sábado, 8 de agosto de 2020

Vida Espiritual – Arquimandrita Emiliano de Simonopetra

 

Vida Espiritual – Arquimandrita Emiliano de Simonopetra

Sermão dado na Igreja de S. Nicolau em Trícala, Grécia, em 10 de janeiro de 1971.

 

Poucos dias atrás, celebramos o Dia do Ano Novo. Um novo ano começou. Espero que, com a aurora deste novo começo, seus lares se tornem como aqueles “edificados sobre a rocha” (Mt 7:24-25). Espero que todos vocês, “remindo o tempo” que Deus lhes deu (cf. Ef 5.16; Cl 4:5), sejam bem sucedidos na luta para levarem uma vida espiritual, para se tornarem pessoas espirituais. Seu caminho é espiritual. Que possam viver uma vida espiritual verdadeira.

Deus nos achou dignos de ver a aurora de mais um ano. Estima-se que no ano passado cerca de 45 milhões de pessoas morreram. Fomos achados dignos de viver. É uma dádiva, uma oportunidade que Deus nos deu para o nosso sucesso, não no novo ano, mas na nova vida para a qual fomos chamados. Quais são os sinais e as características particulares dessa nova vida? Algumas pessoas riem de nós e algumas nos louvam. Algumas dizem que os cristãos são pessoas sensatas, enquanto outras dizem que somos loucos. E, enquanto lutamos para levar uma vida cristã, para nos tornarmos velas brilhando em Cristo, outros vivem a vida sem ideais, desprovidos de visão espiritual, preocupados apenas com coisas pequenas e vãs. E, no entanto, às vezes invejamos essas pessoas. Que estranho! Os que são chamados ao céu, os que foram escolhidos para viver com os anjos, os arcanjos e os santos, invejam os que são amarrados à terra! Mas não é assim que deveríamos ser. Quanto a eles, que continuem com suas mentiras.

Uma vez perguntaram para um filósofo francês o que ele achava da vida dele. Ele respondeu que não achava nada. Então perguntaram:

“Você já pensou alguma vez a respeito do céu? A respeito de Deus?”

“Não, nunca”, respondeu ele.

E, porém, vejam com o que esse homem, que não pensava nem em Deus nem na própria vida, era de fato preocupado. Fizeram outra pergunta:

“Você tem momentos difíceis na vida, preocupações, problemas, momentos em que o medo te domina?”

“Sim — há muitas coisas que me deixam psicologicamente ansioso”, disse o filósofo, “e, nesses momentos, busco consolo nos meus sapos”.

Ele tinha desprezo por pensar em Deus. Preocupava-se, porém, com seus sapos de estimação, criados para consolá-lo durante os momentos difíceis da vida. Pobre filósofo francês! Chegará o dia em que, junto com o seu colega alemão, você dirá: “Estou preocupado com tudo isso. Qual é o sentido de toda a minha ânsia e dos meus suspiros?”. Ele tinha então setenta e cinco anos, e ainda vivia em pecado. E, quando você morrer, pedirá, como aquele outro filósofo: Luz, mais luz. Mas a luz veio ao mundo e você não a aceitou (cf. Jo 3:19).

Às vezes ficamos deslumbrados com pessoas mundanas, mas nos esquecemos de que todos os seus palácios maravilhosos estão edificados sobre a areia, e de que, um dia, elas os verão desmoronar em um monte de pó (cf. Mt 7:26-27). Se quisermos nos aproximar delas, que seja durante seus momentos de honestidade, quando conseguem abrir o coração a nós. Então veremos que elas têm os olhos cheios de lágrimas, e cheios das coisas do mundo; veremos seus corações mergulhados no desespero e sendo sufocados por sua saciedade. É quando você ouvirá o que seus lábios cansados estão sussurrando: “Diga-me, como posso me esquecer deste mundo cruel?”. São almas mortas, mesmo estando vivas. Almas sem ideais, sem qualquer aspiração a uma vida espiritual mais elevada — é o único modo de descrevê-las: almas mortas.

Em contrapartida, para aqueles de nós que queremos ser corações vivos, em chamas, com ideais mais elevados, quais são os princípios que devem governar a nossa vida espiritual?

