quinta-feira, 24 de abril de 2014

VENERÁVEL PAPA PIO XII : O CORPO MÍSTICO DE JESUS CRISTO E NOSSA UNIÃO NELE COM CRISTO

Mystici Corporis Christi (29 de Junho de 1943)
[Alemão, Francês, Inglês, Italiano, Latim,Português]
CARTA ENCÍCLICA
MYSTICI CORPORIS

DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XII

AOS VENERÁVEIS IRMÃOS
PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS
E OUTROS ORDINÁRIOS DO LUGAR
EM PAZ E COMUNHÃO
COM A SÉ APOSTÓLICA

O CORPO MÍSTICO DE JESUS CRISTO
E NOSSA UNIÃO NELE COM CRISTO


INTRODUÇÃO

1. A doutrina do Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja (cf. Cl 1, 24), recebida dos lábios do próprio Redentor e que põe na devida luz o grande e nunca assaz celebrado benefício da nossa íntima união com tão excelsa Cabeça, é de sua natureza tão grandiosa e sublime que convida à contemplação todos aqueles a quem move o Espírito de Deus; e, iluminando as suas inteligências, incita-os eficazmente a obras salutares, consentâneas com a mesma doutrina. Por isso resolvemos entreter-nos convosco sobre tão relevante assunto, expondo e explicando principalmente a parte relativa à Igreja militante. Move-nos a fazê-lo não só a excepcional importância da doutrina, mas também as circunstâncias atuais da humanidade.

Propomo-nos, pois, falar das riquezas entesouradas no seio da Igreja que Cristo adquiriu com seu sangue (At 20, 28) e cujos membros se gloriam de uma Cabeça coroada de espinhos. Isto mesmo já é prova evidente de que a verdadeira glória e grandeza não nascem senãu da dor; por isso nós quando compartilhamos dos sofrimentos de Cristo, devemos alegrar-nos, para que também na renovação da sua glória jubilemos e exultemos (cf. 1 Pd 4, 13).

3, E para começar, note-se que assim como o Redentor do gênero humano foi perseguido, caluniado, atormentado por aqueles mesmos que vinha salvar, assim a sociedade por ele fundada também neste ponto se parece com o divino Fundador. Com efeito, ainda que não neguemos, antes gostosamente e bendizendo a Deus confessemos, que também nestes tempos tão agitados há muitos que, embora separados do redil de Cristo, olham para a Igreja como para o único porto de salvação, contudo não ignoramos que a Igreja de Deus não só é soberbamente desprezada e perseguida por aqueles que, menoscabada a luz da sabedoria cristã, voltam miseramente às doutrinas, usos e costumes do antigo paganismo, mas freqüentemente é desconhecida, descurada, aborrecida por muitos cristãos, que se deixam seduzir pelas aparências, falsas doutrinas, ou arrastar pelos atrativos e corrupção do mundo. É por isso que Nós, veneráveis irmãos, obedecendo à voz da nossa própria consciência, vamos expor à vista de todos e celebrar a beleza, louvores e glória da santa madre Igreja, a quem depois de Deus tudo devemos.

4. Confiamos que estes nossos pensamentos e exortações, em conseqüência das atuais circunstâncias, produzirão os mais copiosos frutos nos fiéis; porquanto sabemos que os infinitos trabalhos e sofrimentos desta nossa tempestuosa idade que tão terrivelmente torturam gente sem número, se forem recebidos serena e resignadamente da mão de Deus, converterão como que naturalmente os corações dos bens caducos da terra aos bens celestes e eternos, e despertarão neles uma sede misteriosa das coisas espirituais e um desejo ardente que, sob o impulso do Espírito Santo, os mova e quase force a procurar com mais diligência o reino de Deus. O homem, quanto mais se desprende das vaidades do mundo e do amor desordenado dos bens presentes, tanto mais se dispõe para perceber a luz dos mistérios celestes. Ora, talvez nunca a vaidade e inanidade das coisas da terra se manifestou mais eloqüentemente que hoje, quando desabam reinos e nações, quando os abismos dos vastos oceanos engolem imensas riquezas e tesouros de toda a espécie, quando cidades e vilas e férteis campos se cobrem de imensas ruínas e se mancham de sangue fraterno.

