A entrevista do bispo de Anápolis, dom Manuel Pestana, foi publicada em junho de 1996. É curioso notar como a entrevista do bispo reagiu bem ao vigor do tempo. Ela continua “viva”, brilhante. Há trechos antológicos, como a passagem em que narra sua crise de fé e a análise de algumas obras, como as de Marx e Renan. Depois de lida a entrevista, o leitor poderá até continuar dizendo que dom Pestana é conservador e, mesmo, moralista. Mas não poderá deixar de admirar sua lucidez, sua inteligência. E, igualmente instigante, Pestana é dotado de um grande senso de humor. Sabe ser irônico sem parecer que está sendo irônico, como Bernard Shaw, que o bispo certamente não admira. A entrevista de dom Pestana é uma ambrosia intelectual. Para os mortais, é claro.
entrevista/Dom Manuel Pestana
O teólogo da tradição
entrevista/Dom Manuel Pestana
O teólogo da tradição
“As crises morais e existenciais num seminário são em muito menor número que numa situação de contato direto com o mundo”
Houve um tempo em que uma diocese era praticamente um Estado dentro de outro. Cardeais eram quase reis, e o papa, um imperador. Hoje, quando a Igreja Católica separou-se do Estado e parte dela se apegou aos que andam à margem dele, convém explicar que diocese é apenas a região liderada por um bispo. Anápolis e mais 17 municípios formam uma diocese. E lá, quem conduz as ovelhas para o redil católico é dom Manuel Pestana Filho, 67 anos e quase 44 de sacerdócio.
Seus diminutos 158 centímetros de altura encolhem-se mais ainda na pesada batina negra, que esvoaça sobre a calça e os sapatos também negros. Um leve risco branco denuncia a camisa de mangas compridas que ele usa sob o hábito de meio século. De seu vulto negro se destaca a larga cruz de madeira, que pende um pouco abaixo do peito. Mas, se ao longe, a rara batina chama a atenção para o padre que vai nela, de perto, são os olhos castanhos-escuros que traem o homem audacioso que vai dentro do padre.
Corroborando o que dizem seus adversários, dom Manuel Pestana é mesmo um conservador. Mas seus princípios radicalmente antigos não são conservados com o bolor do costume ou a rabugem do preconceito — são remoçados por um diálogo erudito com a tradição. Dono de vasta biblioteca, dom Manuel Pestana é capaz de converter o ensinamento de um dogma num exercício de dialética. E quando ataca idéias alheias, primeiro entra nos argumentos delas com uma lógica de escolástico; depois, as implode com uma ironia machadiana.
Bem-humorado, diz que se acha velho. “Tenho quatro UTIs e cinco unções dos enfermos. Como vocês vêem, já cansei de preparar o passaporte, mas não deu certo”, brinca. “Enquanto Deus me suporta, e os homens também, vou ficando”, gargalha, acentuando o vermelho do rosto. Perguntado se a batina não faz muito calor, não titubeia: “Ora, o inferno é mais quente”. E quando fala do inferno, não pode deixar de citar Dante — A Divina Comédia, no original italiano, é sua leitura de cabeceira.
Aliás, uma das leituras, já que o bispo é um leitor voraz. Além do italiano, domina o latim, o espanhol e o francês, lê fluentemente em inglês, conhece grego e ainda arranha o alemão escrito. Detalhista, mapeia sua diocese: “Antes da criação da Diocese de Luziânia, que em 1989, ficou com dois municípios nossos, éramos 23 mil 810 quilômetros quadrados; hoje, somos 14 mil 227 quilômetros quadrados, 17 municípios e uma população de aproximadamente 447 mil 769 habitantes”.
Dom Manuel Pestana veio de Anápolis especialmente para esta entrevista ao Jornal Opção. Chegou antes das 15 horas, da quarta-feira, 5, e saiu muito depois das 18, assim mesmo porque tinha compromisso litúrgico com seus diocesanos — era véspera de Corpus Christi. Apesar das três fitas cassetes cheias, não houve tempo de fazer todas as perguntas. Algumas foram respondidas por fax. O resultado é o perfil de um lúcido intelectual, um completo diagnóstico da Igreja no Brasil e uma catilinária moral contra a televisão brasileira. O jurista Licínio Leal Barbosa, articulista do Jornal Opção, participou como entrevistador.
José Maria e Silva — Quando o senhor foi ordenado sacerdote?
