Considerações sobre a Reforma Litúrgica - Roberto de Mattei
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Apresentamos a intervenção do Professor Roberto de Mattei por ocasião do Congresso
Litúrgico realizado no mosteiro beneditino de Notre Dame em Fontgombault, França, 22-
24 de julho de 2001. Com tema principal “Cristo é o sujeito da liturgia, não a
comunidade”, o congresso reuniu bispos e autoridades eclesiásticas, tendo como seu
principal conferencista o então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal
Joseph Ratzinger. Dentre os participantes do mundo “tradicionalista” podemos destacar
Dom Gérard Calvet, abade de Le Barroux; Mons. Camille Perl, da Comissão Ecclesia
Dei; e Padre Arnoud Devillers, então superior da Fraternidade São Pedro.
Roberto de Mattei, historiador italiano renomado, professor de História do Cristianismo
na Universidade Européia de Roma, é autor de várias obras, com destaque para sua
biografia do Beato Pio IX e seu último livro “La liturgia della chiesa nell’epoca della
secolarizzazione”. Também discursou no congresso realizado em Roma, sob patrocínio da
Comissão Ecclesia Dei, por ocasião do primeiro aniversário do motu proprio Summorum
Pontificum; na oportunidade, Prof. De Mattei teve seu artigo "Il rito romano antico e la
secolarizzazione" publicado no L’Osservatore Romano.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A REFORMA LITÚRGICA
por Roberto de Mattei
Tradução de Marcelo de Souza e Silva
Fonte: Revue Item
Eminência,
Reverendíssimos Padres Abades,
Reverendos Padres,
Minha intervenção como vós bem podeis imaginar, não será a de um liturgista
nem de um teólogo, mas a de um homem de cultura, de um historiador, de um católico
leigo que tenta situar os problemas da Igreja no horizonte de seu próprio tempo.
Nesta perspectiva, eu me proponho a desenvolver certas considerações sobre as
raízes históricas e culturais da Reforma litúrgica pós-conciliar. Com efeito, eu estou
convencido de que quanto mais este quadro for esclarecido, mais a compreensão e a
solução de problemas complexos que temos diante de nós serão facilitadas.
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Todo problema, e o da liturgia não é exceção, para ser tomado em sua essência,
deve ser efetivamente situado num contexto mais vasto. Aquele que quereria estudar a
arquitetura gótica, por exemplo, não poderia negligenciar sua relação com a Escolástica
medieval tão bem ilustrada por Erwin Panofski, assim como para se compreender a arte
figurativa dos séculos XIX e XX, seria necessário recorrer aos estudos de Hans Sedlmayr,
que dela retém a dimensão ideológica profunda. Assim, um discurso sobre a arte deve ir
além da arte, um julgamento técnico-estético não basta; assim também, um discurso sobre
a liturgia deve ir além da própria liturgia, tentando encontrar o sentido derradeiro dela
mesma. Porque a liturgia não é somente o conjunto de leis que regulamentam os ritos.
Estes ritos, em sua variedade, remetem à unidade de uma fé. Sem este conteúdo, o culto
cristão seria um ato exterior, vazio, desprovido de valor, uma ação não sagrada, mas
“mágica”, típica de certas concepções gnósticas ou panteístas do mundo. Neste sentido, foi
bem dito que: “o culto, compreendido em toda sua plenitude e profundidade, vai muito além da
ação litúrgica”.
Em suas fórmulas, em seus ritos, em seus símbolos, deve refletir o dogma. O
dogma, disse-se, é para a liturgia o que a alma é para o corpo, o pensamento para a
palavra. É, pois, necessário tornar íntima e profunda a relação entre a liturgia e a fé, que
foi tradicionalmente expressa na fórmula lex orandi, lex credendi. Neste axioma nós
podemos encontrar uma chave para a leitura da crise atual. O axioma lex orandi, lex
credendi, na teologia do século XIX ao início do século XX, os teólogos modernistas reinterpretaram
segundo as categorias de seu pensamento que, sob a influência das
ideologias então dominantes, nutriam-se de um evolucionismo de matriz simultaneamente
positivista e irracionalista. Georges Tyrell, em particular, considerado por Ernesto
Buonaiuti como a personagem “mais intimamente impregnado de fé e entusiasmo
pela causa modernista”, identificou a revelação com a experiência vital (religious
experience), que se realiza na consciência de cada um. Portanto, é a lex orandi que
deve ditar as normas da lex credendi e não o inverso, visto que “o credo está contido de
modo implícito na prece e deve ser extraído dela a todo custo; e que toda formulação deve
ser posta e explicada pela religião concreta que ela formula”.
