sábado, 27 de novembro de 2010

A reforma litúrgica imposta pelo Concílio Vaticano II

Começamos, com este artigo, a análise e a crítica da constituição Sacrossanctum Concilium, que dispôs sobre a Sagrada Liturgia, no Vaticano II. Concentraremos, no presente, as atenções apenas sobre a reforma litúrgica imposta pelo concílio, deixando outros aspectos para serem tratados posteriormente. Como veremos, já é assunto para um artigo longo, e para muito mal-estar provocado pela forma como a letra do concílio se dirigiu à Igreja e sua liturgia.

Em 1570, Sua Santidade o Papa Pio V, de venerabilíssima memória, escreveu a bula “Quo Primum Tempore“, na qual, de maneira clara, objetiva e inquestionável, definiu a forma do rito romano como ela deveria permanecer para sempre, sem jamais ser alterada (os destaques, nestas e em outras citações, são nossos):
6 – E a fim de que todos, e em todos os lugares, adotem e observem as tradições da Santa Igreja Romana, Mãe e Mestra de todas as Igrejas, decretamos e ordenamos que a Missa, no futuro e para sempre, não seja cantada nem rezada de modo diferente do que esta, conforme o Missal publicado por Nós, em todas as Igrejas. (…)
7 – Quanto a todas as outras sobreditas Igrejas, por Nossa presente Constituição, que será válida para sempre, Nós decretamos e ordenamos, sob pena de nossa indignação, que o uso de seus missais próprios seja supresso e sejam eles radical e totalmente rejeitados; e, quanto ao Nosso presente Missal recentemente publicado, nada jamais lhe deverá ser acrescentado, nem supresso, nem modificado. (…)
(…)
Se alguém, contudo, tiver a audácia de atentar contra estas disposições, saiba que incorrerá na indignação de Deus Todo-poderoso e de seus bemaventurados Apóstolos Pedro e Paulo.
As palavras de SS São Pio V não deixam a menor margem para dúvidas: o missal por ele aprovado terá validade para sempre, e jamais poderá ser modificado. Ninguém, que deseje permanecer fiel à Tradição e ao Magistério infalível da Igreja, pode, portanto, afirmar que haja qualquer brecha para se alterar a liturgia romana.
O cardeal Pacelli, futuro papa Pio XII, comentou sobre a mensagem de Fátima, onde Nossa Senhora advertia sobre o risco de uma mudança na liturgia:
Estou obcecado pelas confidências da Virgem à pequena Lúcia de Fátima. Essa obstinação de Nossa Senhora diante do perigo que ameaça a Igreja, é um aviso divino contra o suicídio que representaria a alteração da fé, em sua liturgia, sua teologia e sua alma”.(…)
Apesar de tão claras palavras de São Pio V, e da admoestação de Nossa Senhora em Fátima, comentada pelo então cardeal Pacelli, o concílio Vaticano II propôs um ampla reforma litúrgica:
A santa mãe Igreja, para permitir ao povo cristão um acesso mais seguro à abundância de graça que a Liturgia contém, deseja fazer uma acurada reforma geral da mesma Liturgia.
Nesta reforma, proceda-se quanto aos textos e ritos, de tal modo que eles exprimam com mais clareza as coisas santas que significam, e, quanto possível, o povo cristão possa mais fàcilmente apreender-lhes o sentido e participar neles por meio de uma celebração plena, activa e comunitária. (Sacrossanctum Concilium, 21)
Em outro artigo, já tivemos a oportunidade de apresentar os argumentos de que, se a Missa Tritendina não contém erros, como de fato não contém, não haveria motivos para ser modificada. Afinal, que motivo poderia ser alegado para se fazer uma reforma geral na liturgia sem admitir, implicitamente, que a atual continha muitos defeitos? O texto que destacamos acima traz implícitas estas acusações. De fato, ao afirmar que a reforma litúrgica haveria de “permitir ao povo cristão um ascesso mais seguro à abundância de graça que a Liturgia contém” e que “os textos e ritos reformados deveriam exprimir com maior clareza as coisas santas que significam”, a letra do concílio está implicitamente negando estas qualidades a Liturgia pré-conciliar.