Na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, no dia 5 de outubro de 1952. Dois dias depois, no dia 7 de outubro, celebrei minha primeira missa na mesma basílica. Foi um dos grandes momentos da minha vida. Até hoje, quando vejo as fotos da minha ordenação, sinto uma comoção muito grande. Tinha 24 anos, mas sabia muito bem o que estava fazendo. Fiz um retiro de silêncio durante um mês. Nas duas primeiras semanas, não falei absolutamente nada. Antes das duas últimas semanas, tivemos um intervalo de meio dia, mais não tivemos coragem de falar. Então continuamos o retiro por mais duas semanas. Depois de ordenado, continuei em Roma por dez meses.
Euler Belém — Qual a origem do sobrenome Pestana?
Descobri, casualmente, quando estive na Itália, que o sobrenome Pestana tem origem na Ilha da Madeira, no Norte da África. Por volta de 1400, chegou lá, exilado, um português chamado João Veloso. Talvez por ter cílios muito grandes, foi apelidado de Pestana. Mais tarde, uma senhora Pestana foi ama de leite de Dom João V. E há também o famoso Álvaro de Brito Pestana, um dos autores do cancioneiro geral português. Em Anápolis, para me distinguir de outro bispo Manuel, da Igreja Brasileira, passaram a me chamar pelo sobrenome.
José Maria e Silva — Os pais do senhor eram católicos?
Minha família era católica não só por tradição, mas pela prática. Meu pai se chamava Manuel Pestana, e minha mãe, Maria Isaura Ornelas. Éramos dez irmãos. Três morreram quando crianças, e minha última irmã, a caçula, nasceu quando eu estava em Roma, terminando o curso para ser padre. Minha família é muito religiosa. Tive dois irmãos que chegaram a entrar no seminário. Fiz minha primeira comunhão aos seis anos e meio e participei da Cruzada Eucarística. Entrei para o Seminário Metropolitano Menor de Pirapora com doze anos e oito meses. Ele era dirigido por uma ordem de alemães, belgas e holandeses. É a ordem dos premonstratenses, fundada por São Norberto (1080-1134). Tínhamos laboratório de química, física e biologia. Ficávamos em regime de internato. Só saíamos duas vezes por ano. Lá se estudava muito. Para mim, foi uma bênção.
José Maria e Silva — Aos seis anos, o senhor teve que se confessar para fazer a primeira comunhão. Com essa idade, o senhor tinha pecado para contar ao padre?
Ah! eu tinha sim: pede bença p’a mamãe, pede bença p’o vovô, pede bença p’a vovó, pus a língua p’a minha tia — hummm! (risos) Aí a gente pergunta para a criança: “Isso é bonito?” Ela diz: “Não, não é bonito, não”. Então, se começa a formar a consciência dela.
José Maria e Silva — O senhor entrou muito novo no seminário. Como foi a questão do sexo na adolescência?
Tive todas as tentações normais da idade, mas, em contrapartida, tive uma orientação espiritual muito segura. As crises morais e existenciais num seminário ou numa escola militar são em muito menor número que numa situação de contato direto com o mundo. A razão é simples: o grande problema da juventude é não saber o que fazer da vida. Daí que o jovem vai atrás de qualquer saída que se lhe ofereça. Por isso é muito importante, na pastoral da juventude, não ter medo de oferecer a ele um cristianismo anêmico, ele vai buscar heroísmo nas drogas, na marginalidade e até numa guerrilha. Quando escolhi ser padre, sabia que teria de viver castamente. E isso não é impossível.
José Maria e Silva — Com essa índole para o rigor, o senhor nunca quis entrar na Companhia de Jesus?
Não. Simplesmente queria ser padre. Eu fazia o terceiro ano, tinha nove anos, quando minha professora, na sala de aula, disse: “Eu vi o Pestana rezando na Igreja de São José. Esse menino vai ser padre”. Eu dei um berro, e todo mundo caiu na risada. Era uma professora muito boa, dedicada, extraordinária. No fim do ano, houve uma missão na minha paróquia e apareceu lá um padre redentorista, que depois morreu como missionário dos leprosos no Rio Purus. Era um homem muito vivo, gostava das crianças. Chegou em mim, brincando: “Manequinho, você quer ser padre? Quer ir para o seminário comigo?” Eu disse: “Quero”. Mas nem sabia o que era seminário. Contei para meus pais, eles falaram: “Isso é bobagem. Você tem que estudar, ajudar a gente”. Mais tarde, quando estava no segundo ano de ginásio, fui me confessar, e o padre insistiu: “Manequinho, desistiu de ser padre?” Eu disse: “Fala com a mamãe”. Ele foi falar com minha mãe. Meu pai disse: “Se for para ser bom padre, tudo bem. Mas se não for, nem vai sair de casa”. Acabei sendo padre. Até que um dia, quando era diretor da Faculdade de Filosofia, em São Paulo, recebo um telefonema. Estava sendo chamado para celebrar missa de sétimo dia. Fui. Quando abri o livro na página das intenções, havia uma cruz e estava escrito: “Missa de sétimo dia. Gerci Pinheiro Machado”. Era minha professora do terceiro ano. Fiquei tão comovido que tive dificuldade de sair da sacristia para celebrar a missa. Nunca mais eu a tinha visto. Ela tinha ido para São Paulo. E fora ela quem primeiro disse que eu iria ser padre.
