VENERÁVEL PAPA PIO XII : O CORPO MÍSTICO DE JESUS CRISTO E NOSSA UNIÃO NELE COM CRISTO
Mystici Corporis Christi (29 de Junho de
1943)
[Alemão, Francês, Inglês, Italiano, Latim, Português]
[Alemão, Francês, Inglês, Italiano, Latim, Português]
CARTA ENCÍCLICA
MYSTICI CORPORIS
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS
PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA
MYSTICI CORPORIS
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XII
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS
PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA
O CORPO MÍSTICO DE JESUS
CRISTO
E NOSSA UNIÃO NELE COM CRISTO
E NOSSA UNIÃO NELE COM CRISTO
2. A Igreja é o corpo "de Cristo"
24. Temos visto até aqui, veneráveis irmãos, que a Igreja pela sua
constituição se pode assemelhar a um corpo; segue-se que mostremos mais em
particular, por que motivos se deve chamar não um corpo qualquer, mas o corpo de
Jesus Cristo. Deduz-se isto do fato que nosso Senhor é o fundador, a cabeça, o
conservador e salvador deste corpo místico.
a) Cristo foi o "Fundador" deste corpo
25. Devendo expor brevemente o modo como Cristo fundou o seu corpo
social, acode-nos antes de mais nada esta sentença de nosso predecessor de feliz
memória Leão XIII: "A Igreja, que já concebida, nascera do lado do segundo Adão,
adormecido na cruz, manifestou-se pela primeira vez à luz do mundo de modo
insigne no celebérrimo dia de Pentecostes".(7) De fato o divino Redentor começou
a fábrica do templo místico da Igreja, quando na sua pregação ensinou os seus
mandamentos; concluiu-a quando, glorificado, pendeu da Cruz; manifestou-a enfim
e promulgou-a quando mandou sobre os discípulos visivelmente o Espírito
paráclito.
26. Durante o seu ministério público escolhia os Apóstolos,
enviando-os como ele próprio tinha sido enviado pelo Pai (Jo 17,18),
como mestres, guias, agentes da santidade na assembléia dos fiéis; designava o
chefe deles e seu vigário em terra (cf. Mt 16,18-19); fazia-lhes
conhecer tudo o que tinha ouvido do Pai (Jo 15, 15; 17, 8.14); indicava
também o batismo (cf. Jo 3, 5) como meio para os que no futuro cressem
serem incorporados no Corpo da Igreja; finalmente chegando ao anoitecer da vida,
durante a última ceia, instituía a Eucaristia, admirável sacrifício e admirável
sacramento.
27. Ter ele consumado no patíbulo da cruz a sua obra, afirmam-no,
numa série ininterrupta de testemunhos, os santos Padres, que notam ter a Igreja
nascido na cruz do lado do Salvador, qual nova Eva, mãe de todos os viventes
(cf. Gn 3, 20). "Agora, diz o grande Ambrósio tratando do lado de
Cristo aberto, é ela edificada, agora formada, agora esculpida, agora criada...
Agora é a casa espiritual elevada a sacerdócio santo".(8) Quem devotamente
investigar esta venerável doutrina, poderá sem dificuldade ver as razões em que
ela se funda.