O Concílio de Trento, dogmático e infalível, ensinou que a Missa não contém erros:
“Cân. 6. Se alguém disser que o cânon da Missa contém erros e, portanto, deve ser ab-rogado: seja anátema”.
“Cân. 7. Se alguém disser que as cerimônias, as vestimentas e os sinais externos de que a Igreja Católica usa na celebração da Missa são mais incentivos de impiedade do que sinais de piedade: seja excomungado”.
Podemos, então, perguntar aos defensores da missa nova: se a Missa Tridentina não contém erros, por que haveria de ser reformada? E, aliás, amplamente reformada, como desejava o Concílio Vaticano II? Como responder a esta pergunta sem cair no anátema de Trento?
O concílio admite abertamente a introdução de inovações na liturgia:
Finalmente, não se introduzam inovações, a não ser que uma utilidade autêntica e certa da Igreja o exija, e com a preocupação de que as novas formas como que surjam a partir das já existentes. (SC 23)
A ressalva de que as novas formas devessem surgir das já existentes não justifica as inovações, para sempre interditadas por São Pio V. Pelo contrário, somente causa estranheza como se poderia conciliar uma inovação com um simples desenvolvimento de formas já existentes. O resultado final, a missa nova, conteve muitas inovações a ponto de se poder dizer que foi “fabricada”, e não foi, de forma alguma, um desenvolvimento da Missa Tridentina.
Não menos estranha é a pressa do concílio em se fazer a revisão dos livros litúrgicos:
Faça-se o mais depressa possível a revisão dos livros litúrgicos, utilizando o trabalho de pessoas competentes e consultando Bispos de diversos países do mundo. (SC 25)
Somente se age com toda pressa possível quando se está em uma situação crítica, desesperadora. Será que o concílio assim considerava a liturgia da Igreja naquele momento? Estava tão errada ou tão inadequada que necessitava de ser revisada com toda a pressa possível?
Mas o trecho mais terrível deste documento conciliar é o seguinte:
O interesse pelo incremento e renovação da Liturgia é justamente considerado como um sinal dos desígnios providenciais de Deus sobre o nosso tempo, como uma passagem do Espírito Santo pela sua Igreja, e imprime uma nota distintiva à própria vida da Igreja, a todo o modo religioso de sentir e de agir do nosso tempo. (SC 43)
Muito pior que o aggiornamento, o concílio afirma que naquele momento estava havendo “uma passagem do Espírito Santo pela sua Igreja”… E eu que pensava que o Espírito Santo sempre e em todo o momento conduzia a Igreja, agora, por meio do “sacrossanto”, “imaculado” e “intocável” super-concílio, fiquei sabendo que a terceira pessoa da Santíssima Trindade estava fazendo apenas uma passagem pela Igreja naquela década de 1960… O texto conciliar é uma blasfêmia contra a ininterrupta assitência do Espírito Santo à sua Igreja. Se, por absurdo, admitíssemos qualquer grau de autoridade no Vaticano II, como poderíamos censurar os “movimentos” pós-conciliares que afirmam algo como um “renovamento” do Espírito a partir do concílio?
Respiremos fundo a fim de superar a nossa indignação contra o “sacrossanto” concílio e prossigamos a análise, pois ainda há muitos absurdos neste mesmo documento conciliar.
