- E senti o espírito inundado por um mistério de luz que é Deus e N´Ele vi e ouvi -A ponta da lança como chama que se desprende, toca o eixo da terra, – Ela estremece: montanhas, cidades, vilas e aldeias com os seus moradores são sepultados. - O mar, os rios e as nuvens saem dos seus limites, transbordam, inundam e arrastam consigo num redemoinho, moradias e gente em número que não se pode contar , é a purificação do mundo pelo pecado em que se mergulha. - O ódio, a ambição provocam a guerra destruidora! - Depois senti no palpitar acelerado do coração e no meu espírito o eco duma voz suave que dizia: – No tempo, uma só Fé, um só Batismo, uma só Igreja, Santa, Católica, Apostólica: - Na eternidade, o Céu! (escreve a irmã Lúcia a 3 de janeiro de 1944, em "O Meu Caminho," I, p. 158 – 160 – Carmelo de Coimbra)
segunda-feira, 13 de abril de 2009
CONSIDERAÇÕES SOBRE A LITURGIA CATÓLICA Dom Guéranger
CONSIDERAÇÕES SOBRE A LITURGIA CATÓLICA
Dom Guéranger
PRIMEIRO ARTIGO
A LITURGIA, LINGUAGEM DA IGREJA, DEVE SE CARACTERIZAR PELA ANTIGÜIDADE, MARCA DISTINTIVA DA LITURGIA ROMANA.
Dentre os vários ramos da ciência eclesiástica abandonados hoje em dia, por infelicidade dos tempos, o estudo da liturgia é, sem dúvidas, um dos mais interessantes.
Entretanto, devido ao espírito do século, tal asserção parecerá a mais de um leitor eclesiástico gratuita e original. Mas não seria difícil fornecer as provas. O culto é o corpo da religião: por isso, a liturgia é sua expressão, sua linguagem; logo, não há conhecimento perfeito da Igreja sem o da liturgia. É vão conhecer os principais hábitos de um povo; seu gênio e pensamento só se desvendariam quando se penetrasse nos mistérios de sua linguagem.
Além das causas gerais de decadência universal, há uma causa em participar responsável pela cessação completa dos estudos litúrgicos entre nós, causa que deveria necessariamente levá-los à ruína, juntamente com a terrível comoção que ameaçara extinguir de vez o fogo sagrado em nossa infeliz pátria. Há mais de um século, a introdução de novas liturgias na Igreja de França preparava o humilhante resultado. Como estudar uma língua que se divide a cada dia numa multidão de dialetos desconhecidos entre si, e que tendem mais e mais a eliminar os derradeiros traços de semelhança com a língua mãe que já não mais os reconhece, e que poderiam ser conservados?
Sei que vou afrontar preconceitos, fazer oposição em uma matéria que parece não mais ser objeto de discussão: mas, quando se tem razão, somos sempre fortes; eu desafiaria qualquer homem sensato, qualquer teólogo a contestar meus princípios, assim como qualquer lógico a refutar minhas conseqüências. Recordarei verdades que escandalizarão as idéias preconcebidas; mas o que vai acontecer? Há-de se calar sempre, só porque se tem certeza de que não nos ouvem?
Em primeiro lugar, começarei por declarar minha total falta de hostilidade contra a instituição que, desde o elevado ponto de vista do qual vou considerá-la, por vezes me obriga a ser severo. O século passado sancionou uma obra em seu princípio temerária: apesar do risco e do inconveniente de tais inovações, pensou Roma que só poderia mostrar seu descontentamento de modo indireto e cheio de reverências. Estes pontífices, considerados ambiciosos, tinham no coração o desejo da paz e da salvação das almas, mais do que levavam a crer alguns canonistas franceses.
Em vão no-los mostrariam sempre armados com suas fundas, semelhantes ao Deus que representariam: eles sabem esperar, porque desejam que ninguém pereça. Seus filhinhos compreendem esta linguagem muda que o orgulho e a revolta se esforçaram em não escutar. Não tenho por meta perturbar aqueles a quem o direito ou o costume obriga ou autoriza repudiar os livros da Igreja de Roma, para substitui-los por uma liturgia diocesana. Continuam a fazê-lo em paz, à sombra da indulgência da Sé Apostólica. Declaro também que não aspiro a perseguir aqui a liturgia de qualquer diocese em particular.
Sei que não desejo desferir ataques pessoais, mas ao se pôr em prática, sob belos nomes, princípios arriscados, é bom que os homens não se acostumem a considerá-los como artigos de fé.