Deve-se ainda escrever a história do modernismo após sua condenação; mas é
certo que várias dessas instâncias penetraram no interior do “Movimento Litúrgico”
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a tal ponto que Pio XII se viu constrangido a intervir com sua importante encíclica
Mediator Dei de 20 de novembro de 1947, para retificar desvios. O Papa condenou em
particular “o erro daqueles que pretendiam que a Santa Liturgia fosse quase uma
experiência do dogma”, fundando-se sobre uma leitura errônea do adágio lex orandi, lex
credendi. “Não é assim – afirma Pio XII – que ensina e ordena a Igreja; (...) se nós
queremos distinguir de modo geral e absoluto as relações que existem entre a fé e a
liturgia, pode-se afirmar com razão que a lei da fé deve estabelecer a lei da prece”. Pio
XII reafirma, portanto, a objetividade da fé sobre a liturgia compreendida como
“experiência religiosa” subjetiva, em oposição àqueles que pareciam indicar na “práxis
litúrgica” a nova norma da fé católica.
Após a constituição Sacrossanctum Concilium de 4 de dezembro de 1963, a
Reforma litúrgica, empreendida por Paulo VI em aplicação aos decretos conciliares, à qual
sucedeu a constituição apostólica Missale Romanum de 3 de abril de 1969, pôs novamente
na ordem do dia a relação entre a lex orandi e a lex credendi. Os primeiros e mais influentes
críticos da Reforma litúrgica, foram os Cardeais Ottaviani e Bacci, apresentando a Paulo
VI um Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae, definiram o novo rito como “um
distanciamento impressionante da teologia católica da Santa Missa tal como ela foi
formulada na XXII sessão do Concílio Tridentino”. Cumpre lembrar que esta sessão
definira a Missa como Sacrifício verdadeiramente propiciatório no qual “o próprio Jesus
Cristo está contido e imolado de modo não sangrento”. As críticas dos Cardeais Ottaviani e
Bacci, e de outros autores que seguiram, sublinharam como a nova lex orandi de Paulo VI
não refletiam de modo adequado este ponto da lex credendi tradicional da Igreja. Abriu-se
então uma discussão, ainda não terminada, que levou a casos de consciência e a fraturas no
interior da Igreja.
O Novus Ordo Missae, nascido também para realizar uma forma de
reencontro litúrgico com os não-católicos, terminou por produzir o oposto: uma fase
de desunião litúrgica entre os católicos.
A tese de fundo cuja síntese eu tentarei expor é a seguinte: a relação lex credendilex
orandi, implícita na Reforma litúrgica, deve ser lida à luz da nova teologia que preparou
o Concílio Vaticano II e que, sobretudo, quis orientar os desenvolvimentos dele. A lex
credendi expressa pelo Novus Ordo Missae surge nesse sentido como uma revisão da fé
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católica pela “virada” antropológica e secularista da nova teologia; uma teologia que, urge
sublinhar, não se limita a repropor os temas modernistas, mas os toma por seus como o
marxismo, isto é, segundo um pensamento que se apresenta como uma “filosofia da
práxis” radical e definitivo. Isso significa que um julgamento global da Reforma, sobretudo
trinta anos após, não se pode limitar a uma análise teórica do Novo Rito promulgado por
Paulo VI, mas deve necessariamente se estender à “práxis litúrgica” que seguiu sua
instituição.
A Reforma litúrgica hoje não pode ser considerada estaticamente, nos documentos
que a fundaram, mas deve ser vista em seu aspecto dinâmico, tendo atenção para com a
multiplicidade de elementos que, ainda que não estivessem previstos pelo Novus Ordo, se
tenham tornado uma parte inteira daquilo que poderia ser definido como práxis litúrgica
contemporânea.