5. Confiamos ainda que o que vamos expor sobre o Corpo Místico de Cristo não será desagradável nem inútil aos que vivem fora do seio da Igreja católica. E isto, não só porque a sua benevolência para com a Igreja parece aumentar de dia para dia, senão também porque vendo eles atualmente como as nações se erguem contra as nações e os reinos contra os reinos, e crescem indefinidamente as discórdias, os antagonismos e as sementeiras do ódio, se volverem os olhos para a Igreja, se contemplarem a sua unidade de origem divina, por virtude da qual os homens de todas as nacionalidades se unem a Cristo com vínculos fraternos, então sem dúvida ver-se-ão forçados a admirar uma tal sociedade de amor e sentir-se-ão atraídos com o auxílio da graça a participar da mesma unidade e caridade.

6. Há ainda uma razão especial e suavíssima pela qual nos ocorreu ao espírito e grandemente nos deleita esta doutrina. Durante o passado ano, XXV do nosso episcopado, pudemos com grandíssima consolação contemplar um espetáculo que luminosa e expressivamente fez resplandecer a imagem do corpo místico de Cristo em todas as cinco partes do mundo. Nesse sentido, apesar dessa interminável guerra de extermínio ter destruído miseramente a fraterna comunidade dos povos, por toda parte, onde temos filhos em Cristo, todos com uma só vontade e amor - refletindo em si as preocupações e ansiedades de todos -, elevavam o pensamento e o coração para o Pai comum, que governa em tempos tão adversos a nau da Igreja católica. Esse espetáculo não só demonstra a admirável unidade da família cristã, mas atesta também que assim como nós com amor paterno abraçamos os povos de todas as nações, assim também os católicos de todo o mundo, embora pertencentes a povos que se guerreiam mutuamente, olham para o vigário de Cristo como para o pai amantíssimo de todos que, mantendo perfeito equilíbrio entre ambas as partes contendentes e guiando-se por perfeita retidão de juízo, superior a todas as tempestades das perturbações humanas, recomenda e defende com todas as forças a verdade, a justiça, a caridade.

7. Também não foi menor a nossa consolação ao sabermos a boa vontade com que espontaneamente fora oferecida e reunida uma quantia para levantar na Cidade eterna um templo em honra do nosso predecessor e santo do nosso nome, Eugênio I. Ora como esse templo, levantado por desejo e com o óbolo dos fiéis, conservará perene a memória deste faustíssimo acontecimento, assim desejamos dar um atestado da nossa gratidão nesta encíclica onde precisamente se trata das pedras vivas que, colocadas sobre a pedra angular que é Cristo, formam o templo santo, muito mais sublime que qualquer templo material, isto é, a morada de Deus no Espírito (Cf. Ef 2, 21-22;1 Pd 2, 5).

8. Mas a causa principal que nos leva a tratar agora assaz difusamente desta excelsa doutrina é a nossa solicitude pastoral. É verdade que muito se tem escrito sobre este argumento; nem ignoramos que hoje não poucos se dão com grande empenho a estes estudos, com os quais também se deleita e nutre a piedade cristã. Este movimento parece dever-se ao renovado estudo da sagrada liturgia, a maior freqüência da mesa eucarística, e finalmente ao culto mais intensificado do sacratíssimo Coração de Jesus de que hoje gozamos por vê-lo mais difundido; tudo isso moveu muitos a uma mais profunda contemplação das imperscrutáveis riquezas de Cristo que se conservam na Igreja. Acrescem ainda os documentos sobre a Ação católica publicados nestes últimos tempos; os quais tornaram mais estreitos os vínculos dos fiéis entre si e com a hierarquia eclesiástica, particularmente com o romano pontífice, e contribuíram sem dúvida grandemente para pôr na devida luz esta doutrina. Todavia se isso que acabamos de dizer é muito consolador, temos de confessar que não só autores separados da verdadeira Igreja espalham graves erros nesta matéria, mas que também entre os fiéis vão serpejando opiniões ou inexatas ou de todo falsas, que podem desviar os espíritos da reta senda da verdade.

9. De fato, enquanto por um lado perdura o falso racionalismo que tem por absurdo tudo o que transcende e supera a capacidade da razão humana, e com ele outro erro parecido, o naturalismo vulgar que não vê nem quer reconhecer na Igreja de Cristo senão uma sociedade puramente jurídica; por outro lado grassa por aí um falso misticismo que perverte as Sagradas Escrituras, pretendendo remover os limites intangíveis entre as criaturas e o Criador.

