quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Padre Afonso Rodrigues, TRATADO PRIMEIRO Da mortificação

 ceba

pois o cristão leitor êste modesto trabalho, e com êle e com s·tea boa vontade, favorecida de Deus, alcançará vitória de suas paixões, recato em suas palavras, modéstia em suas acções, consolação e remédio em suas tenta­ções, grandes riquezas sobrenaturais em Jesus Cris­to, devoção em sete recolhimento e grande fruto em sua alma. Afonso Rodrigues
TRATADO PRIMEIRO Da mortificação CAPíTULO I É necessariO juntar a mortificaçã�) com a oração,e estas duas coisas hão de ajudar-se uma à outraÉ boa a oração com o jejum (I) , disse o an­jo S. Rafael a Tobias, quando se manifestou e deu a conhecer. Por êste nome de jejum enten­dem comummente os Santos todo o género de pe­nitência e mortificação da carne.Estas duas coi­sas, mortificação e oração, são dois meios dos mais principais que temos para o nosso aproveitamen­to, e convém que andem juntos e acompanhados um do outro. O bemaventurado S. Bernardo sôbre aquelas misteriosas palavras cios Cantares: é·Quem é essa que sobe do deserto, como ligeira colunazinha de fumo, que se evola dos aromas de mirra e de in­cen.so? (2) diz que estas duas coisas, mirra e in­censo, pelas quais são significadas a mortificação e a oração, nos hão de acompanhar sempre, e nos 11 l nona l:!'t ora tio c.·um jejunio. Tol1. XII. 8.12)Quae est ist..'t qnnl' ascendit ]ler de�ertum. si­cut Yirgula fumi ex aromatihns myrrhae et thuris? Cant. III. 6.
10 TRATADO I, CAP. I hão de fazer subir ao alto da perfeição, e exhalar de nós bom e suave cheiro, e agradável ao mesmo Deus; e que uma sem a outra pouco ou nada apro­veita, porque aquele que trata de mortificar a car­ne e não trata da oração, será soberbo, e a êsse tal lhe poderão dizer aquilo do profeta: cPorven­tura e·u hei de comer carne de toiros, ou beber sangue de cabritos? (1) Não agradam a Deus êsses sacrifícios de carne e sangue por si sós. Por outro lado se um se der à oração e se esquecer da mortificação, ouvirá o que diz Cristo no Evan­gelho: cPara que me chamais na oração, Senhor, Senhor, e não fazeis o qtte ett vos digo e mando.' ( 2) e aquilo do Sábio: Será execrável a oração daquele que fecha os ouvidos para não ouvir a lei (3) ... Não agradará a Deus a vossa oração, se não pondes por obra a sua vontade. Diz S. Agostinho que, assim como no templo que edificou Salomão, fêz dois altares, um fora em que se sacrificavam os animais, outro dentro no Sancta Sanctorum onde se oferecia incenso com­posto de diversas substâ,ncias aromáticas: assim também de haver em nós dois altares, um dentro no coração, onde se ofereça o incenso da oração, conforme aquilo de. S. Mateus: ,Quando quiseres orar, entra no te·u. aposento, e fechada a porta, ora a teu Pai em secreto (4), e outro cá fo-(1) Numquid wanducabo carn('s taurorum? aut san­guinem bircorum potabo? Ps. XLIX, 13. (2) Qnid .antem vocatis me Domine, Domine. et non facitis quae dico? Luc. VI, 46. (3) Qui declinat a.ures suas ne audiat legem, ora­tio ejus · erit execrabilis. PTov. XXVIII, 9. (4) Tu autem cum oraveris.. intra in cubiculum tuum, et clauso ost.io, Ol'a. Patrem tuum in abscondito. llatt11. VI, 6.
MORTIFICAÇÃO E ORAÇÃO 11 ra que há de ser a mortificação. De maneira que sempre hão de ir juntas e irmanadas estas duas coisas, ajudando-se uma à outra, porque a mor­tificação é disposição necessana para a oração, e a oração é também meio para alcançar a per­feita mortificação. Em primeiro lugar, que a mortificação é dis­posição e meio necessário para a oração, todos os Santos e mestres da vida espiritual o ensinam; e dizem que, assim .como em um pergaminho se não pode escrever, se não está muito liso e muito lim- po de tôda a carne, assim também, se a nossa alma não está apartada de tôdas as afeições que nascem da carne, não está disposta para que o Senhor escreva e imprima nela a sua sabedoria !' dons divinos. c·A quem ensinará Deus a sua sabe­doria, diz o profeta Isaías, e a quem dará ouvi­dos e entendimento para entender os seus misté­rios? Aos apartados do leite, ou desmamados (1), quer dizer, aos que por seu amor se apartam e se­param dos regalos e prazeres do mundo, abominan­do os apetites e desejos da carne. Para Deus en­trar no nosso coração, quer nele quietação e repou­so, quer nele achar muita paz, e muita serenidade na nossa; alma. Isto bntenderam os mesmos filósofos gentio-;, porque todos confessam que a nossa alma se torna sábia, quando está quieta e sossegada, isto é, quan­do as paixões c apetites sensuais estão mortificados e quietos, porque nêste tempo não há paixões (1) Quem docehit scientiam? ct quem intellig<'l't> faciet auditnm? ablaetatos a lacte, avulsos ab uberibus. lsai. XXVIII, 9.