Em primeiro lugar, para sermos pessoas espirituais, para as nossas vidas serem verdadeiras, devemos viver um estilo de vida sacramental e místico. O que significa um estilo de vida sacramental e místico? Algum de nós nasceu por conta própria? Não. Todos nós recebemos o dom da vida dos nossos pais e mães. Do mesmo modo, ninguém obtém o dom da vida espiritual pelo próprio esforço, por mais que tente. Por mais que eu me alongue, não conseguirei ficar mais alto, não importa o quanto eu me esforce. Do mesmo modo, não conseguirei eu mesmo criar uma vida espiritual. Mesmo se eu me esgotar tentando, se eu me esforçar muito e chorar, ou fazer longos jejuns, a vida espiritual é um dom concedido a mim pelo Espírito Santo (cf. Ef 2:8-10).[1] Segue-se, pois, que a condição básica para a vida espiritual é que nós devemos entender que, sozinhos, não podemos fazer absolutamente nada. Não importa o quanto tentemos, a vida espiritual é algo que outra pessoa nos dá. E essa “outra pessoa” é o Espírito de Deus, o Consolador, o “tesouro de bens e doador da vida”, o tesouro do qual todas as riquezas da espiritualidade provêm, a fonte da qual a vida espiritual emerge e transborda. É claro que às vezes nos confundimos e pensamos que ser espiritual significa ser “uma boa pessoa”: não roubar, não matar, não ir a lugares ruins ou sair com amigos ruins, ir à igreja aos domingos, estar lá para a doxologia, ou pelo menos a tempo de ouvir “Bendito é o reino do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, ler livros espirituais, e por aí vai.

Mas não, isso não é a vida espiritual. Uma pessoa espiritual, um cristão de verdade, é alguém cuja vida inteira está consagrada a Deus. Inicialmente, por meio do Batismo, e depois, no seu coração, essa pessoa faz um voto para Deus, de viver para Deus e permanecer com Deus para sempre.[2] Uma pessoa espiritual é um atleta que repentinamente começa a viver, que se diferencia das multidões e corre para o céu com toda a velocidade da sua alma. Uma pessoa espiritual é uma pessoa que, com os olhos radiantes e o peito inclinado para frente, direciona a sua corrida e a sua carreira para o céu. Não é “um homem bom”. Uma pessoa espiritual sabe que, para chegar lá, precisa de asas fortes: as asas do Espírito Santo.

Uma pessoa espiritual deve, então, fazer todo o possível para atrair, conquistar o Espírito de Deus, pois somente o Espírito Santo, o próprio Deus, tem os dons da vida espiritual.

Segundo São Gregório de Nissa, cuja festa celebramos hoje, a “distribuição dos dons reais” do Espírito Santo se dá na Igreja por meio dos sacramentos.[3]

O primeiro sacramento é o Batismo, seguido pelo Crisma. Depois deste, há a Confissão, um sacramento que purifica o nosso coração dos pecados e nos coloca diante de alguém que nos guia ao céu: sem ele, nada podemos fazer. Depois deste, vem a Santa Comunhão. Tal como quando o Espírito Santo encobriu com a Sua sombra a Toda-Santa Virgem (cf. Lc 1:35), e o Verbo de Deus desceu e Se fez carne em seu ventre, o Espírito entra em nossa alma para que Cristo possa nascer dentro de nós, para que possamos nos familiarizar intimamente com Ele e torná-Lo nosso; para que a vida de Cristo possa tornar-se a nossa vida. E é exatamente isso o que acontece nos sacramentos, começando com o Batismo e o Crisma. Sem eles, hão há vida cristã. O que quer que você faça, mesmo se der a sua vida inteira aos pobres, não será salvo sem o Batismo e o Crisma.

Na medida em que recebemos Cristo no Batismo e no Crisma, também recebemos na Santa Comunhão. Aquele pedacinho que você recebe, que você põe na boca e quase não sente, é todo o Cristo, é toda a Trindade, juntamente com a Igreja de Cristo e todos os santos. Isso é a Santa Comunhão. Se você tem uma tigela cheia de farinha e acrescenta um pouquinho de fermento, toda a farinha é fermentada (cf. Gl 5:9). Se você recebe um pedacinho da Santa Comunhão, você é imediatamente fermentado; embora você seja um ser humano, torna-se o que a Santa Comunhão é: Deus! E é por isso que os primeiros cristãos participavam dela todos os dias (cf. Atos 2:46). E nós recebemos a Comunhão a cada quinze ou vinte dias, e ainda pensamos que cumprimos o nosso dever, que estamos bem; aliás, que fomos até além do nosso dever! Mas eles recebiam a Comunhão todo dia, porque sabiam o que ela era.

