Entrevista com Dom Fernando Arêas
Rifan
Por Alexandre Ribeiro
SÃO PAULO, terça-feira, 19 de maio
de 2009 (
ZENIT.org).- O bispo da Administração Apostólica Pessoal São
João Maria Vianney (Campos, Brasil), Dom Fernando Arêas Rifan, considera que a
permissão universal de
Bento XVI para se celebrar a missa antiga (chamada também de missa tridentina)
promove a paz litúrgica e beneficia tanto tradicionalistas como
progressistas.
A
Adminstração Apostólica São João Maria
Vianney foi criada por João Paulo II em 2002. É uma diocese de caráter
pessoal, não territorial, fundada após diálogo com fiéis tradicionalistas que
eram numerosos na região.
Nesta entrevista a Zenit, Dom Fernando Rifan
fala sobre o caráter sagrado da liturgia.
–Poderia explicar a
diferença entre os termos “sagrado” e “profano”?–
Dom Fernando
Arêas Rifan: Um dos motivos pelos quais nós conservamos e amamos a liturgia
romana na sua forma antiga –que é chamada atualmente de forma extraordinária do
rito romano–, é exatamente porque ela expressa bem o caráter sagrado da
liturgia. Não que a outra não expresse,
mas
esta expressa de modo mais claro. Como, aliás, acontece com a
diferença entre os vários ritos. Participei recentemente, ao lado de outros
bispos, da Missa no rito maronita. O que os bispos mais admiraram foi o respeito
e o caráter sagrado que se expressa naquele rito oriental. São modos de
expressar a sacralidade, podemos dizer, o caráter vertical da liturgia, de nós
para Deus, e não apenas o horizontal, que seria de homem para homem.
A
liturgia é algo sagrado. Portanto, algo que nos fala de Deus. É interessante que
qualquer pessoa sabe disso. Uma das coisas mais tocantes da história do Brasil
foi aquela passagem da carta de Pero Vaz de Caminha, quando ele narra a primeira
missa no Brasil. Ele conta que os portugueses chegaram, os padres formaram o
altar, prepararam o órgão e começou a missa. Os índios foram chegando e
começaram a imitar os gestos dos portugueses. Um detalhe interessante é que
durante a missa chegou um outro grupo de índios. Um índio do primeiro grupo, que
já estava ali, quando certamente interrogado por um índio do segundo grupo sobre
o que estava acontecendo, apontou para a missa e apontou para o céu. Para mim
este é o melhor comentário sobre a missa. Apontou para a missa e apontou para o
céu: quer dizer, está-se passando a comunicação da terra com o céu. Está-se
fazendo uma coisa sagrada. Esse caráter sagrado é que a gente não pode deixar
perder na liturgia.
–Poderia dar exemplos de como se expressa o
caráter sagrado?–
Dom Fernando Arêas Rifan: O latim, por
exemplo, que nós conservamos na liturgia, mas não em tudo, já que as leituras e
os cânticos são em português. O latim que se conserva na liturgia é exatamente
para preservar o caráter sagrado, para que todo mundo sinta que ali se passa
algo que não é comum no dia-a-dia. É algo diferente. Por isso que a língua é
sagrada. Aliás, nas grandes religiões também se usa uma língua diferente. No
rito maronita, por exemplo, a consagração é em aramaico. Não é a mesma língua
que você fala. Até em outras religiões há uma língua sagrada. Não é a língua
comum. Então a liturgia nessas religiões tem uma outra língua. Mesmo o Hino
Nacional brasileiro não é no linguajar que se usa a cada dia. Mostra que ali há
algo sagrado, é o hino da pátria. Não se precisa entender cada palavra. Precisa
entender que é algo sagrado que acontece.
A língua, os gestos, as
inclinações, as genuflexões, os símbolos, os panos, as toalhas, tudo tem de
exprimir um caráter sagrado. Você não usa uma toalha qualquer. É uma toalha
diferente. O espaço celebrativo é diferente. Os cânticos são diferentes. Então
não se pode usar aquilo que é comum, profano. A não ser que seja santificado,
digamos. O pão, por exemplo, você come; mas o pão eucarístico é diferente. É por
isso, por exemplo, que existe o ofertório: a retirada de algo do uso comum que
se coloca para uso litúrgico. Assim também com a bênção. Você consagra algo para
uso mais sagrado. As vestes sacerdotais, o modo de falar. Outro exemplo: o
sermão não é um discurso político, não é para ficar contando piada, não é algo
reles. Você está ali para ouvir a palavra de Deus. O “terra a terra” você já
ouve toda hora. Para que você precisa disso na Igreja?