10. Ora esses erros entre si opostos fazem que alguns, cheios de infundado temor, considerem esta sublime doutrina como perigosa e fujam dela como do fruto do paraíso, belo e proibido. Não; os mistérios revelados por Deus não podem ser prejudiciais ao homem, nem devem permanecer infrutíferos como tesouro enterrado no campo; senão que nos foram dados por Deus, para proveito espiritual dos que piamente os contemplam. Pois como ensina o Concílio Vaticano "a razão iluminada pela fé, quando indaga com diligência, piedade e sobriedade, alcança sempre por graça de Deus alguma inteligência, sempre frutuosíssima, dos mistérios, quer pela analogia com os conhecimentos naturais, quer pela relação que os mistérios têm entre si e com o último fim do homem"; embora, como adverte o mesmo sagrado concílio, "nunca ela chegue a compreender os mistérios como as verdades que constituem o seu próprio objeto".(1)

11. Portanto, tendo nós maduramente ponderado tudo isso diante de Deus, para que a incomparável formosura da Igreja resplandeça com nova glória, para que mais esplendidamente se manifeste a excelsa e sobrenatural nobreza dos fiéis que no corpo de Cristo se unem à sua cabeça: enfim para fechar de uma vez a porta a muitos erros que pode haver nesta matéria, julgamos nosso dever pastoral expor a todo o povo cristão nesta encíclica a doutrina do corpo místico de Jesus Cristo e da união dos fiéis com o divino Redentor no mesmo Corpo, e juntamente deduzir desta suavíssima doutrina alguns ensinamentos, com os quais o maior conhecimento do mistério produza frutos cada vez mais abundantes de perfeição e santidade.


PRIMEIRA PARTE

A IGREJA CORPO, "MÍSTICO" DE CRISTO

12. Ao meditar este ponto da doutrina católica ocorrem-nos logo aquelas palavras do Apóstolo: "Onde o pecado avultou, superabundou a graça" (Rm 5, 20). Sabemos que Deus constituiu o primeiro progenitor do gênero humano em tão excelsa condição, que com a vida terrena transmitiria aos seus descendentes a vida sobrenatural da graça celeste. Mas depois da triste queda de Adão toda a humana linhagem, infeccionada pela mancha original, perdeu o consórcio da natureza divina (cf. 2Pd 1, 4) e todos ficamos sendo filhos de ira (Ef 2, 3). Deus, porém, na sua infinita misericórdia "amou tanto ao mundo que lhe deu seu Filho unigênito" (Jo 3, 16); e o Verbo do Eterno Pai, com a mesma divina caridade, revestiu a natureza humana da descendência de Adão, mas inocente e imaculada, para que do novo e celeste Adão dimanasse a graça do Espírito Santo a todos os filhos do primeiro pai; e estes que pelo primeiro pecado tinham sido privados da filiação adotiva de Deus, pelo Verbo encarnado, feitos irmãos segundo a carne do Filho unigênito de Deus, recebessem o poder de virem a ser filhos de Deus (cf. Jo 1, 12). E assim Jesus crucificado não só reparou a justiça do Eterno Pai ofendida, senão que nos mereceu a nós, seus consangüíneos, inefável abundância de graças. Essas graças podia ele distribuí-las diretamente por si mesmo a todo o gênero humano. Quis, porém, comunicá-las por meio da Igreja visível, formada por homens, afim de que por meio dela todos fossem, em certo modo, seus colaboradores na distribuição dos divinos frutos da Redenção. E assim como o Verbo de Deus, para remir os homens com suas dores e tormentos, quis servir-se da nossa natureza, assim, de modo semelhante, no decurso dos séculos se serve da Igreja para continuar perenemente a obra começada. (2)

13. Ora, para definir e descrever esta verdadeira Igreja de Cristo - que é a santa, católica, apostólica Igreja romana (3) - nada há mais nobre, nem mais excelente, nem mais divino do que o conceito expresso na denominação "corpo místico de Jesus Cristo"; conceito que imediatamente resulta de quanto nas Sagradas Escrituras e dos santos Padres freqüentemente se ensina.