Podemos dizer, então, que um estilo de vida sacramental significa união sacramental com Deus, participação na vida da Igreja mediante os mistérios.

Usamos também uma outra expressão: experiência mística, união mística com Cristo. O que significa união mística? Ah, meus caros amigos, me escutem com atenção agora, me dêem um pouco mais de atenção e verão, quando terminarmos, o quanto entendem isso — e, quando experimentarem isso, sentirão tanta alegria que serão gratos por eu lhes ter contado. Escutem. Experimente isso e verá como é fácil estar unido a Cristo todo dia, toda hora, a todo momento: você e Cristo.

Você já viu o que acontece com as criancinhas, as crianças inocentes e puras, quando você põe diante delas algo de que gostam: imediatamente arregalam os olhos como o céu azul, abrem as mãos e batem palmas e pulam de alegria. É isso o que você fará quando sentir a doçura da união mística com Cristo, quando vir e notar o quanto é fácil estar misticamente unido a Deus. Quando experimentar isso, vai se lembrar do que eu disse. O seu coração será inundado de sentimentos de alegria, e você também clamará com S. Simeão, o Novo Teólogo: “Dizei-me, homens fúteis, se entendeis isto: que pessoa, tendo ganhado Cristo, precisa de qualquer uma das coisas boas deste mundo?”.[4] Digam-me, homens de futilidade, que vivem na mentira, se vocês conhecem alguém que colocou Cristo no coração e ainda quer qualquer coisa de tudo o que pode se encontrar na terra ou no céu.

O que é, então, a união mística com Cristo? Como ela ocorre? Mas receio que eu já tenha cansado vocês, então me permitam fazer uma pequena pausa para descanso compartilhando com vocês uma história sobre S. Simeão, o Novo Teólogo. Ele é um grande santo da Igreja e escreveu sobre o que viu, o que experienciou, como se alegrou, como desfrutou de Cristo durante a vida. Alguns de vocês, no entanto, podem se perguntar: será que isso é tudo verdade? Mas podemos fazer a mesma pergunta quanto a tudo o que se diz dos satélites russos e americanos. E talvez as coisas escritas sobre Napoleão não sejam verdadeiras, ou sobre Alexandre, o Grande, ou sobre outras figuras históricas. E quem pode saber se mesmo eu existo ou se vocês existem? Talvez isso também não seja verdadeiro. Mas a única realidade é o que os santos dizem. Venham dar uma olhada nessa realidade, tal como S. Simeão nos apresenta. Só lerei passagens curtas.

“Um dia em que eu andava até a fonte, Tu me encontraste no caminho, meu Cristo, Tu que havias anteriormente me purificado de todo pecado. E então, diante dos meus fracos olhos, brilhaste com um divino brilho, e percebi imediatamente que a luz que eu havia visto antes não era a luz verdadeira. Mas como foi possível que eu visse a Ti e conhecesse a Ti? Vi a Ti, fiquei perplexo, maravilhado, mas ainda não sabia que aquilo era Tu. Fiquei simplesmente maravilhado contigo. Eu disse: quem poderá ser este, tão brilhante, mais brilhante que o sol? E então foste embora. E um dia, depois de um tempo, retornaste, e depois daquilo apareceste muitas vezes a mim, e me cobriste com a Tua divina luz. Mas, novamente, ias embora e me deixavas sofrendo”.

“Eu tinha sempre comigo um ajudante, Teu discípulo, Teu apóstolo” — ele está se referindo ao seu Ancião, ao seu pai espiritual — “a quem eu honrava como se estivesse honrando a Ti, a quem eu amava de alma, e a cujos pés eu caía e pedia-lhe para me ajudar a Te conhecer melhor. E, enquanto eu andava pelo caminho um dia, Te apresentaste a mim novamente. Comecei a suspeitar que era Tu, mas naquele momento me arrebataste ao céu, como o Apóstolo Paulo diz, ‘há catorze anos’ fui arrebatado aos céus. No corpo? Na alma? Não sei (cf. 2Co 12:2), só Tu sabes”.