28. E primeiramente com a morte do Redentor, foi abrogada a antiga
Lei e sucedeu-lhe o Novo Testamento; então com o sangue de Cristo foi sancionada
para todo o mundo a Lei de Cristo com seus mistérios, leis, instituições e ritos
sagrados. Enquanto o divino Salvador pregava num pequeno território - pois que
não fora enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel (cf. Mt
15, 24) - corriam juntos a Lei e o Evangelho,(9)) mas no patíbulo, onde morreu,
anulou a Lei com as suas prescrições (cf. Ef 2, 15), afixou a cruz o
quirógrafo do Antigo Testamento (cf. Cl 2, 14), estabelecendo, com o
sangue, derramado por todo o gênero humano, a Nova Aliança (cf. Mt 26,
28; 1 Cor 11, 25). "Então, diz S. Leão Magno falando da cruz do Senhor,
fez-se a transferência da Lei para o Evangelho, da Sinagoga para a Igreja, de
muitos sacrifícios para uma única hóstia, tão evidentemente, que ao exalar o
Senhor o último suspiro, o místico véu, que fechava os penetrais do templo e o
misterioso santuário, se rasgou improvisamente de alto a baixo".(10)
29. Portanto na cruz morreu a Lei antiga; dentro em pouco será
sepultada e se tornará mortífera,(11) para ceder o lugar ao Novo Testamento,
para o qual tinha Cristo escolhido ministros idôneos na pessoa dos apóstolos
(cf. 2 Cor 3,6): e é pela virtude da cruz que o Salvador, constituído
cabeça de toda a família humana já desde o seio da Virgem, exerce plenamente o
seu múnus de cabeça da Igreja. "Pela vitória da cruz, segundo o doutor angélico,
mereceu o poder e domínio sobre todas as gentes",(12) por ela enriqueceu
imensamente aquele tesouro de graça que na glória do céu distribui
incessantemente aos seus membros mortais; pelo sangue derramado na cruz fez com
que, removido o obstáculo da ira divina, pudessem todos os dons celestes e em
primeiro lugar as graças espirituais do Novo e Eterno Testamento correr das
fontes do Salvador para a salvação dos homens, sobretudo dos fiéis; enfim na
árvore da cruz adquiriu a sua Igreja, isto é, os membros do seu corpo místico,
pois que estes não seriam a ele incorporados nas águas do batismo, se não fosse
pela virtude salutífera da cruz, onde o Senhor já adquiriu sobre eles domínio
pleníssimo.
30. Se nosso Salvador por sua morte foi feito cabeça da Igreja no
pleno sentido da palavra, igualmente pelo seu sangue foi a Igreja enriquecida
daquela abundantíssima comunicação do Espírito que divinamente a ilustra desde
que o Filho do homem foi elevado e glorificado no seu doloroso patíbulo. Então
como nota santo Agostinho,(13) rasgado o véu do templo, o orvalho dos dons do
Paráclito, que até ali descera somente sobre o velo, isto é, sobre o povo de
Israel, começou deixando o velo enxuto, a regar a Igreja e abundantemente toda a
terra, quer dizer a Igreja católica, que não conhece fronteira de estirpe ou
território. Como no primeiro instante da encarnação, o Filho do Eterno Pai ornou
a natureza humana, consigo substancialmente unida, com a plenitude do Espírito
Santo, para que fosse apto instrumento da divindade na hora cruenta da redenção;
assim na hora da sua preciosa morte enriqueceu a sua Igreja com mais copiosos
dons do Paráclito, para a tornar válido e perpétuo instrumento do Verbo
encarnado na distribuição dos divinos frutos da redenção. De fato a missão
jurídica da Igreja e o poder de ensinar, governar e administrar os sacramentos
não têm força e vigor sobrenatural para edificar o corpo de Cristo, senão porque
Cristo pendente da cruz abriu à sua Igreja a fonte das divinas graças com as
quais pudesse ensinar aos homens doutrina infalível, governá-los salutarmente
por meio de pastores divinamente iluminados, e inundá-los com a chuva das graças
celestes.
31. Se considerarmos atentamente todos estes mistérios da cruz, já
nos não parecerão obscuras as palavras do Apóstolo, onde ensina aos efésios que
Cristo com o sangue fez um povo único de judeus e gentios "destruindo na sua
carne a parede interposta", que separava os dois povos; e que ab-rogou a Antiga
Lei "para dos dois formar em si mesmo um só homem novo", isto é, a Igreja; e a
ambos, reunidos num só Corpo, reconciliar com Deus pela cruz (cf. Ef 2,
14-16).
32. A Igreja que com seu sangue fundara, robusteceu-a com energias
especiais descidas do céu, no dia de Pentecostes. Com efeito, depois de ter
solenemente investido no seu ofício aquele que já antes tinha designado para seu
vigário, subiu ao céu; e, sentado à direita do Pai, quis manifestar e promulgar
a sua esposa com a descida visível do Espírito Santo, com o ruído do vento
impetuoso e com as línguas de fogo (cf. At 2, 1-4). Como ele próprio ao
princípio do seu público ministério tinha sido manifestado pelo Eterno Pai por
meio do Espírito Santo que em figura de pomba desceu e pousou sobre ele (cf.