1. A Igreja é um "corpo"

Corpo único, indiviso, visível

14. Que a Igreja é um corpo, ensinam-nos muitos passos da sagrada Escritura: "Cristo, diz o Apóstolo, é a cabeça do corpo da Igreja" (Cl 1, 18). Ora, se a Igreja é um corpo, deve necessariamente ser um todo sem divisão, segundo aquela sentença de Paulo: "Nós, muitos, somos um só corpo em Cristo" (Rm 12, 5). E não só deve ser um todo sem divisão, mas também algo concreto e visível, como afirma nosso predecessor de feliz memória Leão XIII, na encíclica "Satis cognitum": "Pelo fato mesmo que é um corpo, a Igreja torna-se visível aos olhos". (4) Estão pois longe da verdade revelada os que imaginam a Igreja por forma, que não se pode tocar nem ver, mas é apenas, como dizem, uma coisa "pneumática" que une entre si com vínculo invisível muitas comunidades cristãs, embora separadas na fé.

15. O corpo requer também multiplicidade de membros, que unidos entre si se auxiliem mutuamente. E como no nosso corpo mortal, quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele, e os sãos ajudam os doentes; assim também na Igreja os membros não vivem cada um para si, mas socorrem-se e auxiliam-se uns aos outros, tanto para mútua consolação, como para o crescimento progressivo de todo o Corpo.

Corpo composto "orgânica" e "hierarquicamente"

16. Mais ainda. Como na natureza não basta qualquer aglomerado de membros para formar um corpo, mas é preciso que seja dotado de órgãos ou membros com funções distintas e que estejam unidos em determinada ordem, assim também a Igreja deve chamar-se corpo sobretudo porque resulta de uma boa e apropriada proporção e conjunção de partes e é dotada de membros diversos e unidos entre si. É assim que o Apóstolo descreve a Igreja quando diz: "como num só corpo temos muitos membros, e os membros não têm todos a mesma função, assim muitos somos um só corpo de Cristo, e todos e cada um membros uns dos outros" (Rm 12, 4).

17. Não se julgue, porém, que esta bem ordenada e "orgânica" estrutura do corpo da Igreja se limita unicamente aos graus da hierarquia; ou, ao contrário, como pretende outra opinião, consta unicamente de carismáticos, isto é, dos féis enriquecidos de graus extraordinárias, que nunca hão de faltar na Igreja. E fora de dúvida que todos os que neste corpo estão investidos de poder sagrado, são membros primários e principais, já que são eles que, por instituição do próprio Redentor, perpetuam os ofícios de Cristo doutor, rei e sacerdote. Contudo os santos Padres, quando celebram os ministérios, graus, profissões, estados, ordens, deveres deste corpo místico, não consideram só os que têm ordens sacras, senão também todos aqueles que, observando os conselhos evangélicos, se dão à vida ativa, à contemplativa, ou à mista, segundo o próprio instituto; bem como os que, vivendo no século, se consagram ativamente a obras de misericórdia espirituais ou corporais; e, finalmente, também os que vivem unidos pelo santo matrimônio. Antes é de notar que, sobretudo nas atuais circunstâncias, os pais e as mães de família, os padrinhos e madrinhas, e notadamente todos os seculares que prestam o seu auxílio à hierarquia eclesiástica na dilatação do reino de Cristo, ocupam um posto honorífico, embora muitas vezes humilde, na sociedade cristã, e podem muito bem sob a inspiração e com o favor de Deus subir aos vértices da santidade, que por promessa de Jesus Cristo nunca faltará na Igreja.

Corpo dotado de órgãos vitais, isto é, sacramentos

18. E como o corpo humano nos aparece dotado de energias especiais com que provê à vida, saúde e crescimento seu e de todos os seus membros, assim o Salvador do gênero humano providenciou admiravelmente ao seu corpo místico enriquecendo-o de sacramentos, que com uma série ininterrupta de graças amparam o homem desde o berço até ao último suspiro, e ao mesmo tempo provêem abundantissimamente às necessidades sociais da Igreja. Com efeito, pelo Batismo os que nasceram a esta vida mortal, não só renascem da morte do pecado e são feitos membros da Igreja, senão que, assinalados com o caráter espiritual, se tornam capazes de receber os outros dons sagrados. Com a Crisma infunde-se nova força nos féis para conservarem e defenderem corajosamente a santa madre Igreja e a fé que dela receberam. Pelo sacramento da Penitência oferece-se aos membros da Igreja caídos em pecado uma medicina salutar, que serve não só a restituir-lhes a saúde, mas a preservar os outros membros do corpo místico do perigo de contágio, e até a dar-lhes estímulo e exemplo de virtude. E não basta. Pela sagrada Eucaristia alimentam-se e fortificam-se os fiéis com um mesmo alimento e se unem entre si e a divina Cabeça de todo o Corpo com um vínculo inefável e divino. Finalmente ao leito dos moribundos acode a Igreja, mãe compassiva, e com o sacramento da Extrema-unção, se nem sempre lhes dá a saúde do corpo, por Deus assim o dispor, dá-lhes às almas feridas a medicina sobrenatural, abre-lhes o céu, onde como novos cidadãos e seus novos protetores gozarão por toda a eternidade da divina bem-aventurança.

