quinta-feira, 8 de janeiro de 2009



Bento XVI: união com Cristo, «verdadeiro sacrifício espiritual»

Queridos irmãos e irmãs:

Nesta primeira audiência geral de 2009, desejo formular a todos vós fervorosos augúrios para o novo ano que acaba de começar. Reavivemos em nós o empenho de abrir a Cristo a mente e o coração, para ser e viver como verdadeiros amigos seus. Sua companhia fará que este ano, ainda com suas inevitáveis dificuldades, seja um caminho cheio de alegria e de paz. De fato, só se permanecermos unidos a Jesus, o ano novo será bom e feliz.

O compromisso de união com Cristo é o exemplo que São Paulo nos oferece. Prosseguindo com as catequeses dedicadas a ele, nós nos deteremos hoje a reflectir sobre um dos aspectos importantes de seu pensamento, o culto que os cristãos estão chamados a prestar. No passado se preferia falar de uma tendência anticultural do apóstolo, de uma «espiritualização» da ideia de culto. Hoje compreendemos melhor que São Paulo vê na cruz de Cristo uma mudança histórica, que transforma e renova radicalmente a realidade do culto. Há sobretudo três textos da Carta aos Romanos nos quais se apresenta esta nova visão do culto.

1. Em Romanos 3, 25, após ter falado da «redenção realizada por Cristo Jesus», Paulo continua com uma fórmula misteriosa para nós e diz assim: Deus o «exibiu como instrumento de expiação por seu sangue, mediante a fé». Com esta expressão, para nós bastante estranha – «instrumento de expiação» – São Paulo se refere ao chamado «propiciatório» do antigo templo, ou seja, à cobertura da arca da aliança, que estava pensada como ponto de contacto entre Deus e o homem, ponto da presença misteriosa de Deus no mundo dos homens. Este «propiciatório», no grande dia da reconciliação – Yon Kippur – era aspergido com o sangue dos animais sacrificados, sangue que punha simbolicamente os pecados do ano passado em contacto com Deus, e assim, os pecados jogados ao abismo da vontade divina eram quase absorvidos pela força de Deus, superados, perdoados. A vida começava de novo.



Bento XVI

São Paulo faz referência a este rito e diz: este rito era expressão do desejo de que realmente se pudessem colocar todas as nossas culpas no abismo da misericórdia divina e assim faze-las desaparecer. Mas com o sangue dos animais não se realiza este processo. Era necessário um contacto mais real entre a culpa humana e o amor divino. Este contacto aconteceu com a cruz de Cristo. Cristo, Filho de Deus, que se fez verdadeiro homem, assumiu em si mesmo toda nossa culpa. Ele mesmo é o lugar de contacto entre a miséria humana e a misericórdia divina; em seu coração se desfaz a massa triste do mal realizado pela humanidade, e se renova a vida.

Revelando esta mudança, São Paulo nos diz: com a cruz de Cristo – o acto supremo do amor divino, convertido em amor humano –, o antigo culto com os sacrifícios dos animais no templo de Jerusalém terminou. Este culto simbólico, culto de desejo, foi substituído agora pelo culto real: o amor de Deus encarnado em Cristo e levado à sua plenitude na morte de cruz.

Portanto, isso não é uma espiritualização do culto real, mas ao contrário, é o culto real, o verdadeiro amor divino-humano, que substitui o culto simbólico e provisional. A cruz de Cristo, seu amor com carne e sangue, é o culto real, correspondendo à realidade de Deus e do homem. Já antes da destruição externa do templo, para Paulo a era do templo e do seu culto havia terminado: Paulo se encontra aqui em perfeita consonância com as palavras de Jesus, que havia anunciado o fim do templo e anunciado outro templo «não feito por mãos humanas» – o templo de seu corpo ressuscitado (cf. Marcos 14, 58; João 2, 19 ss). Este é o primeiro texto.




Bento XVI
2. O segundo texto do qual quero falar hoje se encontra no primeiro versículo do capítulo 12 da Carta aos Romanos. Nós o escutamos e o repito mais uma vez: «Eu vos exorto, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este o vosso culto espiritual» . Nestas palavras se verifica um paradoxo aparente: enquanto o sacrifício exige por norma a morte da vítima, Paulo faz referência à vida do cristão. A expressão «oferecer vossos corpos», unida ao conceito sucessivo de sacrifício, assume o esboço cultural de «dar em oblação, oferecer». A exortação a «oferecer os corpos» se refere à pessoa inteira; de facto, em Romanos 6, 13, ele convida a «apresentar-vos a vós mesmos». Portanto, a referência explícita à dimensão física do cristão coincide com o convite a «glorificar a Deus com vosso corpo» (1 Coríntios 6, 20): trata-se de honrar Deus na existência quotidiana mais concreta, feita de visibilidade relacional e perceptível.

Um comportamento desse tipo é qualificado por Paulo como «sacrifício vivo, agradável a Deus». É aqui onde encontramos precisamente o vocábulo «sacrifício». No uso corrente, este termo faz parte de um contexto sacro e serve para designar a decapitação de um animal, do qual uma parte pode ser queimada em honra dos deuses e a outra consumida pelos fiéis em um banquete. Paulo o aplicava, no entanto, à vida do cristão. De fato, qualifica um sacrifício assim servindo-se de três adjectivos. O primeiro – «vivo» – expressa uma vitalidade. O segundo – «santo» – recorda a ideia paulina de uma santidade que não está ligada a lugares ou objectos, mas à própria pessoa do cristão. O terceiro – «agradável a Deus» – recorda talvez a frequente expressão bíblica do sacrifício «de suave odor» (Cf. Levítico 1, 13.17; 23,18;26,31; etc).



