segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O que Bento XVI realmente pensa sobre Assis.

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Circula há anos, particularmente nos meios ditos “conservadores”, o rumor de que o então Cardeal Joseph Ratzinger, por conta de algumas críticas pontuais, teria se oposto ao primeiro encontro de Assis  (1986) enquanto tal. Visando dissipar este mal entendido e deixar clara sua posição, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, por ocasião do segundo encontro (2002), redigiu um artigo para a revista 30Giorni. Abaixo apresentamos sua tradução, gentilmente enviada pelo Revmo. Pe. Samuel Pereira Viana, a quem agradecemos. Ao lê-lo, é impossível ficar surpreso com a convocação do encontro deste ano baseado num suposto descontentamento de outrora do ex-prefeito do antigo Santo Ofício e dificilmente se poderá imputar qualquer incoerência entre o pensamento do então Cardeal e do Papa atualmente reinante.

O esplendor da Paz de Francisco

«A partir deste homem, de Francisco, que respondeu plenamente à chamada de Cristo Crucificado, emana ainda hoje o esplendor de uma paz que convenceu o Sultão e pode derrubar verdadeiramente os muros». Um artigo para 30Giorni do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger (destaques de Fratres in Unum).

Quando, quinta, 24 de Maio, sob o céu grávido de chuva, se moveu o trem que deveria conduzir a Assis os representantes de um grande número de Igreja cristãs para testemunhar e rezar pela Paz, este trem me pareceu como um símbolo do nosso peregrinar na história. Não somos, de fato, talvez, todos passageiros de um mesmo trem? O fato de que o trem tenha escolhido, como seu destino, a paz,  a justiça e a reconciliação não é, talvez, uma grande ambição e, ao mesmo tempo, um esplêndido sinal de esperança? Onde quer que seja, passando pelas estações, acorreu um multidão para saudar os peregrinos da Paz. Nas estradas de Assis e na grande tenda, o lugar do testemunho comum, fomos novamente circundados do entusiasmo e da alegria cheia de esperança, em particular pelo grande número de jovens.
A saudação das pessoas era direcionado ao homem ancião vestido de branco que estava no trem. Homens e mulheres, que na vida cotidiana muitas vezes se confrontam e parecem divididos por barreiras intransponíveis, saudavam o Papa, que com a força da sua personalidade, a profundidade da sua fé, a paixão que daí brota para a paz e a reconciliação, mostrou como aquilo que parecia  ter feito brotar o impossível do carisma do seu ofício: convocar para, em conjunto, a realização de uma peregrinação pela paz, representantes da cristandade dividida e representantes de diversas religiões. Mas o aplauso, endereçado sobretudo ao Papa, exprimia também um consenso espontâneo para todos aqueles que com ele, buscam a paz e a justiça e era um sinal do desejo profundo de paz que experimentam os indivíduos defronte às devastações que nos circundam provocadas pelo ódio e pela violência.
Também se, às vezes, o ódio aparece invencível e se multiplica sem cessar na espiral da violência, aqui, por um momento, se percebeu a presença da força de Deus, da força da paz. Me vêem à mente as palavras do Salmo: “Com o meu Deus, transporei os muros”( Sl 18, 30). Deus não  nos coloca uns contra os outros, ao contrário, Ele que é Uno, que é Pai de todos, nos ajudou, ao menos por um momento, a transpor o muro que nos separam, fazendo-nos reconhecer que Ele é a Paz e que não podemos ser próximos de Deus se estamos longe da paz.
No seu discurso, o Papa citou um outro ponto crucial da Bíblia, a frase da Carta aos Efésios: “Cristo é nossa Paz. Ele fez de nós um só Povo, derrubando o muro de separação que estava entre nós, isto é, a inimizade” (Ef 2, 14). Paz e justiça no Novo Testamento, são nomes de Cristo (por “Cristo, nossa justiça” ver por exemplo 1 Cor 1, 30). Como cristãos não devemos esconder esta nossa convicção: da parte do Papa e o Patriarca Ecumênico a confissão de Cristo nossa Paz foi clara e solene. Mas, justamente, por essa razão, há algo que nos une além das fronteiras: a peregrinação pela paz e pela justiça. As palavras que um cristão deve dizer àquele que se coloca em caminho em direção a tais metas são as mesmas usadas pelo Senhor na resposta ao escriba que tinha reconhecido no dúplice mandamento que exorta a amar a Deus e o próximo a síntese da mensagem néo-testamentária: “Não estás distante do Reino de Deus” (Mc 12, 34). Para uma correta compreensão do evento de Assis, me parece importante considerar que não se tratou de uma auto-apresentação das religiões que seriam intercambiáveis entre si. Não se tratou de afirmar uma igualdade entre as religiões, que não existe. Assis, foi mais a expressão de um caminho, de uma busca, da peregrinação pela paz que é tal somente se unida à justiça. De fato, lá onde falta a justiça, onde aos indivíduos é negado o direito, a ausência de guerra pode ser somente um véu, atrás do qual se escondem a injustiça e a opressão. Com o seu testemunho pela paz, com o seu empenho pela paz na justiça, os representantes das religiões começaram, nos limites das suas possibilidades, um caminho que deve ser para todos um caminho de purificação. Isto vale também para nós cristãos.
Alcançamos verdadeiramente a Cristo somente se chegamos à sua paz e à sua justiça. Assim, a cidade de São Francisco, pode ser a melhor intérprete deste pensamento. Antes da sua conversão, Francisco era cristão, assim como o eram os seus concidadãos. E também o vitorioso exército de Perúgia que o colocou prisioneiro e derrotado no cárcere era formado por cristãos.
Foi somente, então, derrotado, prisioneiro, sofredor, que começou a pensar no cristianismo de modo novo. E somente depois desta experiência que lhe foi possível pensar e compreender a voz do Crucificado que lhe falou na pequena Igreja em ruínas de São Damião, que se tornou, por isso, a imagem mesma da Igreja da sua época, profundamente ferida e em decadência. Somente então viu como a  nudez de Cristo, a sua pobreza e a sua humilhação extrema estavam em contraste com o luxo e a violência que antes lhe pareciam normais. E somente então conheceu verdadeiramente a Cristo e entendeu que as cruzadas não eram o caminho correto para defender os cristãos e os direitos dos cristãos na Terra Santa, mas que, antes, era necessário levar a sério e à letra a mensagem da imitação do Crucificado.
A partir deste homem, de Francisco, que respondeu plenamente à chamada de Cristo Crucificado, emana ainda hoje o esplendor de uma paz que convenceu o sultão e pode verdadeiramente derrubar os muros. Se nós, como cristãos, tomamos o caminho da paz sob o exemplo de São Francisco, não devemos temer perder a nossa identidade: é justamente então que a encontramos. E se outros se unem a nós na busca da paz e da justiça, nem eles e nem nós devemos temer que a verdade possa ser pisoteada por belas frases feitas. Não, se nós nos dirigimos seriamente em direção à paz, então estamos no caminho correto do Deus da Paz (Rm 15, 32), cuja face se fez visível a nós cristãos pela fé em Cristo.

DE:FRATRES IN UNUM