19. As necessidades sociais da Igreja proveu Cristo de modo especial com dois sacramentos que instituiu: com o Matrimônio em que os cônjuges são reciprocamente um ao outro ministros da graça, proveu ao aumento externo e bem ordenado da sociedade cristã; e, o que é ainda mais importante, à boa e religiosa educação da prole, sem a qual o corpo místico correria perigo; com a Ordem dedicam-se e consagram-se ao serviço de Deus os que hão de imolar a Hóstia eucarística, sustentar a grei dos féis com o Pão dos Anjos e com o alimento da doutrina, dirigi-la com os divinos mandamentos e conselhos e purificá-la com o batismo e a penitência, enfim fortalecê-la com as outras graças celestes.

Corpo formado por membros determinados

20. E a esse propósito deve notar-se que assim como Deus no princípio do mundo dotou o homem de um riquíssimo organismo com que pudesse sujeitar as outras criaturas e multiplicar-se e encher a terra, assim ao princípio da era cristã proveu a Igreja dos recursos necessários para vencer perigos quase inumeráveis e povoar não só toda a terra, mas também o reino dos céus.

21. Como membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o lavacro da regeneração e professam a verdadeira fé, nem se separaram voluntariamente do organismo do corpo, ou não foram dele cortados pela legítima autoridade em razão de culpas gravíssimas. "Todos nós, diz o Apóstolo, fomos batizados num só Espírito para formar um só Corpo, judeus ou gentios, escravos ou livres" (l Cor 12, 13). Portanto como na verdadeira sociedade dos fiéis há um só corpo, um só Espírito, um só Senhor, um só batismo, assim não pode haver senão uma só fé (cf. Ef 4, 5), e por isso quem se recusa a ouvir a Igreja, manda o Senhor que seja tido por gentio e publicano (cf. Mt 18, 17). Por conseguinte os que estão entre si divididos por motivos de fé ou pelo governo, não podem viver neste corpo único nem do seu único Espírito divino.

22. Não se deve, porém, julgar que já durante o tempo da peregrinação terrestre, o corpo da Igreja, por isso que leva o nome de Cristo, consta só de membros com perfeita saúde, ou só dos que de fato são por Deus predestinados à sempiterna felicidade. Por sua infinita misericórdia o Salvador não recusa lugar no seu corpo místico àqueles a quem o não recusou outrora no banquete (Mt 9, 11; Mc 2, 16; Lc 15,2). Nem todos os pecados, embora graves, são de sua natureza tais que separem o homem do corpo da Igreja como fazem os cismas, a heresia e a apostasia. Nem perdem de todo a vida sobrenatural os que pelo pecado perderam a caridade e a graça santificante e por isso se tornaram incapazes de mérito sobrenatural, mas conservam a fé e a esperança cristã, e alumiados pela luz celeste, são divinamente estimulados com íntimas inspirações e moções do Espírito Santo ao temor salutar, à oração e ao arrependimento das suas culpas.

23. Tenha-se, pois, sumo horror ao pecado que mancha os membros místicos do Redentor; mas o pobre pecador que não se tornou por sua contumácia indigno da comunhão dos fiéis, seja acolhido com maior amor, vendo-se nele com caridade operosa um membro enfermo de Jesus Cristo: Pois que é muito melhor, como nota o bispo de Hipona, "curá-los no corpo da Igreja, do que amputá-los como membros incuráveis".(5) "Enquanto o membro está ainda unido ao corpo não há por que desesperar da sua saúde; uma vez amputado, nem se pode curar, nem se pode sarar".(6)ler...