“Algum tempo depois, Te dignaste a Te apresentar a mim novamente. Tua face era como o sol. Dessa vez iluminaste o meu entendimento e abriste os olhos da minha alma. E, vendo-Te, disse: Quem és Tu, a Quem vejo e com Quem me maravilho? E então, ó Cristo meu, Senhor meu, então, pela primeira vez, concedeste a mim — eu, o pródigo — ouvir a Tua doce voz. E falaste comigo com tanta doçura, com tanta calma, que me deixaste em estado de êxtase, e fui enchido de admiração e tremi e pensei: Que glória é essa, para mim, poder ver a Deus! A partir daquele momento, não cessei de agradecer a Ti!”

“E outra vez, quando eu estava prestes a beijar o ícone da Tua santa Mãe, tendo me ajoelhado para venerá-lo, antes que pudesse me levantar, apareceste primeiro diante de mim e depois no meu coração. E então percebi que havias Te unido a mim. A partir de então, amei-Te mais, não apenas com a mente, mas com todo o coração. Desde então, nunca nos separamos”.[5]

Estão vendo como este santo da Igreja viu Cristo e se uniu a Ele? Estão vendo a que estatura os santos chegam? Mas como fazem isso? O que fazem para chegar a essa grandeza? Em primeiro lugar, são perfeitamente indiferentes às coisas do mundo. Nada lhes interessa. Quando algum assunto urgente te obriga a dirigir rápido para algum lugar, você não examina o carro para ver se ele está novo, ou que tipo de funcionalidades secundárias ele tem; o que te preocupa é chegar ao seu destino. Assim é como os santos, que nunca se desviam do seu propósito. Não são apegados a nada do mundo. Não amam nada do mundo. Só aguardam Cristo. E Ele os purifica: purifica os corações deles. Então, como nos disse S. Simeão, Ele ilumina as suas almas e lhes concede a visão de Deus. Deus aparece diante dos seus próprios olhos. O que diz o Evangelho? “Bem-aventurados são os puros de coração, pois verão a Deus” (Mt 5:8). Os santos vêem Deus.

Depois da purificação e da iluminação, Deus concede a eles a libertação das paixões. Nenhuma fúria ou ira ou inveja ou angústia ou preocupação ou indignação! Paixão nenhuma! Libertação! E à medida que suas almas se tornam radiantes, tornam-se vasos apropriados para conter Deus. E então Cristo entra nelas e se unem misticamente. Quando ocorre essa união mística, quando o santo viu Cristo, quando se alegrou n’Ele, compreendeu-O, conheceu-O, desfrutou d’Ele, ele então é preenchido com o amor divino. Mas talvez vocês me digam: Nós também já não sentimos essas coisas? Não amamos Cristo? Não se preocupem. Nós O amamos também, mas, comparado com o oceano do amor deles, o nosso não é mais que uma gota minúscula.

Os santos são pessoas celestiais. Vocês já viram algo pegando fogo e se queimando por completo? É assim que a vida deles é. Eles se comunicam com Cristo e estão unidos a Ele de diferentes modos, mas principalmente por meio da oração incessante. “Meu Cristo”, dizem constantemente a Ele, “entra no meu coração, meu Senhor, meu Jesus, meu Cristo, vem e habita em mim”. E Cristo vai e habita misticamente em seus corações. Isso não deveria ser motivo de surpresa. Quando você chama uma pessoa, ela não vai até você? Cristo não irá, então, quando for chamado? Quando você fala com uma pessoa, ela não te ouve? Deus, que disse “O que quer que pedirdes, Eu vos darei” (Mt 21:22), não te ouvirá, então? “Vem e habita em nós”, o santo diz. Diz com os lábios, diz com a mente, diz com o coração, e, assim, o coração e a mente são unidos a Cristo. Então ele sente que Cristo está falando com ele, tornando a sua vida doce, o seu dia alegre e suas noites inesquecíveis.