Afrontando desavergonhadamente a ordem de São Pio V de jamais se alterar o Missal, o concílio deu ordem de revisar o Ordinário:
50. O Ordinário da missa deve ser revisto, de modo que se manifeste mais claramente a estrutura de cada uma das suas partes bem como a sua mútua conexão, para facilitar uma participação piedosa e activa dos fiéis. Que os ritos se simplifiquem, bem respeitados na sua estrutura essencial; sejam omitidos todos os que, com o andar do tempo, se duplicaram ou menos ùtilmente se acrescentaram; restaurem-se, porém, se parecer oportuno ou necessário e segundo a antiga tradição dos Santos Padres, alguns que desapareceram com o tempo.
Como se colocou em destaque, o concílio não somente ordenou a revisão do Ordinário da Missa, como declarou a finalidade: “manifestar mais claramente a estrutura de cada uma de suas partes bem como sua mútua conexão”. Somos, então, obrigados a fazer a pergunta: o Ordinário antigo não possuía a clareza necessária? Era obscuro a tal ponto de exigir o pronunciamento de um concílio ecumênico para declarar a necessidade de tal revisão?
Os rituais dos sacramentos e sacramentais, à época do concílio, também não seriam suficientemente claros quanto à natureza e fim… Por isso, seria necessário aggiornarli:
Tendo-se introduzido, com o decorrer do tempo, no ritual dos sacramentos e sacramentais, elementos que tornam hoje menos claros a sua natureza e fim, e devendo por isso fazer-se algumas adaptações às necessidades do nosso tempo, o sagrado Concílio decretou o seguinte em ordem à sua revisão. (SC 62)
Em que as necessidades do nosso tempo diferiam dos tempos passados, isto o concílio não esclareceu. E nem poderia fazê-lo, pois as necessidades espirituais do homem, que são aquelas às quais os sacramentos e sacramentais atendem, são sempre as mesmas em todas as épocas, independentes das necessidades materiais. Mas a ânsia devoradora do aggiornamento, imbuída de filosofia evolucionista, não pode fazer estas considerações da filosofia perene, tão católicas.
O rito do batismo, seja o dos adultos como o das crianças, também deveria ser revisto:
Revejam-se tanto o rito simples do Baptismo de adultos, como o mais solene, tendo em conta a restauração do catecumenado, e insira-se no Missal romano a missa própria «para a administração do Baptismo». (SC 66)
Reveja-se o rito do Baptismo de crianças e adapte-se à sua real condição. Dê-se maior realce, no rito, à parte e aos deveres dos pais e padrinhos. (SC 67)
O rito da Confirmção também precisava ser revisto porque “a íntima união deste sacramento com toda a iniciação cristã” não estava bastante ressaltada:
Para fazer ressaltar a íntima união do sacramento da Confirmação com toda a iniciação cristã, reveja-se o rito deste sacramento; pela mesma razão, é muito conveniente, antes de o receber, fazer a renovação das promessas do Baptismo. (SC 71)
E o rito da Penitência? Segundo o concílio, também ele precisa ser revisto para ter mais clareza:
Revejam-se o rito e as fórmulas da Penitência de modo que exprimam com mais clareza a natureza e o efeito do sacramento. (SC 72)
A Unção dos Enfermos escaparia das reformas? Claro que não:
O número das unções deve regular-se segundo a oportunidade. Revejam-se as orações do rito da Unção dos enfermos, de modo que correspondam às diversas condições dos que recebem este sacramento. (SC 75)
O rito da Ordenações também não poderia escapar da fúria reformadora:
Faça-se a revisão do texto e das cerimónias do rito das Ordenações. As alocuções do Bispo, no início da ordenação ou sagração, podem ser em vernáculo. (SC 76)
Para não deixar de fora nenhum sacramento, reforme-se finalmente o rito do matrimônio, mas não sem perder a oportunidade de clamar por mais “clareza”:
A fim de indicar mais claramente a graça do sacramento e inculcar os deveres dos cônjuges, reveja-se e enriqueça-se o rito do Matrimónio que vem no Ritual romano. (SC 77)
As exéquias também precisam de reforma, pois as atuais não exprimem de maneira suficiente o sentido de passagem da morte cristã:
As exéquias devem exprimir melhor o sentido pascal da morte cristã.(SC 81)
Faça-se a revisão do rito de sepultura das crianças e dê-se-lhe missa própria. (SC 82)
O leitor já está cansado e indignado? Eu também estou. Mas vamos respirar fundo para suportar mais esta aberração do concílio:
Restaurem-se os hinos, segundo convenha, na sua forma original, tirando ou mudando tudo o que tenha ressaibos mitológicos ou for menos conforme com a piedade cristã. Se convier, admitam-se também outros que se encontram nas colecções hinológicas. (SC 93)
A Igreja, antes do concílio, estava permitido hinos com “rassaibos mitológicos e com elementos menos conformes com a piedade cristã”, julgando-se o concílio no dever de corrigir este grave desvio… Não vou nem comentar.