Euler Belém — O senhor disse que há muita gente que não respeita padre. O senhor era bonito?
Quando celebrei minha primeira missa, ao me voltar para o público e dizer, “Dominuns ovisco”, “Deus esteja convosco”, apesar de muito recolhido, percebi risadas no fundo da capela, que não era muito grande. Depois da missa me contaram que, quando me voltei de frente para o público, uma velha lá atrás disse: “Oh! que belezinha!” (Risos).
José Maria e Silva — O senhor sempre usou batina?
Sempre. Só deixei de usar quando estive no Monte Sinai, em Israel. Era um tempo de guerra e me recomendaram que não usasse nenhum símbolo religioso para não correr risco de vida. Mesmo assim, celebrei missa, nas costas da montanha, sobre uma pedra.
Euler Belém — Faz muito calor essa batina?
O inferno é mais quente (risos). No deserto, vi beduínos andando de túnicas de lã, tecidas a mão. Aquilo ajuda a conservar a temperatura do corpo. A batina também ajuda. Claro que, como somos muito poucos usando hábito, todos aqueles que querem xingar o padre só acham a gente. Mas o hábito é interessante. Se eu ficar numa rodoviária muito tempo, logo aparecem pessoas para pedir conselho, se confessar. E aparecem, também, muitos bêbados, ora para se lamuriar, ora para pedir dinheiro.
Euler Belém — Como o senhor acha que a população de Anápolis vê o senhor?
Tive dificuldades no início. Quiseram até me tirar. Falavam que eu era conservador, radical, estreito, quadrado. Diziam que eu não tinha diálogo. Felizmente, visitei todas as comunidades assim que cheguei, e isso criou uma situação favorável.
Euler Belém — A visão que eu tinha do senhor era a visão de um bispo atrasado. Hoje, estou vendo um religioso conservador, mas inteligente.
Nós precisamos ser furiosamente radicais nos princípios, e muito humanos na aplicação deles.
Licínio Leal Barbosa — Ainda existe o seminário em que o senhor se formou?
Não. Desgraçadamente, não. Existiu até o fim da década de 60. Aliás, o fim dos seminários tem sido uma desgraça para a Igreja. Os seminários acabaram ou foram muito desestruturados. Ainda existem seminários muito bons, mas não são os mesmos. O material já não é o mesmo, culturalmente falando. No meu tempo de seminário, no terceiro ano primário, nós tínhamos um caderno de linguagem só para escrever carta. Era uma carta por semana. No exame de admissão, no ginásio, com dez anos, fui obrigado a ler e analisar o apólogo da agulha e da linha de Machado de Assis. Infelizmente, hoje, descemos muito, não só no Brasil, mas por todo lado. Na escola tínhamos uma verdadeira academia, para a qual os alunos eram eleitos segundo seus méritos.
José Maria e Silva — Do ponto de vista da moral, a formação de um seminarista também piorou?
Há seminários fechados, mesmo assim demasiadamente abertos. Desde 1965, houve uma evolução — ou involução. Com o argumento de que não se podia formar padres psicologicamente complicados, frustrados, se liberou, abriram-se as portas, e acabamos perdendo muitas grandes vocações.
“A TV brasileira é podre”
Euler Belém — A Globo tem uma imagem de emissora católica. Mas é uma das que mais apresentam padres em situações difíceis em suas novelas. Como o senhor analisa isso?
Não vejo nada de católico na Globo. Pelo contrário, devemos a ela grande parte da demolição dos valores cristãos no Brasil. Hoje, não só jovens, mas até pessoas adultas acham que devem imitar o comportamento e as expressões que são veiculadas nas telenovelas. E não é só a Globo, é a Bandeirantes, o SBT... Esses diretores não sabem o mal que estão fazendo. Na Itália, em 94, a Rai, a televisão italiana, passou o ano inteiro trabalhando sobre a Divina Comédia, de Dante (Dante Alighieri, 1265-1325, poeta italiano). E o grande sucesso que a Divina Comédia fez junto ao público foi exatamente devido às condenações que Dante reserva aos corruptos no inferno. Os jovens se entusiasmaram com a descrição tão perfeita da corrupção. Quer dizer, lá a televisão fez um trabalho educativo, de recuperação da popularidade de um grande poeta.