E nós, o que devemos fazer? Todos sabemos o quanto a nossa vida é cansativa, sobrecarregada com mil preocupações. Mas, vendo o que os santos da Igreja fizeram, façamos ao menos algumas coisinhas que podemos fazer. Cristo aceita os cem, os trinta e os cinco que você der a Ele. Se não conseguir se lembrar d’Ele mil, ou cem, ou cinqüenta vezes por dia, diga a Ele: “Ó, Cristo meu!”. Não faça pedidos relacionados ao seu emprego, à sua mãe, à sua doença, ou ao sucesso. Não. Peça a Ele que entre no seu coração. Você consegue fazer isso dez vezes por dia? Cinco vezes? Se você sentir de invocá-Lo mesmo duas vezes por dia, depois de um mês você será adocicado e O buscará dez vezes, depois vinte vezes, e então começará a senti-Lo no seu coração.

Resumindo: o primeiro elemento da vida espiritual é a experiência mística e sacramental de Cristo. Através dos sacramentos, e pelo esforço de invocá-Lo misticamente, somos unidos a Cristo.

Consideremos agora o segundo elemento da vida espiritual, a saber, o espírito de martírio. Isso significa que a nossa vida deve ser um martírio com lágrimas, desgraças e com aqueles ao nosso redor zombando de nós? Nem um pouco. A vida cristã é um cântico de alegria. A vida cristã é uma celebração. Mas é também uma vida de heroísmo. A vida das pessoas mundanas pode ter suas alegrias, mas quanta amargura também!

Eu me lembro de um poeta que, quando era jovem, escreveu para um dos seus colegas de classe:

Amigo, é como se meu coração envelhecesse.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Vou à taverna, pedir de novo um vinho Samian que bebemos juntos…
e beberei e ficarei bêbado.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Ao redor estará o maravilhoso e largo horizonte,
Mas meu canto será como pranto.
Pois não conterá o céu azul
Que dá beleza à vida.
Nossos olhos estarão úmidos, e teremos
O Hades no coração.[6]

Os olhos dele estarão cheios de lágrimas, e no coração — pobre poeta! — ele terá o Hades. Mas nós, cristãos, temos o céu.

A uma vida de martírio é uma vida feliz, mas também heróica. Era uma vez uma criança que viveu durante a época das perseguições. Ela era feliz. Sua vida era como uma música. Então um dia seu pai pagão lhe perguntou:

“Filho, qual é o melhor presente que eu posso lhe dar?”.

“O melhor presente? Pai, eu sou cristão! O melhor presente para mim seria morrer por Cristo.”

“Você é cristão?”, perguntou o pai, assustado.

“Sim; morrer por Cristo seria o melhor presente.”[7]

Os cristãos não são covardes, pois não são amantes da carne. Sabem como viver. Sabem também como morrer por Cristo. É assim que os santos da Igreja viveram a continuam vivendo. Esse espírito de martírio é evidente no ascetismo, que é uma aceitação voluntária da labuta e da dor.  A maioria dos ascetas, tendo amado Cristo desde a juventude, procuraram sacrificar a si próprios e dar a vida a Deus, por Quem suas almas ansiavam. Muitas vezes se encerravam em cavernas, sem comer ou beber. Saíam desses lugares raras vezes, apenas para ir à igreja e, depois disso, para se alimentarem um pouco. Os santos Basílio, o Grande, e Gregório, o Teólogo, por exemplo, viveram em um eremitério pequeno e remoto que não era freqüentado por ninguém, exceto por algum eventual caçador. Viveram em privações, com sede, sem comida, em umidade, sem luz, até terem ficado praticamente paralisados. Depois disso foram tirados de lá pela mãe de Basílio.[8]

Outros dormiam por apenas algumas poucas horas. Durante a maior parte da vida, S. João Crisóstomo dormiu apenas três horas por dia, e de pé, sustentado por uma corda. [9] Outros, como o imperador Teodósio II, que se tornou um santo, usavam cilício debaixo das vestes, para castigar e subjugar o corpo.[10] Outros usavam correntes ao redor do corpo. Outros… quantos deveriam ser mencionados?