A secularização da liturgia da Missa, que é a ação sagrada por excelência,
foi sempre regulada por um rito, isto é, por seu ordo; de acordo com as palavras de Santo
Agostinho: “totum agendi ordinem, quem universa per orbem servat Ecclesia”. Com a
Reforma litúrgica, a essência do Sacramento que permanecia válida e guardava toda sua
eficácia, não mudou, mas se “fabricou”, de acordo com a expressão do Cardeal Ratzinger,
um rito ex novo. O rito, cuja definição clássica remonta a Servio (Mos institutus religiosis
caeremoniis consecratus), não é com efeito a ação sagrada, mas a norma que guia o
desenrolar desta ação. Ele pode ser definido como o conjunto das fórmulas e das normas
práticas que é necessário observar para o cumprimento de uma função litúrgica
determinada, mesmo se por vezes o termo tem um significado mais vasto e designa uma
família de ritos (romano, grego, ambrosiano). É justamente para isso que os sacramentos,
em sua essência, são imutáveis, os ritos podem variar de acordo com os povos e os tempos.
Em teoria, o Novus Ordo de Paulo VI estabeleceu um conjunto de normas e de
preces que regulavam a celebração do Santo Sacrifício da Missa em substituição do antigo
Rito romano; de fato, a práxis litúrgica revelou que nos encontrávamos diante de um novo
rito que pode tomar todas as formas, multiforme. No decurso da Reforma se introduziu
progressivamente toda uma série de novidades e de variantes, certo número dentre
elas não previstas nem pelo Concílio nem pela constituição Missale Romanum de
Paulo VI. O quid novum não saberia estar limitado à substituição do latim pelas línguas
vulgares. Ele consiste igualmente na vontade de conceber o altar como uma “mesa”, para
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sublinhar o aspecto do banquete em lugar do sacrifício; na celebratio versus populum,
substituída à versus Deum, com, por conseqüência, o abandono da celebração voltada para
o Oriente, isto é, voltada para o Cristo simbolizado pelo sol nascente; na ausência de
silêncio e de recolhimento durante a cerimônia e na teatralidade da celebração
acompanhada freqüentemente por cantos que tendem a profanar uma Missa na qual
o sacerdote quase sempre tem o seu papel reduzido para “presidente da assembléia”;
na hipertrofia da liturgia da palavra em relação à liturgia eucarística; no “sinal” da paz que
toma o lugar das genuflexões do sacerdote e dos fiéis, como ação simbólica da passagem
da dimensão vertical para a horizontal da ação litúrgica; na santa comunhão recebida pelos
fiéis de pé e na mão; no acesso das mulheres ao altar; na concelebração tendendo à
“coletivização” do rito. Ele consiste, sobretudo e enfim, na mudança e na substituição das
preces do Ofertório e do Cânon. A eliminação em particular das palavras Mysterium Fidei
da fórmula eucarística, pode ser considerado, como observou o Cardeal Stickler, como o
símbolo da desmistificação e, portanto, da humanização do ponto central da Santa Missa.
O fio condutor dessas inovações pode ser expresso na tese segundo a qual se nós queremos
tornar a fé em Cristo acessível ao homem de hoje, nós devemos viver e apresentar essa fé
dentro do pensamento e mentalidade atuais. A liturgia tradicional, por sua incapacidade de
se adaptar à mentalidade contemporânea, distanciou o homem de Deus e se tornou assim
culpada da perda de Deus em nossa sociedade.
A Reforma se propunha a adaptar o Rito, sem prejudicar a essência do
Sacramento, para permitir à comunidade cristã essa “participação no sagrado” que não
podia ser realizada através da liturgia tradicional. Graças ao princípio da “participatio
actuosa”, a comunidade inteira tornara-se sujeito e portadora da ação litúrgica. “O termo,
aparentemente tão modesto, de ‘participação ativa’, plena e consciente, é índice de um
plano de fundo inesperado”, observou o Padre Angelus Häussling, sublinhando a relação
entre a “participatio actuosa” da Reforma litúrgica e aquela que, na escola de Karl Rahner,
foi chamada de “virada antropológica” (anthropologische Wende) da teologia. Não parece
ser exagero afirmar que a participatio actuosa da comunidade chega a ser o critério último
da Reforma litúrgica na perspectiva de uma secularização radical da liturgia. Tal
secularização comporta a extinção do sacrifício, ação sagrada por excelência, que será
substituída pela ação profana da comunidade que se auto-glorifica, ou, segundo as palavras
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de Urs von Balthasar, visa a responder ao louvor da Graça de Deus com uma “contraglória”
puramente humana. Não é mais o sacerdote, in persona Christi, isto é, o próprio
Deus, que age, mas a comunidade dos fiéis, in persona hominis, para representar as
exigências deste mundo moderno que um discípulo de Rahner definiu “como santo e
santificado em seu profano, isto é, santo sob forma anônima”. A uma “Palavra divina,
sacral e plurissecular”, que tem por conseqüência “uma liturgia sacralizada e separada da
rotina”, opõe-se uma Palavra de Deus que “não é pura revelação, mas também ação: ela
realiza o que ela manifesta”; ela é a “auto-realização absoluta da Igreja”.
