segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Vaticano II, um debate entre Romano Amerio, Monsenhor Gherardini e Monsenhor Pozzo

 
DICIEm 2 de julho, Monsenhor Guido Pozzo (à direita na foto), secretário da Comissão Pontifícia Ecclesia Dei, proferiu uma conferência no seminário da Fraternidade São Pedro, em Wigratzbad, intitulada “Aspectos da eclesiologia católica na recepção do Vaticano II”. Nela, ele afirmou que “se o  Santo Padre fala de duas interpretações ou chaves de leitura divergentes, uma da descontinuidade ou ruptura com a Tradição Católica, e a outro da renovação na continuidade (em seu discurso de 22 de dezembro de 2005 à Cúria Romana, ndr), significa que a questão crucial da fonte, ou o ponto realmente determinante do trabalho de desorientação e de confusão que caracterizou e ainda caracteriza a nossa época, não provém do Concílio Vaticano II enquanto tal e não é o ensino objetivo contido em seus documentos, mas a interpretação deste ensino” (sublinhado no texto, como todas as passagens em negrito que seguem, ndr).
A análise de Monsenhor Pozzo sobre a influência do para-concílio.
Monsenhor Pozzo pretende provar que, sobre dois pontos controversos (o primeiro, a unidade e a unicidade da Igreja Católica, com a questão do subsistit in em Lumen Gentium 8, e o outro, o das relações entre a Igreja Católica e outras religiões, com o diálogo ecumênico e inter-religioso), “o anúncio autêntico da Igreja, no que diz respeito a sua reivindicação de plenitude, não foi modificado substancialmente desde o ensinamento do Vaticano II”.
Portanto, não resta senão perguntar por que os documentos conciliares, aos olhos de Monsenhor Pozzo tão claramente conformes à Tradição, deram lugar a uma interpretação de tal maneira oposta. O prelado romano se pergunta e responde: “Qual é a origem da interpretação da descontinuidade, ou da ruptura com a tradição? É que podemos chamar a ideologia conciliar, ou, mais exatamente, para-conciliar, que tomou conta do Concílio desde o início, se sobrepondo a ele. Com esta expressão, não se pretende nada que diga respeito aos textos do Concílio, nem à intenção dos autores, mas ao quadro geral de interpretação no qual o Concílio foi colocado e que age como uma espécie de acondicionamento interno da leitura sucessiva dos fatos e dos documentos. O Concílio não é a ideologia para-conciliar, mas na história do acontecimento eclesial e dos meios de comunicação de massa, se executou largamente a  mistificação do Concílio, que é precisamente a ideologia para-conciliar. Para que todas as conseqüências da ideologia para-conciliar fossem manifestadas como um acontecimento histórico, seria necessário considerar a revolução de 68, que toma como princípio a ruptura com o passado e a mudança radical da história. Na ideologia para-conciliar, o movimento de 68 significa uma nova figura da Igreja em ruptura com o passado”.
E Monsenhor Pozzo conclui que é necessário utilizar “a hermenêutica da reforma na continuidade”, preconizada por Bento XVI, “para enfrentar as questões controversas, liberando, por assim dizer, o Concílio do para-concílio que se misturou com ele, e conservando o princípio da integridade da doutrina católica e da plena fidelidade ao Depósito da Fé transmitido pela Tradição e interpretado pelo Magistério da Igreja”.
Uma interrogação permanece ao fim desta exposição: o para-concílio denunciado pelo secretário da Comissão Ecclesia Dei se identifica com o pós-concílio? Somos tentados a responder afirmativamente se considerarmos que esse para-concílio teria se esforçado em fazer coincidir os documentos redigidos entre 1962 e 1965 com o espírito da revolução de maio de 68. Mas também é dito que “a ideologia conciliar, ou, mais exatamente, para-conciliar, (…) tomou conta do Concílio desde o início, se sobrepondo a ele”. Esta sobreposição “desde o início” não teve nenhuma influência sobre a redação dos textos conciliares? Monsenhor Pozzo considera que a ideologia para-conciliar não afeta nem os textos do Concílio, nem a intenção dos autores, mas fornece somente “o quadro geral de interpretação no qual o Concílio foi colocado e que age como uma espécie de acondicionamento interno da leitura sucessiva dos fatos e dos documentos”. A ideologia para-conciliar seria, por conseguinte, um quadro externo que condiciona do interior a leitura dos documentos! Parece mais simples ver uma influência estranha à Tradição se exercer diretamente sobre a sua redação.