Para encerrar as citações:
Revejam-se o mais depressa possível, juntamente com os livros litúrgicos, conforme dispõe o art. 25, os cânones e determinações eclesiásticas atinentes ao conjunto das coisas externas que se referem ao culto, sobretudo quanto a uma construção funcional e digna dos edifícios sagrados, erecção e forma dos altares, nobreza, disposição e segurança dos sacrários, dignidade e funcionalidade do baptistério, conveniente disposição das imagens, decoração e ornamentos. Corrijam-se ou desapareçam as normas que parecem menos de acordo com a reforma da liturgia; mantenham-se e introduzam-se as que forem julgadas aptas a promovê-la. (SC 128)
Mais uma vez nos deparamos com a inexplicável pressa do concílio em reformar, como se estivesse a liturgia pré-conciliar da Igreja em uma situação de calamidade. Afinal de contas, que necessidade havia de se rever a construção dos edifícios sagrados, a forma dos altares, a disposição dos sacrários, etc? Se observarmos bem o que o concílio mandou rever, perceberemos que a pseudo-reforma do pós-concílio somente destruiu tudo o que havia de belo, de santo, de profundamente católico na liturgia da Igreja e em tudo o que se relaciona a ela.
As reformas continuam: o rito da consagração das Virgens (80), o Ofício divino (87-89), o ano litúrgico (107)… Tudo, tudo precisa ser mudado! Tudo precisa de mais clareza, precisa se expressar melhor, precisa corresponder melhor ao mundo de hoje… Não sobra pedra sobre pedra! Tudo está errado ou, na melhor da hipósteses, inadequado!
Seria ingenuidade demais não enxergar a mão dos hereges modernistas escrevendo a letra do concílio, desprovida de respeito por tudo aquilo que a piedade católica conservava na liturgia. Muito mais do que a crítica implícita nos textos que pedem a reforma geral – pois não se ordena a mudança daquilo que está perfeito-, a Sacrossanctum Concilium abriu aos modernistas a brecha para destruir a liturgia da Igreja. E, a história pós-conciliar prova, de maneira irrefutável, que os modernistas souberam aproveitar a oportunidade que eles mesmos criaram.
Ao ler a Sacrossanctum Concilium, com as imposições de alterações em todas as áreas da liturgia da Igreja, não é possível ficar com outra impressão senão a de que se insinua que tudo estaria errado, ou ao menos ultrapassado nesta matéria. A Igreja estaria dormindo, permitindo que toda sua liturgia se tornasse, em todos as áreas, inadequada para os tempos modernos. É a fúria do aggiornamento, esta nota tão característica do “espírito” do concílio, já condenado por Bento XVI, que ataca com toda sua violência. E a ferocidade desta revolução que tudo pretende renovar, como se caduco estivesse, ficou consignada na letra do concílio para perpétua – e infeliz – memória.
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PS: – todos os textos citados da Sacrossanctum Concilium foram retirados do site do Vaticano;
- há muitos outros aspectos a serem analisados na SC, trabalho que será feito em outros artigos.

DE:http://intribulationepatientes.wordpress.com/