A distinção, proposta por Rahner, entre a “secularização”, que deveria ser
positivamente admitida enquanto fenômeno inevitável, e o “secularismo” anti-cristão, que
não seria nada além de uma forma equivocada da secularização, é claramente capciosa. De
fato, a palavra secularização, ainda que tenha uma quantidade de sentidos diferentes, é
comumente compreendida – assim como o secularismo – como um processo de
“mundanização” irreversível da realidade, que é progressivamente privada de todo aspecto
transcendente e metafísico. Com efeito, a secularização se apresenta não somente como
uma aceitação de fato de uma secularização sempre crescente do mundo atual, mas
também como idéia de um processo irreversível e, enquanto irreversível, verdadeiro. A
secularização é “verdadeira”, visto que a verdade é de todo modo imanente à história; o
sagrado é “falso” por sua ilusão de transcender a história e de afirmar uma distinção
qualitativa entre a fé e o mundo, entre transcendente e transcendental. A fé no poder da
história toma assim o lugar da fé na Providência e no poder de Deus. Esta filosofia da
história se funda sobre o mito, próprio do iluminismo, do mundo tornado “adulto” que
deve se libertar dos valores do passado, concernentes à infância da humanidade, para se
chegar a um nível de vida totalmente racional. Tal visão encontrou expressão rigorosa no
pensamento protestante, sobretudo na tese de Bonhoeffer sobre a “maturidade do mundo”
(Mündigkeit der Welt) que fala por si só, uma maturidade que se alcança com a eliminação
do sagrado na vida em todas as dimensões. Esta maturidade foi levada a sua última
coerência pelo marxismo gramsciano que representou o desenvolvimento conseqüente ao
século XX da filosofia das Luzes e o ponto de chegada do secularismo enquanto
imanentismo radical.
A teologia progressista, sobretudo após o Concílio, quis substituir a filosofia
tradicional pela filosofia “moderna”, subordinando-se inevitavelmente ao marxismo. Este
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último representava o progressismo católico da primeira filosofia que conseguira
transportar seu critério de verdade na práxis e que, no sucesso dessa práxis, parecia
demonstrar a verdade de seu pensamento. Notou-se a afinidade entre a visão teológica de
Tyrell, fundada sobre o primado da lex orandi sobre a lex credendi, e o conceito de “autorealização”
da Igreja em sua pastoral e na liturgia de Karl Rahner. Entretanto, as instâncias
do primeiro modernismo foram desenvolvidas pela teologia progressista no cerne de um
horizonte de pensamento que não era mais simplesmente positivista, mas marxista, um
horizonte de pensamento que conclui um processo, julgado necessário, que enterra suas
raízes na Filosofia das Luzes e no Protestantismo e, mais longe ainda, no movimento
intelectual que provocou o fim da sociedade medieval. “A filosofia da práxis – segundo
Gramsci – é o coroamento de todo o movimento de reforma intelectual e moral; (...) ela
corresponde ao laço Reforma protestante + Revolução francesa”. A filosofia da práxis
gramsciana, transcrita teologicamente, conduz à necessidade de uma nova praxis orandi.
A Reforma litúrgica se mostra, pois, como o Verbo da nova teologia que se faz
carne, quer dizer, práxis, “auto-realizando” a Igreja pela nova liturgia secularizada. Nova
liturgia e pós-modernidade; assim que se o pôde observar, viu-se que o problema vai bem
mais além da própria liturgia: ele toca os conceitos do conjunto sobre as relações entre
Igreja e a civilização moderna; ele remete à necessidade de uma teologia da história.
