “reforma”. Ela haveria de proceder por “contaminação”, para empregarmos um termo familiar para os historiadores do culto, sempre que pretendem falar da influência de uma liturgia sobre outra: neste caso, a da liturgia tradicional sobre a nova liturgia.
De facto, poderíamos mesmo dizer que, a longo prazo, será talvez a forma extraordinária a oferecer a única hipótese de salvação da forma ordinária, precisamente porque a leva a tornar-se cada vez menos ordinária. Ela poderia transformar-se numa espécie de degrau que permitisse aceder à liturgia. Como quer que fosse, ela nunca iria oferecer concorrência à forma extraordinária, ao contrário, fornecer-lhe-ia um meio bem mais vantajoso para a sua difusão e afirmação como forma oficial de referência.
(1) Estando a aguardar uma versão portuguesa, o livro do Mons. Bux está disponível na sua versão original, publicada pela editora italiana Piemme.
(2) Em 2001, nas jornadas litúrgicas de Fontgombault, o Cardeal Ratzinger havia afirmado que, sem dúvida, durante muito tempo no futuro, não se poria a questão de tocar no missal tridentino, essencialmente porque a sua presença e a sua vida actual podiam servir de estímulo para uma evolução do novo missal. Esta «linha» é hoje claramente a que é adoptada pela Congregação do Culto Divino e pela Comissão Ecclesia Dei, onde se crê, por exemplo, ser impossível a introdução do novo leccionário no rito tradicional. O único arranjo que se pode perspectivar para o rito tradicional, de acordo com os liturgistas romanos, seria o da introdução de novos prefácios.
(3) Entrevista concedida a zenit.org, a 21 de Dezembro de 2009
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fonte.Paix Liturgique