Antes do mais, as considerações gerais que aqui se apresentam demonstram a importância da matéria. Partimos sempre do mesmo princípio. A liturgia é a língua da Igreja, a expressão de sua fé, dos seus anseios, de suas homenagens a Deus; logo, em primeiro lugar, um de seus traços distintivos deve ser a antigüidade. Qualquer liturgia que vimos aparecer, que não veio de nossos pais, não merece o nome de liturgia. Um povo não chega a mil de setecentos anos de existência sem possuir uma linguagem adequada a seu pensamento, sobretudo se este povo é essencialmente imutável.
Desde o começo da Igreja cristã, um dos primeiros cuidados de seus fundadores haveria de ser, e foi, a fixação dos ritos sagrados, das cerimônias exteriores, das orações do culto, enfim, da liturgia. Os mais antigos monumentos pressupõem a existência de um corpo litúrgico completo, e todavia nenhum deles assinala com clareza sua origem exata. Os fatos se perdem na noite dos tempos, em que os homens privavam amiúde com o Homem-Deus. Os primeiros discípulos cuidavam em realizar suas idéias divinas.
Quando a Igreja saiu das catacumbas, ela surgiu com liturgia que o segredo dos mistérios e a duração das perseguições lhe permitiram desenvolver. Mas logo, sob a proteção dos césares, elevaria o cristianismo, em todo lugar, imponentes basílicas; o conjunto definitivo dos ritos sagrados, até então tolhidos, vieram impressionar os olhos do paganismo vencido e se somar ao triunfo da verdade.
No Oriente, observamos bispos eminentes, luminares da Igreja, consagrar piedade, gênio e vigílias em relevantes trabalhos de liturgia. Seus grandes nomes ficaram ligados a tais obras. Recolhida a herança dos séculos por mãos discretas e fiéis, enriqueceram-na de vários acréscimos. Deste modo se formou, a partir do séc. V, esta magnífica compilação de orações, em que a unção disputa com a majestade. A Igreja grega ainda conserva cuidadosamente este espólio: os acentos emocionantes e nobres que, dia e noite, as bocas dos cismáticos elevam ao céu, reboaram, nos dias da unidade, nos templos de Constantinopla, de Antioquia e de Alexandria. Armênios, coptas, maronitas, etíopes conservam como tesouro inalienável as palavras secretas que os seus pais na fé consagraram ao culto do Eterno.
Os longos ofícios são sempre os mesmos: eles permanecem como testemunho da passagem da verdadeira fé, que se evadiu daqueles territórios. Ao menos, tiremos alguma lição do respeito hereditário das Igrejas Orientais para com a antiga liturgia, e reconheçamos aí uma prova do sentimento de um cristianismo que nunca se extingue – o sentimento de repulsa por qualquer inovação, na medida em que o erro, que também é inovação, possa se insinuar.
Roma, sede inabalável da fé, também dera provas de seu zelo pelo culto divino. Desde o séc. IV, o papa São Dâmaso e seus predecessores recolheram os cantos, os ofícios sagrados que a antiga tradição romana conservou. Eram estas as palavras dos antigos pontífices, seladas em sangue, gravadas com piedade, consagradas pelo peso da autoridade suprema. Esta Igreja bem-aventurada, cujos fundamentos se espalharam à reboque do sangue de Pedro e Paulo, conforme aquilo de Tertuliano, esta Igreja primitiva limitava-se tão-somente a consultar suas gloriosas recordações para formar o corpo completo da liturgia; os recintos dos templos que Constantino construiu testemunharam, e ainda testemunham, as solenidades daquele ano cristão, cuja glória resplandecente deixa para trás as pompas, também poéticas, da Roma pagã. Às custas do próprio sangue, a Igreja emancipada adotou uma língua digna de si, língua divina, que só poderia se enriquecer, nunca perder, no correr dos séculos.
Assim, havia uma expressão para tudo, para as confissões de fé, os suspiros de esperança, as efusões do amor, as glórias dos triunfos, as necessidades das crianças, os gemidos dos pecadores. Fala a Igreja diante dos séculos: para ela, não existem vicissitudes, sua voz é sempre a mesma. Desde o primeiro dia, soube o que dizer ao Divino Esposo. Ó vós que amastes estudar a antigüidade cristã, que sois sensíveis às admiráveis recordações, que sentis que esta é a única e divina religião, que estais em posse do passado, lede, experimentai os resquícios da antigüidade que duram até nossos dias, nos tesouros veneráveis da liturgia romana. Os maiores papas deixaram nela sua marca. Depois de São Dâmaso, São Gelásio, e mais tarde, São Gregório Magno, dispuseram de diversas partes. No séc. XI, um pontífice gloriosíssimo, dos maiores homens da Igreja, São Gregório VII consagrou venturosos recreios em trabalhos litúrgicos, conservando sempre, em sua pureza primitiva, o depósito sagrado, que a ignorância e a barbárie alteraram por imprudência. Mais tarde, curvando-se aos anelos do Concílio de Trento, ordenara São Pio V a revisão do missal e do breviário romanos, retificados mais uma vez pelas fontes mais antigas, e fixados na forma que até hoje usamos.