Lc 3, 22; Mc 1, 10), assim igualmente quando os Apóstolos
estavam para começar o sagrado ofício de pregar, mandou Cristo Senhor nosso do
céu o seu Espírito que, tocando-os com línguas de fogo, mostrou, como com o dedo
de Deus, a missão e o múnus sobrenatural da Igreja.
b) Cristo é a "cabeça" deste corpo
33. Em segundo lugar prova-se que este corpo místico, que é a
Igreja, é realmente distinguido com o nome de Cristo, porque ele deve ser
considerado de fato como sua cabeça. "Ele é, diz S. Paulo, a cabeça do corpo da
Igreja" (Cl 1,18). Ele é a cabeça, da qual todo o corpo convenientemente
organizado e coordenado recebe crescimento e desenvolvimento na sua edificação
(cf. Ef 4,16, com Cl 2,19).
34. Bem sabeis, veneráveis irmãos, com que eloqüência e esplendor
trataram este assunto os doutores escolásticos e principalmente o Doutor
angélico e comum; e não ignorais que os seus argumentos reproduzem fielmente a
doutrina dos santos Padres; os quais, por sua parte, não faziam senão expor e
comentar as sentenças da divina linguagem da Escritura.
35. Queremos, contudo, para comum utilidade tocar aqui brevemente
este ponto. E primeiro é evidente que o Filho de Deus e da Virgem Santíssima
deve chamar-se cabeça da Igreja por motivo de singularíssima excelência. A
cabeça está colocada no alto. Ora quem foi colocado mais alto do que
Cristo-Deus, o qual, como Verbo do Eterno Pai, deve ser considerado "primogênito
de toda a criação"? (Cl 1,15).
Quem, elevado a maior altura do que Cristo-homem, o qual, nascido
da Virgem imaculada, é verdadeiramente e par natureza Filho de Deus, e por sua
prodigiosa e gloriosa ressurreição com que triunfou da morte, é o "primogênito
dos mortos" (Cl 1,18; Ap 1,5). Quem, finalmente, colocado em maior altura do que
aquele que de modo admirável, qual "único medianeiro entre Deus e os homens"
(1Tm 2,5), ajunta a terra com o céu; que exaltado na cruz, como num trono de
misericórdia, atraiu tudo a si (cf. Jo 12,32); e que, filho do homem eleito
entre milhões, é amado por Deus mais que todos os homens, todos os anjos e todas
as criaturas?(14)
36. E porque Cristo ocupa lugar tão sublime, com razão é ele só a
reger e governar a Igreja; nova razão para se assemelhar à cabeça. Como a
cabeça, para o dizer com as palavras de santo Ambrósio, é "a cidade real" do
corpo,(15) e, sendo dotada de maiores qualidades, dirige naturalmente todos os
membros, aos quais sobrestar para olhar por eles, (16) assim o divino Redentor
empunha o timão e governa toda a república cristã. Uma vez que governar uma
sociedade composta de homens não é outra coisa do que com útil providência,
meios aptos e retas normas conduzi-los a um fim determinado,(17) é fácil de ver
que nosso Salvador, modelo e exemplar dos bons pastores (cf. Jo 10,1-18;1Pd
5,115), exercita maravilhosamente todos estes ofícios.
37. Ele na sua vida mortal instruiu-nos com leis, conselhos,
avisos, em palavras que não passarão nunca e para os homens de todos os tempos
serão Espírito e vida (cf. Jo 6,63). Além disso deu aos apóstolos e seus
sucessores o tríplice poder de ensinar, reger e santificar, poder definido com
especiais leis, direitos e deveres, que constituem a lei fundamental de toda a
Igreja.
38. Mas nosso divino Salvador governa e dirige também por si mesmo
e diretamente a sociedade que fundou; pois que ele reina nas inteligências e
corações dos homens e dobra e compele a seu beneplácito as vontades ainda mais
rebeldes. "O coração do rei está na mão do Senhor; incliná-lo-á para onde
quiser" (Pr 21,1). Com este governo interno ele, qual "pastor e bispo das nossas
almas" (cf. 1Pd 2,25) não só tem cuidado de cada um em particular, mas também de
toda a Igreja; tanto quando ilumina e fortalece os sagrados pastores para que
fel e frutuosamente se desempenhem de seus ofícios, como quando - em
circunstâncias particularmente graves - faz surgir no seio da Igreja homens e
mulheres de santidade assinalada, que sejam de exemplo aos outros fiéis, para
incremento do seu corpo místico. Acresce ainda que Cristo do céu vela sempre com
particular amor pela sua esposa intemerata, que labuta neste terrestre exílio; e
quando a vê em perigo, ou por si mesmo, ou pelos seus anjos (cf. At 8,26; 9,119;
10,1-7; 12,3-10), ou por aquela que invocamos como auxílio dos cristãos, e pelos
outros celestes protetores, salva-a das ondas procelosas e, serenado e
abonançado o mar, consola-a com aquela paz "que supera toda a inteligência" (Fl
4,7).