se não querese is (11 Et crit opus justit.iae pa.x. I�>ai. XXXII. 17. (Zl Justitia et pax osculatae sunt. Ps. LXXXIV, 11.
llORTIFICAÇAO E ORAÇÃO 13 ter guerra convosco, mortificando-vosss, contradi­zendo-vos e vencendo-vos, não alcançareis essa paz tão necessária para a oraçãoo. l«Quem mais te im­pede e te perturba, diz um Santo, do que a afeição de teu coração, não mortificadaa? n (r) Essas pai­xões, êsses apetites e essas más inclinações que ten­des, vos desinquietam e vos impedem a entrada na oração: isto é o que nela vos perturba, isto é o que faz tanto ruído e estrondo em vossa alma, e que vos desperta dêsse doce sono da oração, ou an­tes, não vos deixa entrar nem descansar nele. Quan­do alguém come à ceia demasiadamente, não pode depois dormir nem sossegar de noite, porque aque­las cruezas do estômago, e aqueles vapores cras­sos que se levantam, o inquietam de tal modo, que o fazem andar tôda a noite às voltas, sem poder descansar. Isto mesmo acontece na oração: temos o cora­ção muito pesado e oprimido, porque o amor pró­prio desordenado, a inclinação de satisfazer os nos­sos apetites, o desejo de sermos venerados e esti­mados, e a grande ânsia de que se cumpra a nos­sa vontade, embaraçam tanto o nosso coração, e levantam nele tais vapores, produzindo tantas e tais figuras e representações, que não nos deixam recolher nem ter a atenção fixa em Deus. Desta maneira declaram muitos aquilo que disse Cristo no sagrado Evangelho: Olhai por vós, não se afoguem vossos corações com glutonarias e embriaguezes e com os cuidados desta vida ( 2) . Isto entende-se lll Ke1npis, De Imit.. Chr. lib. I. Cap. I. (Zl Attendite autem vobis, ne forte graventur corda. Testra in crapula et cbrietate, ct curis hujus vitae. Luc. :XXI, 34.
14 THATADO I, CAP. I não somente dos excessos no comer e beber, mas também das demais coisas do mundo, conforme aquilo do profeta Isaías: Ouve isto, pobrezinha, embriagada e não de vinho (r) . Do coração pouco mortificado sai uma névoa escura que impede embarg:t a vista de Deus na nossa alma. Isto é o que diz o apóstolo S. Paulo: O homem animal não percebe nem entende as coisas do Espírito de Deus (2) , porque são muito delicadas, e êle está rnuitü material e muito grosseiro, e é necessário desbas­tar-se e adelgaçar-se com a mortificação. Daqui se entenderá a solução de uma dúvida principal. Por urna parte é certo que a oração é suave e doce, porque orar é conversar e tratar com Deus, cuja conversação o traz consigo amargu­ra nem enfado algum, antes é gôzo e alegria (3) . Por outra parte sabemos que a oração nos é mui­to útil e até necessária. lQual é então a causa por que, a-pesar de tudo isto, se nos faz tão dificultosa a oração, que vamos a ela com tão má vontade, e há tão poucos que se dêem a êste santo exercício? Diz S. Boaventura: Há alguns que estão na ora­ção e r,os exercícios espirituais como à fôrça, à maneira de cachorros que estão presos a urna esta­ca. A causa disto é a que vamos dizendo. A ora­ção de si não é dificultosa; mas a mortificação, que é a disposição necessária para ela, essa é que tem (1) Audi hoc, J>�tupercula, ct <'hria non a vino. Isa,". U, 21. (2) Animal i<; autem homo non percipit ea. quac sunt Spiritus Dei. I Cor. li. 14. (3) Non enim hahct amaritudinem conversatio il­Jius, nec toeditun convictns illius, sed laetitiam et gau­dium. Sar1. VIII, 16.
MORTIFICACAO E ORACA.O 15 muita dificuldade, e por esta causa se nos faz tão pesada e tão dificultosa a oração. Coisa semelhante vemos nas coisas naturais; a dificuldade não está na introdução da forma, senão em dispôr a matéria para a receber. Vê-se isto em um madeiro verde: jquanto tem que fazer o fogo para consumir tôda a verdura e humidade que se levanta e sai do madeiro, e quanto tempo é mis­ter para o dispôr! Porém disposto êle, em um ins­tante lhe entra o fogo como por sua casa, sem di­ficuldade alguma. Assim sucede no que estamos tratando: a dificuldade está em tirar as verduras de nossas paixões, em mortificar nossos apetites de­sordenados, em nos desafeiçoarmos e arrancarmos das coisas da terra; porém feitas e levadas a bom tênno estas diligências, tanto que a alma adquire estas disposições, logo com grande facilidade e com muita ligeireza buscará a Deus, e gostará de tra­tar e conversar com o Senhor. Cada um gosta de tratar e conversar com os seus semelhantes; e assim o homem mortificado, como já se tem espiritualizado, e com a mortifi­cação se tem assemelhado a Deus, gosta de tratar com êle, e o mesmo Deus gosta igualmente de tratar e conversar com o homem mortificado. As minhas delícias são tratar com os filhos dos ho­mens (I) . Porém quando o homem está cheio d� paixões e apetites desordenados, e quer que façam dêle muito caso, e busca honra, divertimento e re­galo, então sente grande dificuldade e repugnâ,ncia em tratar e conversar com Deus, porque lhe é mui-(1) Deliciae meae, esse cum filiis hominum. PTov. VIII, 31.