O testemunho de Dom Lefebvre
Dom Lefebvre
Dom Lefebvre
É que declarava francamente Dom Marcel Lefebvre em Ils l’ont décournné [“Eles O destronaram”]: “É certo que, com os 250 padres conciliares do Coetus (Coetus Internationalis Patrum, grupo de bispos conservadores fundado por Dom Lefebvre, Dom Carli e Dom Proença-Sigaud, ndr), tentamos, por todos os meios colocados a nossa disposição, impedir os erros liberais de se exprimirem nos textos do Concílio; o que fez com que nós pudéssemos como que limitar os danos, alterar tais frases inexatas ou tendenciosas, acrescentar tal frase para retificar uma proposta tendenciosa, uma expressão ambígua.
“Mas devo confessar que não tivemos êxito em purificar o Concílio do espírito liberal e modernista que impregnava a maior parte dos esquemas. Os editores, com efeito, eram exatamente os peritos e os Padres manchados por esse espírito. Ora, o que querer quando um documento é, em todo o seu conjunto, redigido com um espírito falso?  É praticamente impossível purificá-lo deste espírito; seria necessário recompô-lo completamente para lhe dar um espírito católico.
“O que pudemos fazer, é, pelos modi que apresentamos, fazer acrescentar incisos nos esquemas, e isso se vê muito bem: basta comparar o primeiro esquema da liberdade religiosa com o quinto que foi redigido — pois este documento foi cinco vezes rejeitado e retornou cinco vezes à tona — para ver que houve, de todo modo, êxito em atenuar o subjetivismo que infectava as primeiras redações. O mesmo para a Gaudium et Spes, se vê muito bem os parágrafos que foram acrescentados a nosso pedido, e que estão lá, diria eu, como retalhos devolvidos a uma velha roupa: ele não cola nem junta; ele não tem mais a lógica da redação primitiva; as adições feitas para atenuar ou contrabalançar as afirmações liberais permanecem lá como corpos estranhos (…)
“Mas, o fastidioso é que os próprios liberais praticaram este sistema no texto dos esquemas: a afirmação de um erro ou de uma ambigüidade ou de uma orientação perigosa, e, imediatamente antes ou depois, a afirmação em sentido contrário, destinada a tranqüilizar os padres conciliares conservadores.” (Ils l’ont découronné, Clovis, pp. 193-194, pode-se obter a obra aqui).
Romano Amerio e o seu discípulo Enrico Maria Radaelli denunciam “uma abissal ruptura de continuidade”
Romano Amerio
Romano Amerio
É possível encontrar um eco do testemunho de Monsenhor Lefebvre no terceiro volume das obras completas de Romano Amerio, publicado nos últimos dias na Itália pelas edições Lindau, sob o título Zibaldone, retomando o título de uma obra do poeta Giacomo Leopardi que significa uma mistura que reúne, sem ordem, “curtos pensamentos, aforismos, relatos, citações de autores clássicos, diálogos morais, comentários de acontecimentos do cotidiano”, como escreveu em 12 de julho o vaticanista Sandro Magister em o seu sítio chiesa.espressonline (tradução portuguesa publicada no Fratres in Unum). Magister assim apresenta a obra de Amerio: “Dessa sua análise fortemente crítica, que ele aplicava também ao Concílio Vaticano II, Amerio extraiu o que Enrico Maria Radaelli, seu fiel discípulo e editor da publicação das obras do mestre, chama de “grande dilema subjacente ao fundo do cristianismo atual”. Este dilema é o de saber se há continuidade ou ruptura entre o magistério da Igreja de antes e depois do Vaticano II.
“(…) a juízo de Amerio e Radaelli, esta é justamente a causa da crise da Igreja conciliar e pós-conciliar, uma crise que levou o mais próximo da perdição, ‘impossível mas também quase alcançada’, como é o ter desejado renunciar a um magistério imperativo, com definições dogmáticas “inequívocas na linguagem, certas no conteúdo, vinculantes na forma, como se espera ser ao menos os ensinamentos de um Concílio”.
“A conseqüência, segundo Amerio e Radaelli, é que o Concílio Vaticano II está cheio de asserções vagas, interpretáveis de modos diferentes, das quais algumas estão também em aberto contraste com o magistério anterior da Igreja (destaques nossos). Essa linguagem pastoral ambígua é o que havia aberto o caminho a uma Igreja hoje “percorrida por milhares de doutrinas e centenas de milhares de costumes nefastos”, inclusive na arte, música e liturgia.
“O que fazer para remediar essa calamidade? A proposta que faz Radaelli vai mais além daquela feita recentemente — a partir de juízos críticos tão duros quanto — por outro defensor apaixonado pela tradição católica, o teólogo tomista Brunero Gherardini, de 85 anos de idade, cônego da basílica de São Pedro, professor emérito da Pontifícia Universidade Lateranense e diretor da revista ‘Divinitas’”.