39. Não se julgue, porém, que o seu governo se limita a uma ação
invisível,(18) ou extraordinária. Ao contrário, o divino Redentor governa o seu
corpo místico de modo visível e ordinário por meio do seu vigário na terra. Vós
bem sabeis, veneráveis irmãos, que Cristo nosso Senhor, depois de ter, durante a
sua carreira mortal, governado pessoalmente e de modo visível o seu "pequeno
rebanho" (Lc 12,32), quando estava para deixar este mundo e voltar ao Pai,
confiou ao príncipe dos apóstolos o governo visível de toda a sociedade que
fundara. E realmente, sapientíssimo como era, não podia deixar sem cabeça
visível o corpo social da Igreja que instituíra. Nem se objete que com o primado
de jurisdição instituído na Igreja ficava o corpo místico com duas cabeças.
Porque Pedro, em força do primado, não é senão vigário de Cristo, e por isso a
cabeça principal deste corpo é uma só: Cristo; o qual, sem deixar de governar a
Igreja misteriosamente por si mesmo, rege-a também de modo visível por meio
daquele que faz as suas vezes na terra; e assim a Igreja, depois da gloriosa
ascensão de Cristo ao céu não está educada só sobre ele, senão também sobre
Pedro, como fundamento visível. Que Cristo e o seu vigário formam uma só cabeça
ensinou-o solenemente nosso predecessor de imortal memória Bonifácio VIII, na
carta apostólica "Unam Sanctam"(19) e seus sucessores não cessaram nunca
de o repetir.
40. Em erro perigoso estão, pois, aqueles que julgam poder unir-se
a Cristo, cabeça da Igreja, sem aderirem fielmente ao seu vigário na terra.
Suprimida a cabeça visível e rompidos os vínculos visíveis da unidade,
obscurecem e deformam de tal maneira o corpo místico do Redentor, que não pode
ser visto nem encontrado de quantos demandam o porto da eterna salvação.
41. Tudo o que dissemos da Igreja universal deve afirmar-se
igualmente das comunidades cristãs particulares, assim orientais como latinas,
das quais consta e se compõe uma só Igreja católica; por isso que também a elas
governa Jesus Cristo por meio da voz e autoridade dos respectivos prelados. Os
bispos não só devem ser considerados como membros mais eminentes da Igreja
universal, pois que se unem com nexo singularíssimo à cabeça de todo o corpo, e
com razão se chamam "os primeiros dos membros do Senhor",(20) mas nas próprias
dioceses, como verdadeiros pastores, apascentam e governam em nome de Cristo os
rebanhos que lhes foram confiados;(21) ainda que nisto mesmo não sejam
plenamente independentes, mas estão sujeitos à autoridade do romano pontífice,
de quem receberam imediatamente o poder ordinário de jurisdição que possuem.
Devem pois ser venerados, pelo povo cristão, como sucessores dos apóstolos por
instituição divina;(22) a eles, como sagrados com a unção do Espírito Santo,
muito melhor que às autoridades deste mundo, ainda que elevadas, se pode aplicar
aquela sentença: "Não toqueis nos meus ungidos" (1Cr 16, 22; Sl
104,15).
42. É, por isso, imensa a nossa dor quando somos informados de que
não poucos de nossos irmãos no episcopado, porque de todo o coração se fizeram
modelos do seu rebanho (cf. 1Pd 5,3) e defendem estrênua e fielmente, como
devem, "o depósito da fé" a eles confiado (cf. 1Tm 6,20); porque zelam o
cumprimento das leis santíssimas, impressas pela mão de Deus nos corações dos
homens, e a exemplo do supremo Pastor defendem o próprio rebanho contra a
rapacidade dos lobos, não só se vêem eles próprios perseguidos e vexados, mas -
o que para eles é bem cruel e penoso - vêem tratadas igualmente as suas ovelhas,
os colaboradores do seu apostolado, e as próprias virgens consagradas a Deus.