–O que o senhor
chama de “terra a terra” tem a ver com o termo “profano”?–
Dom
Fernando Arêas Rifan: “Profano” vem do latim “pro fanum”, em frente ao
templo, fora do templo, não sagrado. Por exemplo, a Igreja diz que o instrumento
por excelência a ser usado na liturgia é o órgão de tubos. Ele tem um som que o
nosso subconsciente já se acostumou como algo sagrado. A Igreja põe como modelo
do canto religioso o canto gregoriano. Porque é um canto em que predomina a
oração cantada. A oração de melodia com pouca coisa de harmonia e quase nada de
ritmo. Nas músicas modernas, por exemplo, bem profanas, tem-se a predominância
do ritmo sobre a melodia e sobre a harmonia. Isso já mostra o caráter profano da
música. Ela pode ser boa em outro lugar. É como dizia o próprio cardeal
Ratzinger: há muita gente que confunde a igreja com o salão paroquial. Há coisas
que você pode fazer no salão paroquial, mas não na igreja. Eu, por exemplo, toco
acordeão. Toco música popular. Mas não na igreja. Eu toco no salão paroquial,
com as crianças, na quermesse, onde as crianças tocam pandeiro, tamborim. Na
igreja é o órgão. É preciso que se ressalte bem o caráter religioso, sagrado, ou
seja, a sacralidade na Igreja. Na liturgia há os tempos de silêncio, porque o
silêncio é algo bem respeitoso. Na Igreja não se aplaude, como se aplaude em um
comício. O silêncio é tão respeitoso que já diz tudo. Não precisa ficar
aplaudindo.
Nós preferimos a liturgia tradicional por tudo isso. Mas em
qualquer liturgia há que se guardar o caráter religioso, sagrado, e não cair na
coisa profana. O próprio Papa João Paulo II lamenta isso na Encíclica Ecclesia
de Eucharistia: “às vezes transparece uma compreensão muito redutiva do mistério
eucarístico. Despojado do seu valor sacrifical, é vivido como se em nada
ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa” (n.
10). Ou, como disse Bento XVI na carta aos bispos apresentando o Motu Próprio
Summorum Pontificum, em muitos lugares, não se atendo às prescrições litúrgicas,
consideram-se “autorizados ou até obrigados à criatividade, o que levou
frequentemente a deformações da Liturgia ao limite do suportável”. Palavra
infelizmente verdadeira: liturgia levada ao limite do suportável! E o Papa
acrescenta: “Falo por experiência, porque também eu vivi aquele período com
todas as suas expectativas e confusões. E vi como foram profundamente feridas,
pelas deformações arbitrárias da Liturgia, pessoas que estavam totalmente
radicadas na fé da Igreja”.
–Há um renovado interesse pela liturgia
tradicional?–
Dom Fernando Arêas Rifan: Muitos padres novos
querem aprender a liturgia na forma antiga. Há dois anos eu participei de um
congresso em Oxford, na Inglaterra, promovido por grupos locais, para ensinar
aos padres a liturgia tradicional. Foi aberto pelo arcebispo de Birminghan. Na
missa, ele falou: ‘vocês todos estão aqui para aprender a forma antiga do rito
romano. Vocês vão voltar para suas paróquias e celebrar o rito normal, de Paulo
VI, mas vão celebrar melhor, porque, aprendendo o rito tradicional, aprenderão
mais sacralidade, a rezar com mais devoção, e isso vai ajudá-los’.
O Papa
quis isso. Quando ele permitiu a missa tradicional para o mundo todo, na forma
extraordinária do rito romano, ele quis exatamente isso: a paz litúrgica, que um
beneficiasse o outro. O rito tradicional pode se beneficiar do rito novo na
maior participação que este traz; por outro lado, o rito novo vai aprender com o
rito antigo a característica de mais sacralidade.
Depois dessa paz
litúrgica que o Papa quis entre os dois ritos, para que um beneficie o outro,
tem havido muita procura por sacerdotes. Nós mesmos fizemos um
DVD para
ensinar o rito tradicional. Muitos padres têm aprendido, muitos bispos têm
incentivado nas suas dioceses. Acho que isso é muito importante. Conservar a
liturgia tradicional como forma de riqueza da Igreja, uma forma litúrgica de
expressar os dogmas eucarísticos e o respeito. Não se trata de confronto, de
briga, nada disso. É um modo da Igreja, legítimo, aprovado pela Igreja, sem
causar nenhum detrimento à comunhão. Evita divisões. O Bispo local patrocinando
a Missa no rito tradicional, colocando-a em suas igrejas com sacerdotes
regulares e sob sua jurisdição, evita que alguns católicos caiam na tentação de
querer ir buscá-la em grupos separados ou cismáticos. O Bispo poderá dizer: “Nós
temos aqui, porque ir buscar a Missa no rito romano antigo em outro
lugar?”