Hoje, essas coisas parecem ser simplesmente lendas ou interpretações erradas do espírito do Evangelho. Mas vocês não acham que elas testemunham um heroísmo óbvio, uma grandeza invejável, uma profundidade oculta, uma estatura inconcebível? Por meio dessas coisas, os santos transcenderem a natureza, venceram as paixões, eliminaram impulsos pecaminosos, pisaram o diabo, adquiriram um amor ardente, ganharam liberdade interior e, pelo estilo de vida angélico, tornaram-se luzes brilhantes para toda a humanidade e para todas as gerações.[11]

Essas são as coisas que foram feitas por esses santos, que tinham tais corações magníficos. Mas e quanto a nós? O que precisamos fazer para ter um espírito de martírio assim? Onde, em quais aspectos da nossa vida, devemos manifestar o nosso heroísmo? Em primeiro lugar, quando nos confrontamos com as tristezas da vida, com a dor, com os obstáculos, com as falhas e com todas as tempestades da vida. A vida é cheia de dor e de tristeza. Elas estão em toda parte. E todos nós enfrentamos momentos difíceis, quando somos tentados a dizer que Deus é o culpado, ou que Ele se esqueceu de mim e — quem sabe? — talvez não haja Deus; mas, se Deus existe, Ele é cruel. Por que Ele me atormenta assim, enquanto os incrédulos se alegram? E por aí vai. Mas, nesses momentos difíceis, digamos: “Gória a Ti, ó Deus”. Com essas palavras, você mostra que é um mártir por Cristo, que aceita com alegria a dor que enfrenta.

Em segundo lugar, você mostra heroísmo quando entende que a vida cristã exige uma luta, e que grandes sacrifícios são necessários para eliminar os impulsos das paixões, as fraquezas e os pecados. É preciso muita labuta para eliminar o pecado.

Quando começamos a nossa vida cristã, estávamos cheios de entusiasmo. Sem ele, teríamos sido como uma máquina sem vapor, ou um relógio parado, e no fim não teríamos chegado a lugar nenhum. Mas tivemos o nosso entusiamo, tivemos o nosso pai espiritual, tivemos os escritos dos Padres, fomos ajudados pela graça de Deus e, assim, progredimos um pouco. Mas lentamente, pouco a pouco, as dificuldades apareceram: os fracassos, as concessões, os pecados, as tentações, os pensamentos de parar, de voltar atrás. A nossa vida, que até então havia sido como um cântico alegre, tornou-se uma cruz. Mas é aí, caro amigo, que começa o seu martírio. Quando a sua vida cristã começa a ficar difícil, quando ela parece uma cruz insuportável, é aí que você deve permanecer firme como uma rocha. É aí que você é um mártir. Diga para si mesmo: “Fiquemos de pé com reverência”.[12] Levante-se com rapidez e firmeza e sem se mover. Diga, como o profeta: “Eis-me aqui, ó Senhor, levanto-me disposto a fazer a Tua vontade” (Is 6:8). Seja como a Theotokos, que disse: “Eis aqui a serva do Senhor; aconteça em mim segundo a Tua vontade” (Lc 1:38). Se você suportar, a tempestade passará e você emergirá na calmaria; a sua vida se tornará de novo uma celebração, um dia de festa. Mas agora você terá a experiência do combate espiritual, você terá ganhado experiência. Depois dessa provação, depois de ter tomado a sua cruz, as chamas do amor divino serão acesas no seu interior e você ganhará o amor mais belo, mais poderoso, mais puro, mais angélico: o amor de Deus.

Em terceiro lugar, seja um mártir na luta contra suas dúvidas, suas hesitações, sua imaginação e seus pensamentos pecaminosos. Enquanto está aí sentado, pode ser que um pensamento entre na sua cabeça: “E se Deus não existir? E se for tudo uma mentira, tão vazia quanto o ar? E se não existir essa coisa de alma? E se o Cristianismo estiver errado? E se eu for um idiota?”. Nessas situações, tome a cruz das dúvidas e dos pensamentos. Uma pessoa que tinha dúvidas acerca de Deus, mas que nunca desistiu de lutar pela fé, disse: “Meus Deus, se Tu existes, envia-me o Teu Espírito Santo!” E Deus respondeu e enviou a ela o Espírito Santo. Ele abriu o coração dela, e depois a chamou para o posto de Bispo.