Essas injustiças, consideramo-las como feitas a nós mesmos e repetimos a
eloqüente frase do nosso predecessor de imortal memória, Gregório Magno: A nossa
honra é a honra de nossos irmãos; e, então, verdadeiramente somos honrados,
quando a nenhum deles se nega a honra que lhes é devida.(23)
43. Todavia não se julgue que Cristo, cabeça da Igreja, por estar
posto tão alto, dispensa a cooperação do corpo; pois que deve armar-se do corpo
místico o que Paulo afirma do corpo humano: "Não pode a cabeça dizer aos pés:
não preciso de vós" (lCor 12,21). É mais que evidente que os fiéis precisam do
auxílio do divino Redentor, pois que ele disse: "Sem mim nada podeis fazer" (Jo
15,5), e segundo o Apóstolo, todo o aumento deste corpo místico na sua
edificação vem-lhe de Cristo, sua cabeça (Cf. Ef 4,16; Cl 2,19). Contudo é
igualmente verdade, por mais admirável que pareça, que Cristo também precisa dos
seus membros. E isso, em primeiro lugar, porque a pessoa de Jesus Cristo é
representada pelo sumo pontífice, e este, para não ficar esmagado sob o peso do
múnus pastoral, precisa confiar a outros parte não pequena da sua solicitude, e
todos os dias deve ser ajudado pelas orações de toda a Igreja. Além disso nosso
Salvador, enquanto rege por si mesmo de modo invisível a Igreja, quer ser
ajudado pelos membros deste corpo místico na realização da obra da redenção; não
por indigência ou fraqueza da sua parte, mas ao contrário porque ele assim o
dispôs para maior honra da sua esposa intemerata. Com efeito, morrendo na cruz,
deu à Igreja, sem nenhuma cooperação dela, o imenso tesouro da redenção; ao
tratar-se porém de distribuir este tesouro, não só faz participante a sua
incontaminada esposa desta obra de santificação, mas quer que em certo modo
nasça da sua atividade. Tremendo mistério, e nunca assaz meditado: Que a
salvação de muitos depende das orações e dos sacrifícios voluntários, feitos com
esta intenção, pelos membros do corpo místico de Jesus Cristo, e da colaboração
que pastores e féis, sobretudo os pais e mães de família, devem prestar ao
divino Salvador.
44. Agora aos motivos expostos para demonstrar que Cristo Senhor
nosso deve dizer-se cabeça do seu corpo social, acrescentemos outros três entre
si intimamente conexos.
45. Começamos pela mútua relação que existe entre a cabeça e o
corpo, pelo fato de serem da mesma natureza. Neste ponto note-se que a nossa
natureza, bem que inferior à angélica, a vence por bondade de Deus: "De fato
Cristo, como diz o Doutor de Aquino, é cabeça dos Anjos; pois que preside aos
Anjos também segundo a humanidade... e enquanto homem ilumina os Anjos e influi
sobre eles. Mas quanto à conformidade de natureza Cristo não é cabeça dos Anjos,
porque não assumiu os Anjos, mas, segundo o Apóstolo, a descendência de
Abraão".(24) E não só assumiu Cristo a nossa natureza, mas fez-se nosso
consangüíneo num corpo passível e mortal. Ora se o Verbo "se aniquilou a si
mesmo tomando a forma de servo" (Fl 2,7) fê-lo também para tornar os seus irmãos
segundo a carne consortes da natureza divina (cf. 2Pd 1,4) tanto no exílio
terreno pela graça santificante, como na pátria celeste pela eterna
bem-aventurança. De fato se o Unigênito do Eterno Pai quis ser falho do homem,
foi para que nós nos conformássemos à imagem do Filho de Deus (cf: Rm 8,29) e
nos renovássemos segundo a imagem daquele que nos criou (cf. Cl 3,10). Por
conseguinte todos os que se gloriam do nome de cristãos, não só olhem para o
divino Salvador como para um altíssimo e perfeitíssimo exemplar de todas as
virtudes, mas evitando cuidadosamente o pecado e praticando diligentemente a
virtude, procurem reproduzir em seus costumes a sua doutrina e vida, de modo
que, quando o Senhor aparecer, sejam semelhantes a ele na glória, vendo-o tal
qual é (cf. 1Jo 3,2).