Sobretudo, ele não pode ser resolvido de modo abstrato, mas deve levar em conta o que se
passou na Igreja no decurso dos últimos trinta anos.
Através
A nova
teologia buscou o encontro com o mundo moderno exatamente nas vésperas da queda
desse mundo. Com efeito, em 1989, com o “socialismo real” que fala por si só, todos os
mitos da modernidade e da irreversibilidade da história da história que representavam os
postulados do secularismo e da “virada antropológica”, entraram em colapso. O paradigma
da modernidade foi substituído hoje pelo do “caos”, ou da “complexidade”, cujo
fundamento é a negação do princípio de identidade-causalidade em todos os aspectos do
real.
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Subordinando-se a esse projeto cultural, a nova teologia progressista propõe-se a
“desconstrução” de tudo o que ela “fabricara” no decorrer desses trinta últimos anos,
começando pela Reforma litúrgica que ela considera hoje construída de acordo com um
modelo abstrato e “burocrático”. Assim, ao esquema “monocultural moderno” do novo
Ordo Missae, opõe-se a “inculturação” pós-moderna da liturgia que é abandonada à
“criatividade” das igrejas locais. O distanciamento da liturgia romana é descrito por Anscar
J. Chupungo segundo as fases da “aculturação”, da “inculturação” e da “criatividade
litúrgica”, através de um processo dinâmico que do termo ad quo do Rito romano
tradicional possa fazer suceder como termo ad quem, aos “valores, rituais e tradições”
próprias às igrejas locais. No cerne desse horizonte de “tribalismo litúrgico”, poder-se-ia,
pois, também prever a criação de um “ghetto” tradicionalista reconhecido canonicamente e
considerado como “igreja local” daqueles que querem permanecer “inculturados” no
passado.
Entretanto, esse “multirritualismo” pós-moderno não tem nada a ver com a
pluralidade de ritos reconhecida tradicionalmente pela Igreja no interior de uma mesma
unidade de fé e de uma só lex credendi, da qual os diferentes ritos são expressão.
Hoje a fragmentação dos ritos arrisca desembocar numa parcelização das visões teológicas e
eclesiológicas destinadas a entrar em conflito. O caos litúrgico se apresenta como um
reflexo da desordem institucionalizada que se quis introduzir na Igreja para transformar sua
Constituição divina. Como não partilhar essas palavras do Cardeal Ratzinger?: “O que
anteriormente nós sabíamos apenas teoricamente, tornou-se uma experiência concreta: a Igreja
subsiste e cai com a liturgia. Quando a adoração à Trindade divina desaparece, quando na
liturgia da Igreja a fé não se manifesta mais em sua plenitude, quando as palavras, os
pensamentos, as intenções do homem o sufocam, então a Fé terá perdido seu lugar de expressão
e sua morada. Portanto, é para isso que a celebração da santa Liturgia é o centro de toda a
renovação da Igreja”.
Propostas de solução. Em seguida a estas considerações, podemos deduzir
algumas conclusões práticas que eu me permito expor por espírito de amor à Igreja e à
Verdade.
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1. Do ponto de vista dos católicos fiéis à Tradição, sacerdotes e leigos, a
solução de todo o problema, a curto prazo, deve ser buscada, a meu ver, no interior de duas
“invariáveis”: de um lado é necessário que os fiéis “tradicionais” reconheçam, não
somente em teoria, mas também em todas as suas conseqüências práticas, a plenitude
da jurisdição pertinente a autoridade eclesiástica legítima. Por outro lado, é óbvio que,
a autoridade eclesiástica não pode legitimamente exigir dos sacerdotes e fiéis que façam
positivamente o que quer que seja, que vá contra sua própria consciência. O Cardeal
Ratzinger escreveu páginas bem agudas sobre a inviolabilidade da consciência que tem seu
fundamento no direito de crer e viver como cristãos fiéis. “O direito fundamental do cristão
– escreveu ele – é o direito à fé íntegra”. Poderíamos acrescentar e a uma liturgia íntegra.
Não será difícil deduzir as conseqüências canônicas e morais destes princípios claros.