“Monsenhor Gherardini antecipou sua proposta num livro publicado em Roma, no ano passado, com o título: ‘Concilio Ecumenico Vaticano II. Um discorso da fare’. O livro conclui com uma ‘Súplica ao Santo Padre’, a quem se pede que submeta a um novo exame os documentos do Concílio, para esclarecer, de uma vez por todas, ‘se, em que sentido e até que ponto’ o Vaticano II está ou não em continuidade com o magistério anterior da Igreja. (…)
“Pois bem, em seu epílogo a ‘Zibaldone’ de Romano Amerio, o professor Radaelli recolhe a proposta de Monsenhor Gherardini, mas ‘apenas como uma primeira instância para purificar o ambiente de muitos, muitos mal entendidos’. Com efeito, segundo Radaelli, não é suficiente esclarecer o sentido dos documentos conciliares, se tal esclarecimento é oferecido depois à Igreja com o mesmo estilo ineficaz de ensinamento ‘pastoral’ que se tornou costume com o Concílio, propositivo mais que impositivo.
“Se o abandono do princípio de autoridade e o ‘discussionismo’ são a enfermidade da Igreja conciliar e pós-conciliar, para sair dela — afirma Radaelli — é necessário trabalhar de forma contrária. A máxima hierarquia da Igreja deve fechar a discussão com um pronunciamento dogmático ‘ex cathedra’, infalível e vinculante. Deve atingir com o anátema os que não obedeçam e deve bendizer os que obedecem.
“O que Radaelli espera que a cátedra suprema da Igreja decrete? Assim como Amerio, ele está convencido de que ao menos em três casos se deu ‘uma ruptura abismal da continuidade’ entre o Vaticano II e o magistério anterior: onde a Concílio afirma que a Igreja de Cristo ‘subsiste na’ Igreja Católica, em vez de dizer que ‘é’ a Igreja Católica; onde assevera que ‘os cristãos adoram o mesmo Deus adorado pelos judeus e muçulmanos’; e na Declaração ‘Dignitatis Humanae’ sobre a liberdade religiosa.
A hermenêutica da reforma na continuidade é um remédio suficiente?
Mons. Brunero Gherardini
Mons. Brunero Gherardini
No fim de seu artigo, Sandro Magister mostra que a crítica do Concílio por Romano Amerio e Monsenhor Gherardini não é, aos olhos do Papa, admissível: “Tanto Gherardini como Amerio-Radaelli reconhecem em Bento XVI um Papa amigo. Mas há que se descartar que ele assinta a seus pedidos. Mais ainda, tanto no conjunto como em alguns pontos controversos, o Papa Joseph Ratzinger já fez saber que não compartilha em absoluto de suas posições.
“Por exemplo, no verão de 2007, a Congregação para a Doutrina da Fé se manifestou a respeito da continuidade de significado entre as fórmulas ‘é’ e ‘subsiste em’ ao afirmar que ‘o Concílio Ecumênico Vaticano II não quis mudar, nem de fato o fez, a doutrina anterior sobre a Igreja, mas que apenas quis desenvolvê-la, aprofundá-la e expô-la mais amplamente’.
“Quanto à Declaração ‘Dignitatis humanae’ sobre a liberdade religiosa, Bento XVI explicou pessoalmente que, se ela está separada das indicações anteriores ‘contingentes’ do Magistério, fê-lo precisamente para ‘retomar novamente o patrimônio mais profundo da Igreja’.
“O discurso em que Bento XVI defendeu a ortodoxia da “Dignitatis humanae” é o que dirigiu à cúria vaticana na vigília do primeiro Natal de seu pontificado, em 22 de dezembro de 2005, precisamente para sustentar que  entre o Concílio Vaticano II e o magistério anterior da Igreja não há ruptura, mas “reforma na continuidade”.
E Sandro Magister conclui: “O Papa Ratzinger não convenceu até agora aos lefebvristas, que se mantêm em estado de cisma justamente neste ponto crucial (a afirmação de uma descontinuidade ou de uma ruptura em relação à Tradição constitui um cisma? Não seria antes a própria ruptura que pode ser sinônimo de cisma? ndr). Mas não convenceu — de acordo com o que escrevem Radaelli e Gherardini — nem sequer a alguns de seus filhos ‘obedientíssimos em Cristo’”.
De um lado, Monsenhor Pozzo propõe libertar o Concílio do para-concílio, e de outro, Amerio e Radaelli pedem que o Magistério Romano deixe de “pastoralizar” para dogmatizar claramente. Tal é o coração do debate sobre o Vaticano II que Monsenhor Gherardini afirma ser “um debate a se realizar”. Imperativamente. (DICI n°220 de 07/08/10)

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