46. Deseja Cristo que cada um de seus membros se lhe assemelhe;
mas deseja igualmente que se lhe assemelhe todo o corpo da Igreja. O que sucede
quando ela, seguindo as pistas de seu fundador, ensina, governa, e imola o
divino sacrifício; quando abraça os conselhos evangélicos, e reproduz em si
mesma a pobreza, a obediência e a virgindade do Redentor; quando, nos muitos e
variados institutos que como jóias a adornam, nos faz em certo modo ver Cristo,
ora no monte contemplando, ora pregando às turbas, ora sarando os enfermos e
feridos e convertendo os pecadores, ora, enfim, fazendo bem a todos. Não é,
pois, para admirar se ela, enquanto vive nesta terra, se vê também, como Cristo,
exposta a perseguições, vexações e sofrimentos.
47. Depois Cristo é cabeça da Igreja, porque avantajando-se na
plenitude e perfeição dos dons sobrenaturais, desta plenitude haure o seu corpo
místico. Com efeito, notam muitos Padres, assim como no corpo humano a cabeça
possui todos os cinco sentidos, ao passo que o resto do corpo possui unicamente
o tato, assim todas as virtudes, dons e carismas que há na sociedade cristã,
resplandecem de modo singularíssimo na cabeça, Cristo. "Aprouve que nele
habitasse toda a plenitude" (Cl 1,19); a ele exornam todos os dons que
acompanham a união hipostática; porquanto nele habita o Espírito Santo com tal
plenitude de graças, que não se pode conceber maior. A ele foi dado poder sobre
a carne (cf. Jo 17,2); nele se encerram "todos os riquíssimos tesouros de
sabedoria e ciência" (Cl 2,3). A própria ciência de visão é nele tal que supera
absolutamente em compreensão e clareza a ciência correspondente de todos os
bem-aventurados. Enfim, é ele tão cheio de graça e verdade, que todos nós
recebemos da sua inexaurível plenitude (cf. Jo 1,14-16).
48. Essas palavras do discípulo, a quem Jesus amava com singular
caridade, levam-nos a expor a última razão que de modo particular demonstra ser
Cristo Senhor Nosso cabeça de seu corpo místico. E é que assim como da cabeça
partem os nervos, que; difundindo-se por todos os membros do corpo, lhes
comunicam sensibilidade e movimento, assim também o divino Salvador infunde na
sua Igreja força e vigor, com que os fiéis conhecem mais claramente e mais
avidamente apetecem as coisas de Deus. Dele provém ao corpo da Igreja toda a luz
que ilumina divinamente os féis, e toda a graça com que se fazem santos como ele
é santo.
49. Cristo ilumina toda a sua Igreja: prova-o um sem número de
passos da Sagrada Escritura e dos santos Padres. "A Deus nunca ninguém o viu;
foi o Filho Unigênito, que está no seio do Pai, que no-lo deu a conhecer" (cf.
Jo 1,18). Vindo da parte de Deus como Mestre (cf. Jo 3,2), para dar testemunho a
verdade (cf. Jo 18,37) iluminou com tanta luz a primitiva Igreja dos apóstolos,
que o príncipe deles exclamava: "Senhor, para quem iremos? Vós tendes palavras
de vida eterna" (cf. Jo 6,68). Assistiu do céu os evangelistas, que como membros
de Cristo, escreveram o que ele, como cabeça, lhes ditou e ensinou.(25) E hoje a
nós que moramos neste exílio terrestre é autor da fé, como na pátria é o seu
consumador (cf. Hb 12,2). Ë ele que infunde nos féis a luz da fé; ele que aos
pastores e doutores e sobre todos ao seu vigário na terra enriquece divinamente
com os dons sobrenaturais de ciência, entendimento e sabedoria, para que
conservem fielmente o tesouro da fé, o defendam corajosamente, piedosa e
diligentemente o expliquem e valorizem; Ele é enfim o que invisível preside e
dirige os concílios da Igreja.(26)
50. Cristo é autor e operador de santidade. Já que nenhum ato
salutar pode haver que dele não derive como fonte soberana: "Sem mim, diz ele,
nada podeis fazer" (cf. Jo 15,5). Se nos sentimos movidos à dor e contrição dos
pecados cometidos, se com temor e esperança filial nos convertemos a Deus, é
sempre a sua graça que nos comove. A graça e a glória brotam da sua inexaurível
plenitude. Sobretudo aos membros mais eminentes de seu corpo místico enriquece o
Salvador continuamente com os dons de conselho, fortaleza, temor, piedade, para
que todo o corpo cresça cada dia mais em santidade e perfeição. E quando com
rito externo se ministram os sacramentos da Igreja, é ele que opera o efeito
deles nas almas.(27) É ele também que, nutrindo os fiéis com a própria carne e
sangue, serena os movimentos desordenados das paixões; é ele que aumenta as
graças e prepara a futura glória das almas e dos corpos. Todos esses tesouros da
divina bondade reparte ele aos membros do seu corpo místico não só enquanto os
obtém do Eterno Pai como vítima eucarística na terra e como vítima glorificada
no céu, mostrando as suas chagas e apresentando as suas súplicas, mas também
porque "segundo a medida do dom de Cristo" (Ef 4,7) escolhe, determina,
distribui a cada um as suas graças. Donde se segue que do divino Redentor, como
de fonte manancial, "todo o corpo bem organizado e unido recebe por todas as
articulações, segundo a medida de cada membro, o influxo e energia que o faz
crescer e aperfeiçoar na caridade" (Ef 4,16; cf. Cl 2,19).