Em quarto lugar, mostre o seu espírito de mártir na arena diária da sua vida, no seu lar, com o seu marido, com a sua mulher. Quando seu marido chegar em casa cansado do trabalho e falar com você com falta de educação, não fique com raiva. Se ele gritar com você, não retruque. Mostre a ele amor, tolerância, paciência. Se a sua mulher queimou a comida, não grite com ela; coma a comida. Coloque um pouco de suco de limão na comida para deixá-la gostosa e diga para a sua esposa que está boa. Deixe o amor reinar na sua casa. Quando vir que o seu cônjuge foi injusto com você, não comece a gritar dizendo o quanto você está com a razão. Não importa se você está ou não com a razão. Não importa o que é o certo, mas o que a outra pessoa quer. Saia desse caminho. Negue-se. Coloque a outra pessoa em primeiro lugar. Isso é morte, isso é martírio.

Uma vez, quando eu estava com pressa para vir do mosteiro até aqui falar com vocês, peguei um táxi para não chegar atrasado. No caminho, perguntei ao motorista:

“Me diga, pelo menos às vezes você almoça ou janta com a sua mulher?”

Vocês sabem que tipo de trabalho esses motoristas têm, e como quase nunca eles sabem quando voltarão para casa.

“Todos os dias”, ele me disse, “eu almoço e janto”.

“Como você consegue? A que horas vocês comem?”

“O almoço começa às 10:00 da manhã e vai até 4:00 da tarde, e o jantar é das 6:00 da tarde às 2:00 da manhã”.

Estão entendendo? Às 10:00 da manhã a esposa dele já tinha a refeição pronta e aguardava ele chegar, não importa que horas fosse, para que pudessem comer juntos. E à tarde ela o aguardava desde 18:00, muitas vezes até 2:00 da manhã. Não é impressionante? É isso que martírio em vida significa: uma vida de amor.

Em quinto lugar, nas nossas interações sociais também devemos ser pessoas que negamos a nós mesmos. Devemos nos doar aos outros, e não sermos como o homem que disse: “Vivo para mim mesmo, penso em mim mesmo; para mim mesmo, e para ninguém mais” — como se Cristo nunca tivesse vivido, como se nunca tivesse morrido!

Ah, meus caros amigos, todas as pessoas à sua volta, tanto em casa quanto fora de casa, precisam de vocês. Há uma maldição terrível na nossa vida que aflige muitas pessoas: a maldição da solidão. Vocês se lembram daquela mulher que se matou aos setenta anos de idade porque, disse ela, nunca tinha havido ninguém na vida dela que a tivesse amado. Muitas pessoas vivem fechadas em sua solidão, e muitas vezes não há ninguém para mostrar um pouco de amor a elas.

Um escritor escreveu uma vez a respeito de um jovem num escritório que nunca havia tido ninguém próximo a ele que se interessasse por ele, e mostrasse um pouco de amor a ele, para que ele pudesse abrir o coração. Começou a nevar. Ele foi até a janela e olhou para a neve, para aliviar um pouco o seu coração pesado. Mas isso não aliviou. À noite, fechou o escritório, saiu e se encostou numa porta para descansar um pouco. Era de noite e o coração dele estava pesado, arrasado. Não havia ninguém naquele dia para mostrar a ele um pouco de amor. Mas naquela hora houve alguém! Era um homem com um cachimbo na boca, uma bengala na mão e um chapéu Fedora na cabeça. Um boneco de neve! Ele não havia encontrado outra alma para conversar, então abriu o coração para ele!

Todas as pessoas à nossa volta, pobres e ricas, pequenas e grandes, precisam se nós. Que a nossa vida seja marcada pelo amor, carinho, ternura e compaixão. Que vivamos próximos aos outros e para os outros. Como um dos ascetas diz, “o nosso alicerce é o nosso próximo”,[13] o que significa que a condição para a nossa vida espiritual está nas pessoas à nossa volta. Devemos amar os outros, não por alguma suposta “bondade”, mas por um senso de responsabilidade que temos para com eles.

Em sexto e último lugar, estejamos prontos, se necessário, para derramar o nosso sangue por Cristo e pelos nossos semelhantes. Estejamos prontos para nos sacrificarmos. No mínimo, devemos nos negar algo, dar algo por eles. Devemos sofrer, devemos abraçar o sofrimento por Cristo. Sem isso, nossa vida será uma vida incompleta.