2. Olhando as coisas não do ponto de vista dos católicos fiéis à Tradição, mas
sub specie Ecclesiae, parece-me que a única via que a autoridade eclesiástica possa
razoavelmente percorrer a meio termo, seja aquela indicada pela fórmula “reforma da
Reforma litúrgica”. Esta via suscita em alguns “tradicionalistas” perplexidade e ceticismo,
pois que a “reforma da Reforma” não constituiria uma “restauração” verdadeira e íntegra
do rito tradicional. Mas é verdadeiro, como sustentam os próprios tradicionalistas, que a
Reforma litúrgica chegou a executar uma verdadeira “Revolução”, no mesmo momento em
que ela afirmava sua continuidade com a Tradição, como negar a uma reforma de espírito
contrário, a possibilidade de chegar, mesmo gradativamente, a um retorno à Tradição?
Por
outro lado, deveria ser claro que a “reforma da Reforma” não teria sentido se ela fosse
“oferecida”, ou melhor, imposta aos “tradicionalistas”, para lhes pedir que abandonassem
um ritual ao qual, por consciência, eles não querem renunciar; ela tem um sentido, ao
contrário, se ela fosse proposta à Igreja universal para retificar, ao menos em parte, os
desvios litúrgicos em curso.
A “reforma da Reforma” tem um sentido enquanto
“transição” no caminho para a Tradição e não enquanto pretexto para abandoná-la.
3. Estas medidas, ainda que necessárias, não podem resolver o problema de
fundo. Em uma fase que alguns poderiam considerar longa demais, mas que, na realidade,
é somente urgente, já que não admite atalhos, é necessário renovar com uma visão
teológica, eclesiológica e social, fundada sobre a dimensão do sagrado, isto é, sobre um
projeto de ressacralização da sociedade, diametralmente oposto ao projeto de secularização
e de descristianização, do qual nós sofremos as conseqüências dramáticas. Isso significa
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que não se pode imaginar uma reforma ou restauração litúrgica fazendo abstração de uma
reforma ou restauração no plano teológico, eclesiológico e cultural. A ação no plano da lex
orandi deverá ser paralela àquela executada no plano da lex credendi para a reconquista dos
princípios fundamentais da teologia católica, a começar por uma teologia exata do Santo
Sacrifício da Missa. Hoje o secularismo está em crise. Todavia, as novas formas de
sagrado, oriundas da religiosidade New Age ou do Islam que prosperam no Ocidente,
eliminam o Sacrifício de Jesus Cristo e, portanto, a idéia de que o homem pode ser
salvo somente pelo Amor gratuito de Deus, por Seu Sacrifício, e que a tal dom, o
homem deve responder abraçando ele também a Cruz redentora.
É necessário assim
se aproximar com amor do mistério sublime da Cruz e da idéia de sacrifício que dela
decorre. O sacrifício, cujo modelo é o mártir e cuja expressão é o combate cristão, é
antes de tudo a renúncia a um bem legítimo em nome de um bem mais elevado. O
sacrifício supõe uma mortificação da inteligência que deve se dobrar à Verdade,
sobre uma linha exatamente contrária àquela da auto-glorificação do pensamento
humano que caracterizou os últimos séculos. Mas como imaginar uma reconquista da
idéia de sacrifício que está no coração da visão católica da história e da sociedade sem que
esta idéia seja antes de tudo vencida? É necessário, parece-me, que a idéia de sacrifício
impregne a sociedade na forma, hoje extremamente abandonada, de espírito de sacrifício e
de penitência. Esta, e não outra, é a “experiência do sagrado” da qual nossa sociedade tem
uma necessidade urgente.
Ao princípio do hedonismo e da auto-celebração do “Eu”,
que constitui o cume do processo revolucionário plurissecular, que ataca a sociedade,
é necessário opor o princípio vencido do sacrifício.
Uma reconquista católica da sociedade é impossível sem espírito de penitência e
de sacrifício, e sem essa reconquista de princípios e de instituições cristãs, é difícil poder
imaginar um retorno à liturgia autêntico e a seu coração: a adoração devida do único e
verdadeiro Deus. O chamado à penitência, sobretudo um exemplo de penitência, podem
valer muito mais que numerosas teorias. É talvez para isso que em Fátima a Santíssima
Virgem indica o caminho da penitência como sendo o único pelo qual o mundo
contemporâneo se poderia salvar. O triplo chamado do Anjo à penitência, no Terceiro
segredo de Fátima, é um manifesto da doutrina e da vida que nos indica a via para toda a
restauração, mesmo a litúrgica.
fonte:fratres in unum