c) Cristo é o "sustentador" deste corpo
51. O que até aqui expusemos, veneráveis irmãos, explicando
resumidamente o modo como Cristo Senhor Nosso quer que da sua divina plenitude
desça sobre a Igreja a abundância de seus dons, para que ela se lhe assemelhe o
mais possível, serve para explicar a terceira razão que demonstra como o corpo
social da Igreja é corpo de Cristo, isto é, por ser nosso Salvador quem
divinamente sustenta a sociedade que fundou.
52. Observa Belarmino, com muita sutileza, (28) que com esta
denominação de corpo Cristo não quer dizer somente que ele é a cabeça do seu
corpo místico, senão também que sustenta a Igreja, de tal maneira que a Igreja é
como uma segunda personificação de Cristo. Afirma-o também o Doutor das gentes,
quando, na epístola aos Coríntios, chama, sem mais, Cristo a Igreja (l Cor
12,12), imitando de certo o divino Mestre que, quando ele perseguia a Igreja,
lhe bradou do céu: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" (cf. At 9,4; 22, 7;
26,14). Antes são Gregório Nisseno diz-nos que o Apóstolo repetidamente chama
Cristo à Igreja; (29) nem vós, veneráveis irmãos, ignorais aquela sentença de
Agostinho: "Cristo prega a Cristo".(30)
53. Todavia essa nobilíssima denominação não deve entender-se como
se aquela inefável união, com que o Filho de Deus assumiu uma natureza humana
determinada, se estende a toda a Igreja; mas quer dizer que o Salvador comunica
à sua Igreja os seus próprios bens de tal forma que ela, em toda a sua vida
visível e invisível, é um perfeitíssimo retrato de Cristo. De fato em força da
missão jurídica com que o divino Redentor enviou os apóstolos ao mundo, como o
Pai o enviara a ele (cf. Jo 17,18 e 20,21), é ele que pela sua Igreja batiza,
ensina, governa, ata, desata, oferece e sacrifica. E com aquela mais elevada
comunicação, interior e sublimíssima, de que falamos acima, descrevendo o modo
como a cabeça influi nos membros, Cristo faz que a Igreja viva da sua vida
sobrenatural, penetra com a sua divina virtude todo o corpo, e a cada um dos
membros, segundo o lugar que ocupa no corpo, nutre-o e sustenta-o do mesmo modo
que a videira sustenta e torna frutíferas as vides aderentes à cepa.(31)
54. Se bem considerarmos esse divino princípio de vida e
atividade, dado por Cristo, enquanto constitui a própria fonte de todos os dons
e graças criadas, compreenderemos facilmente que não é outra coisa senão o
Espírito Paráclito que procede do Pai e do Filho e de modo peculiar se diz
"Espírito de Cristo" ou "Espírito do Filho" (Rm 8, 9; 2 Cor 3,17; Gl 4,6). Com
esse Espírito de graça e de verdade ornou o Filho de Deus a sua alma logo no
imaculado seio da Virgem; esse Espírito deleita-se em habitar na alma do
Redentor, como no seu templo predileto; esse Espírito mereceu-no-lo Cristo
derramando o próprio sangue; e, soprando sobre os apóstolos, comunicou-o à
Igreja para perdoar os pecados (cf. Jo 20,22); e ao passo que só Cristo o
recebeu sem medida (cf. Jo 3,34), aos membros do corpo místico dá-se da
plenitude de Cristo e só na medida que ele o quer dar (cf. Ef 1,8; 4,7). Depois
que Cristo foi glorificado na cruz, o seu Espírito é comunicado à Igreja em
copiosíssima efusão para que ela e cada um dos seus membros se pareçam cada vez
mais com o Salvador. É o Espírito de Cristo que nos faz filhos adotivos de Deus
(cf. Rm 8,14-17; Gl 4,6-7), para que um dia "todos, contemplando a face
descoberta, a glória do Senhor, nos transformemos na sua própria imagem cada vez
mais resplandecente" (cf. 2Cor 3,18).