Chegamos agora ao terceiro e último aspecto da vida espiritual, que é buscar Cristo. Eu me pergunto: o fogo foi aceso dentro de nós? Embora tenhamos sido batizados e escolhido Cristo; embora tenhamos começado a nossa vida espiritual, será que continuamos todavia a ser carnais, e assim abandonamos o nosso futuro a um jogo de azar? A vida espiritual deve ser marcada pela intensidade da busca por Cristo. Devemos pensar constantemente n’Ele e buscá-Lo, e então conheceremos a alegria. Como diz o Salmista, “Lembrei-me do Senhor e me alegrei” (Sl 76:4). “Buscai-Me e achar-Me-eis”, diz o Senhor (Mt 7:7; Lc 11:9). Se O buscarmos, O encontraremos, e nossa vida será cheia de alegria.

Muitas coisas na nossa vida escondem Cristo da nossa vista, e ficamos distraídos e absortos em muitas preocupações e, com isso, não somos capazes de tê-Lo sempre diante de nós. E mesmo as melhores coisas da vida podem se tornar obstáculos: seu emprego, seu lar, seus filhos, seu marido, sua mulher — tudo. As circunstâncias são difíceis, mas a vida espiritual é uma batalha na qual nunca devemos tirar nossos olhos de Deus. Precisamos estar sempre em busca do nosso líder.

Eu me lembro de uma vez em que havia ido à Santa Montanha e, num lugar com muitas árvores plantadas, vi à distância um asceta que entoava um cântico enquanto andava por um caminho. E de tempos em tempos, enquanto cantava, ele parava, se curvava, fazia uma prostração e então continuava pelo caminho. Quem, eu me perguntava, ele estava adorando? Corri por entre as árvores, fui até ele e o parei.

“Ancião, quem o senhor está adorando pelo caminho?”

“Mas, filho, você não está vendo Ele?”

“Quem?”

“Cristo. Se você não O vê, certamente consegue ao menos sentir que Ele está de pé na sua frente?”

Meus caros amigos, havia um tempo em que os olhos das pessoas se enchiam de lágrimas e os seus corações se incendiavam sempre que pronunciavam ou ouviam o Nome de Cristo. Caíam de joelhos. E por que, meu Deus, por que nós pensamos tão pouco em Ti; por que somos tão pouco movidos por Ti? Por que sentimos algum desejo por Ti tão raramente? Porque “onde o nosso tesouro está, aí estará o nosso coração” (Mt 6:21; Lc 12:34). Quer saber o quanto a sua vida custa, o quanto ela vale? Ela tem o mesmo valor da sua sede por Cristo; o quanto o seu coração pertence a Cristo, é o que ela vale.

Lembre-se, então, de que você fez um voto, uma promessa de permanecer fiel a Cristo até o fim da vida (cf. Ap 2:10). Nisso, você é como aquele filho do rei, que fez um voto sobre o Evangelho de permanecer leal ao pai até o dia em que morresse. Passaram-se muitos anos, a criança cresceu. Um dia, inimigos vieram, prenderam o rei e o aprisionaram numa terra distante. O filho permaneceu em liberdade. Se quisesse, poderia ter se tornado rei; mas não conseguia esquecer o voto que havia feito ao pai. “Fiz um voto”, disse, “e devo permanecer fiel a ele”. E um dia, quando ainda era noite, pegou o seu cavalo e passou pelo território do inimigo para encontrar o pai, para mostrar a ele que ainda permanecia fiel ao voto. Ao longo do caminho, enquanto passava por uma estalagem, cometeu um lapso e caiu do cavalo, bateu a cabeça e perdeu a consciência. Ao ouvir o barulho, as pessoas saíram, levantaram-no, ainda inconsciente, e o abrigaram. Assim que se recuperou, pediu um pouco de água e, tendo atado a cabeça com uma toalha, apressou-se para sair. “Espere”, disseram a ele, “aonde está indo”? A sua cabeça está sangrando, é perigoso. Mas o filho do rei não podia esperar. Ele havia feito um voto e tinha de honrá-lo. Montou num cavalo novo — o dele havia sido morto —, insistiu com o cavalo e saiu. Galopava pela estrada. O sangue escorria. Correu até o pai. Coberto de sangue e todo dolorido. Mas ele gritava: “Fiz um voto e pertenço ao meu pai”. Permanecerei fiel até a morte.

Permaneçamos fiéis até a morte!