E ainda que nos falte a garantia da história e dos monumentos, e que o sacramentário, o antifonário, o livro responsorial de São Gregório não tenha chegado a nossos dias conformes em tudo à resumida liturgia atual, quando se depara com os responsos, com as antífonas compostas das palavras da antiga Vulgata, cuja simplicidade religiosa e apostólica é mui anterior ao século de São Jerônimo, haveria como duvidar da recuada antigüidade dos ofícios romanos,? E a divisão dos salmos, que este santo doutor traçou segundo os antigos usos, sob encomenda do papa Dâmaso, recordando-nos as vigílias dos primeiros cristãos? E a simplicidade dos ofícios, mui distante da confusão dos próprios, de que pululam os novos breviários? E o estilo misterioso, inimitável e profundo das coletas e demais fórmulas deprecatórias? E os hinos do grande bispo, na basílica ambrosiana, compostos para ocupar com ofícios santos o povo fiel sitiado por uma princesa furibunda? E os hinos dos Prudêncios, dos Sedúlios, dos Gregórios, dos Hilários, que sob a aparente simplicidade escondem a unção eloqüente dos corações cristãos? E os ritos misteriosos da Semana Santa, os impropérios da Sexta-Feira, as solenidades da noite de Páscoa, que ainda se conservam incólumes às mutilações e reconstroem de modo emocionante o dia em que o afortunado catecúmeno apreciava a demolição das barreiras do santuário, que até então se impunham? E os livros da Escritura, ordenados na seqüência que os santos doutores observavam nas homilias, lembrando nesta ordenação a magnífica série de obras-primas da eloqüência cristã – não pararíamos de falar, se quiséssemos contar as vantagens da liturgia romana relativas apenas à antigüidade.
Devo falar dos cantos sublimes que nos legaram juntamente com as admiráveis orações? Posso aqui citar o testemunho de célebres músicos franceses e estrangeiros, que exaltaram à porfia a melodia antiga e religiosa que, sem a muleta da métrica, produzia emoções vivíssimas e profundas. Poderia citar autores protestantes de gosto, em cujos corações vibrava a corda católica quando reboava o canto da Igreja Romana. Ah! Quem nunca se arrepiou mil vezes nos acentos desta música grave, que apesar da severidade anima a chama das paixões e arremessa a alma edificada numa fantasia religiosa muito mais arrebatadora que a imponente voz das grandes águas, de que nos conta a Escritura? Quem não experimentou o encanto dos trechos sublimes e originais, prenhes do gênio dos séculos, que já são passados, que não deixaram rastros?
Quem nunca se arrepiou com o cantochão do ofício dos mortos, em que a ternura e o terror se mesclam de forma admirável? Qual cristão escutou o canto pascal Haec Dies sem experimentar o sentimento vago do infinito, como se Jeová vibrasse a voz majestosa? Quem nunca escutou, nas solenidades da Assunção e de Todos os Santos, a massa do povo percutindo as abóbadas sagradas com os acentos inspirados do Gaudeamus, e não ser transportado por eras, por épocas em que este canto ecoava na Roma subterrânea, quando o império agonizava, e a Igreja começava a trilhar seus destinos eternos.
A liturgia romana possui a principal qualidade de uma liturgia, a antigüidade. Nascida por assim dizer com a Igreja, está destinada a lhe servir de linguagem cá embaixo, até o dia em que todos os véus se rasgarem, e substituírem os cânticos da terra pelo Aleluia eterno, celebrando para sempre a união da Esposa e do Esposo.
Agora, se aplicássemos os mesmos princípios às novas liturgias que grassam na Igreja francesa, deparar-nos-íamos com um angustiante paralelo. Em meio a esta desordem singular, onde encontrar a palavra eterna da Igreja!
Vejo uma Igreja se orgulhar de um século de sujeição; outros, mais modestos, não contam mais de sessenta; alguns, ainda mais humildes, só justificam dez, quatro, e até mesmo um ano. Que posso dizer? [...] Há Igrejas - poderia citar duas, sem muito esforço - que para o ano, com o auxílio dos tipógrafos, estarão em condições de inaugurar as novas liturgias que suas hábeis mãos construíram, de cima a baixo, no silêncio do gabinete.
Ah!, lhe perguntaria eu, qual era vossa atividade antes das mudanças? Com quem rezáveis vós, há dois séculos? Com a Igreja Romana. À exceção dos santos cuja cerimônia é patrimônio particular de cada diocese, vossos ofícios não pertenciam a ela? Por que repudiastes a mãe das Igrejas? Por que recusaram a comunhão de orações? Temeis vós as suas bênçãos? Esperastes que vossos concertos a vozes separadas seriam mais agradáveis ao Eterno?