55. A esse Espírito de Cristo, como a princípio invisível, deve
atribuir-se também a união de todas as partes do corpo tanto entre si como com
sua cabeça, pois que ele está todo na cabeça, todo no corpo e todo em cada um
dos membros; conforme as suas funções e deveres, e segundo a maior ou menor
saúde espiritual de que gozam, está presente e assiste de diversos modos. É ele
que com o hálito de vida celeste em todas as partes do corpo é o princípio de
toda a ação vital e verdadeiramente salutar. É ele que, embora resida e opere
divinamente em todos os membros, contudo também age nos inferiores por meio dos
superiores; ele enfim que cada dia produz na Igreja com sua graça novos
incrementos, mas não habita com a graça santificante nos membros totalmente
cortados do corpo. Essa presença e ação do Espírito de Jesus Cristo exprimiu-a
sucinta e energicamente nosso sapientíssimo predecessor, de imortal memória,
Leão XIII, na encíclica "Divinum
Illud" por estas palavras: "Baste afirmar que, sendo Cristo cabeça da
Igreja, o Espírito Santo é a sua alma".(32)
56. Se, porém, considerarmos aquela força e energia vital com que
o divino Fundador sustenta toda a família cristã, não já em si mesma, mas nos
efeitos criados que produz, então veremos que consiste nas dons celestes que
nosso Redentor juntamente com seu Espírito dá a Igreja e juntamente com o mesmo
Espírito, opera, como doador da luz sobrenatural e causa eficiente da santidade.
E é por isso que a Igreja não menos que todos os santos, membros seus, pode
fazer sua aquela grande sentença do Apóstolo: "Vivo; já não eu; mas vive Cristo
em mim" (Gl 2,20).
d) Cristo é o "conservador" deste corpo
57. O que temos dito da "cabeça mística" (33) ficaria incompleto,
se não tocássemos, ao menos brevemente, aquela outra sentença do mesmo Apóstolo:
"Cristo é a cabeça da Igreja; ele é o Salvador do seu corpo" (Ef 5,23). Nestas
palavras temos a última razão pela qual a Igreja é dita corpo de Cristo: Cristo
é o Salvador divino desse corpo. Com razão foi pelos samaritanos proclamado
"Salvador do mundo" (Jo 4,42); antes deve sem dúvida alguma dizer-se "Salvador
de todos", embora com são Paulo devamos acrescentar: "sobretudo dos fiéis" (cf.
1Tm 4,10). De fato com seu sangue, mais que todos os outros, comprou ele os seus
membros que constituem a Igreja (At 20,28). Tendo, porém, já exposto
detalhadamente esse ponto quando acima tratamos da Igreja nascida da cruz, de
Cristo iluminador, santificador e sustentador do seu corpo místico, não há por
que demorarmo-nos em maiores explanações; meditemo-lo antes com humildade e
atenção, dando contínuas graças a Deus. O que nosso divino Salvador começou
outrora, pendente da cruz, não cessa de o perfazer continuamente na celeste
bem-aventurança: "A nossa cabeça, diz santo Agostinho, ora por nós; acolhe uns
membros, castiga outros, a outros purifica, a outros consola, a outros cria, a
outros chama, a outros torna a chamar, a outros corrige, a outros
reintegra".(34) A nós é dado cooperar com Cristo nesta obra, "de um e por um
somos salvos e salvamos".(35)