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Imediatamente depois, Paulo define assim esta nova forma de viver: este é «vosso culto espiritual». Os comentadores do texto sabem bem que a expressão grega (ten logiken latreian) não é fácil de traduzir. A Bíblia latina traduz: «rationabile obsequium». A mesma palavra «rationabile» aparece na primeira oração eucarística, no Cânon Romano: nela se reza para que Deus aceite esta oferenda como «rationabile». A tradicional tradução de «culto espiritual» não reflecte todos os detalhes do texto grego (e nem sequer do latino). Em todo caso, não se trata de um culto menos real, ou inclusive somente metafórico, mas de um culto mais concreto e realista, um culto no qual o próprio homem em sua totalidade de ser dotado de razão, converte-se em adoração, glorificação do Deus vivo.
Esta fórmula paulina, que aparece novamente na oração eucarística romana, é fruto de um

Nesta experiência se encontram desenvolvimentos teológicos do Antigo Testamento e correntes do pensamento grego. Quero mostrar ao menos alguns elementos deste desenvolvimento. Os profetas e muitos Salmos criticam fortemente os sacrifícios cruentos do templo. O salmo 50 (49), no qual é Deus quem fala, diz, por exemplo: «Se tivesse fome, não precisava dizer-te, porque minha é a terra e tudo o que ela contém. Porventura preciso comer carne de touros, ou beber sangue de cabrito?... Oferece, antes, a Deus um sacrifício de louvor e cumpre teus votos para com o Altíssimo» (versículos 12-14).



Bento XVI

No mesmo sentido, o salmo seguinte, 51 (50), diz: «Vós não vos aplacais com sacrifícios rituais; e se eu vos ofertasse um sacrifício, não o aceitaríeis» (versículo 18ss). No Livro de Daniel, no tempo da nova destruição do templo por parte do regime helenístico (II século a.C.), encontramos um novo passo na mesma direcção. Em meio ao fogo – ou seja, na perseguição, no sofrimento – Azarias reza assim: «Hoje, já não há príncipe, nem profeta, nem chefe, nem holocausto, nem sacrifício, nem oblação, nem incenso, nem mesmo um lugar para vos oferecer nossas primícias e encontrar misericórdia.

Entretanto, que a contrição de nosso coração e a humilhação de nosso espírito nos permita achar bom acolhimento junto a vós, Senhor, como (se nós nos apresentássemos) com um holocausto de carneiros, de touros e milhares de gordos cordeiros! Que assim possa ser hoje o nosso sacrifício em vossa presença! Que possa (reconciliar-nos) convosco, porque nenhuma confusão existe para aqueles que põem em vós sua confiança» (Daniel 3, 38ss). Na destruição do santuário e do culto, nesta situação de privação de todo sinal da presença de Deus, o crente oferece como verdadeiro holocausto o coração contrito, seu desejo de Deus.




Bento XVI

Vemos um desenvolvimento importante, belo, mas com um perigo. Existe uma espiritualização, uma moralização do culto: o culto se converte em algo do coração, do espírito. Mas falta o corpo, falta a comunidade. Assim se entende, por exemplo, que o Salmo 51 e também o livro de Daniel, apesar de criticar o culto, desejem a volta ao tempo dos sacrifícios. Mas trata-se de um tempo renovado, em uma síntese que ainda não era previsível, que ainda não podia ser pensada.

Voltemos a São Paulo. Ele é herdeiro destes desenvolvimentos, do desejo do culto verdadeiro, no qual o próprio homem se converte em glória de Deus, adoração vivente com todo seu ser. Neste sentido, diz aos Romanos: « Eu vos exorto, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este o vosso culto espiritual» (Romanos 12, 1). Paulo repete assim o que já havia assinalado no capítulo 3: O tempo dos sacrifícios de animais, sacrifícios de substituição, terminou. Chegou o tempo do culto verdadeiro.




Bento XVI
Mas também aqui se dá o perigo de um mal-entendido: poder-se-ia interpretar facilmente este novo culto em um sentido moralista: oferecendo nossa vida, nós fazemos o culto verdadeiro. Desta forma, o culto com os animais seria substituído pelo moralismo: o homem faria tudo por si mesmo, com seu esforço moral. E esta certamente não era a intenção de São Paulo. Mas persiste a questão. Como devemos interpretar, portanto, este «culto espiritual agradável a Deus»? Paulo supõe sempre que chegamos a ser «um em Cristo Jesus» (Gálatas 3, 28), que morremos no baptismo (cf. Romanos 1) e vivemos agora com Cristo, por Cristo, em Cristo.

Nesta união – e só assim – podemos ser n’Ele e com Ele «sacrifício vivo», oferecer o «culto verdadeiro». Os animais sacrificados deveriam ter substituído o homem, o dom de si do homem, e não puderam. Jesus Cristo, em sua entrega ao Pai e a nós, não é uma substituição, mas comporta realmente em si o ser humano, nossas culpas e nosso desejo; representa-nos realmente, assume-nos em si mesmo. Na comunhão com Cristo, realizada na fé e nos sacramentos, nós nos convertemos, apesar de nossas deficiências, em sacrifício vivo: realiza-se o «culto verdadeiro».