Entretanto, tal é o artifício das seitas, que se valem de seu prestígio para conseguir seus fins culpáveis e por vezes seduzir até os inimigos. Depois de um século, talvez nos permitam julgar essas mudanças. A história que nos ensina quem foram os autores, nos ensina também a apreciar as intenções. Força é lembrar dos nomes dos principais instigadores de novidades, do apoio sacrílego que os parlamentos emprestaram, das vozes que na época se levantaram contra a tendência que se imprimia àquela empresa, toda feita de vaidades. A seita jansenista tinha como principal alvo o rompimento com a antigüidade, ao mesmo tempo em que a apregoava.
Eis o segredo de seus imensos trabalhos. O passado os aborrece; por isso, deve-se romper com ele, criar tudo do nada, numa nova direção, com a finalidade de preparar os espíritos para mudanças mais radicais, quebrando os laços que uniam as Igrejas à Sé Apostólica.
Não agrada a Deus que eu difame aqui vários santos pontífices e padres virtuosos que se deixaram levar pelas aparências lisonjeiras com que coloriram intenções criminosas! Os santos padres só desejavam reflorescer o culto divino, cultivar nos novos breviários a flor da antigüidade. Gostaria de que fossem verdades mais brandas, mas não é por serem ignorados, esquecidos ou desconhecidos que os fatos se tornam menos factuais. É deveras espantoso que uma Igreja particular, depois de dezessete séculos, ouse perpetrar uma crítica tão feroz à liturgia da Igreja universal, e mais ainda, fazer para si outra totalmente nova. [...]
Que ninguém acredite todavia que a revolução pode acontecer sem grande escândalo para o povo fiel. Durante os séculos de fé, a Igreja era perseguida. Suplicaram os cristãos a seus pastores para que deixassem as orações, os cantos que herdaram, por assim dizer, junto com o cristianismo, e nos quais dormiram seus antecessores, em cujos templos reboavam aquelas entonações.
O mais poderoso dos sentimentos católicos fizera-os apreciar o justo valor destes planos de aperfeiçoamento, destes projetos de melhoria elogiados por um escritor atual e insuspeito. Depois de assinalar a época em que ousaram tocar no breviário romano pela primeira vez, acrescenta: “Sob o pretexto de aperfeiçoamento, o espírito de inovação cresce dia a dia; mais alguns melhoramentos e a majestosa simplicidade dos tempos antigos desaparecerá completamente”.
Mas ao menos, dirão eles, é uma boa idéia. Eles querem uma liturgia composta inteiramente com palavras da Escritura: que haveria de mais convincente e digno para a santidade do culto divino? A idéia é boa, mas por que a Igreja não a concebera antes de vós? por que, nos séculos mais insignes, ela sempre desejou consagrar com a própria voz a louvação ao Divino Esposo? Admiradores da antigüidade, sabeis quantos séculos depõem contra vós? A idéia é boa: mas a intenção é pura? Donde vêm este entusiasmo, este ardor que leva a substituir pela Santa Escritura todo o resto? Vosso zelo já parecia suspeito à mãe das Igrejas. Ela já havia obstado, de forma solene, as traduções, o ardor na pregação da leitura dos livros santos. Em todos os lugares, reprovaram vosso odioso parentesco. Não vos admireis se tememos vossos presentes.
Além disso, de onde tirastes que não podemos dirigir a Deus orações que não estejam nas Escrituras? É certo que tendes o segredo de fazê-las dizer o que quiserdes. Contudo, não é este o espírito da Igreja. Ela também sabe rezar e celebrar seus mistérios. Em muitas ocasiões, escolhe os livros santos para interpretar seus sentimentos. Ela tem o direito, que não é vosso, de consagrar e sacralizar os seus usos. Mas freqüentemente tira de seu próprio tesouro, e suas palavras ecoam no fundo do coração de seus filhos. Estamos sempre de Escritura em punho: não recusamos os preciosos desdobramentos que a Esposa do Espírito Santo oferece nos momentos de inspiração.
Encerremos estas reflexões com uma palavra sobre a melodia dos novos ofícios. Novas palavras exigiam novos cantos. Mas era uma tarefa imensa compô-los. O espírito sectário não recuou diante de tal empreendimento, e pôs mão à obra, dando nascimento à uma multidão de passagens, de obras-primas do enfado, da nulidade e do mau gosto. Entre as dioceses mais desditosas, Paris está sem dúvida em primeiro lugar. Encarregaram o padre Labeuf, sábio compilador, de anotar o antifonário e o gradual de Paris. Depois de gastar dez anos a meter notas sob linhas, e linhas sob notas, apresentou ao clero da capital uma composição monstruosa, com passagens fatigantes para se executar e escutar. Quis Deus com isso demonstrar que há coisas que se não imitam, porque nunca devem mudar.