Euler Belém — Os produtores de TV no Brasil alegam que a oferta de sexo é sinônimo de liberdade, de país desenvolvido. Mas, nos países desenvolvidos, não se vê nada disso.
A televisão brasileira é a mais corruptora do mundo. Dom Lucas Moreira Alves viajou pelo mundo todo, conhece a televisão de 60 países, e garante que nunca viu televisão mais podre do que a nossa. É uma verdadeira escola de prostituição. Às sete, oito da noite, quando as crianças ainda estão na sala, liga-se a televisão e a sala de visitas se transforma num prostíbulo. A televisão brasileira é um curso acelerado de prostituição. Duvido que um pai de família tenha coragem de folhear uma revista pornográfica junto com suas filha de sete, oito anos. No entanto, esse mesmo pai de família assiste telenovelas que mostram essa mesma pornografia, só que não apenas graficamente, mas ao vivo, o que é muito pior.
Euler Belém — O que o senhor assiste na televisão?
O que ainda assisto, mesmo assim com um espírito crítico muito atento, são os telejornais. Programas, só de debate ou algum filme. Nos Estados Unidos já existe uma preocupação no sentido de que a televisão deixe de ser um vício para ser um lazer. Há um grupo alemão que acha que a criança não deveria assistir televisão até os 11 anos de idade. Eles entendem que o tóxico mais terrível da sociedade moderna é exatamente a televisão. A pessoa cria uma dependência absoluta da televisão. E sofre uma transformação psíquica, como ocorre com os usuários de cocaína, heroína. Quando cheguei à Diocese de Anápolis, em 89, ainda havia algumas cidadezinhas do interior que não tinham televisão. Dois anos depois de implantada a televisão, a situação era completamente diferente. As pessoas não eram as mesmas.
José Maria e Silva — Então, o que fazer? Censurar a TV?
Falar em censura deixa todo mundo ouriçado. Mas todos nós vivemos sob censura. Os tóxicos, por exemplo, são censurados. Eles representam um grande risco. Hoje, até o teatro, sob o pretexto de que arte é liberdade, virou bandalheira. É o sexo aberto.
José Maria e Silva — Além da violência e do sexo, o riso exacerbado, o escracho, também não são um corrosivo contra os valores morais? A Globo, por exemplo, já fez novela das sete em que Dercy Gonçalves fazia chacota de Deus.
O homem que não é alegre ou está doente ou é mau. A alegria é a cor de saúde da alma. Mas uma coisa é alegria, outra coisa é o deboche, o escárnio. Esse tipo de riso é um dissolvente terrível de qualquer valor. E é ele que impera, hoje, na televisão. O escárnio, o deboche, é um fenômeno das decadências. O homem chega a um ponto em que não encontra saída e resolve rir da própria desgraça. É o contrário do riso de um Machado de Assis, de um Suetônio, por exemplo, brilhantemente analisado por Viana Moog.
Euler Belém — Reginaldo Faria vai fazer um filme sobre o assaltante Leonardo Pareja e dois jornalistas estão fazendo sua biografia. Estariam promovendo o crime e, assim, patrocinando uma inversão de valores?
Diz o salmista que, “em toda a parte, os malvados andam soltos, porque se exalta entre os homens a baixeza” (Ps 11,8). Não se trata de explicar ou até desculpar os erros dos homens que sempre encontram pretextos para justificar os próprios crimes. O problema está em apresentar criminosos como heróis, super-homens. Porque a humanidade busca sempre a quem seguir e em quem se espelhar. Este é um dos segredos da importância do culto aos santos, que trazem para mais perto de nós, com nossas fraquezas, a perfeição divina de Cristo. Ora, hoje só nos dão anti-heróis, modelos perversos. Carlyle afirmou que “a história dos povos é feita da história de seus grandes homens”. Quais os grandes homens que a sociedade e a mídia nos oferecem? Valeria a pena repensar a lição de James Cagney no famoso filme Anjos de Cara Suja, de 1938.
Luiz Carlos Bordoni — A ficção de Morris West, As Sandálias do Pescador, poderia um dia se tornar realidade dentro da Igreja?
Morris West foi meu colega na Universidade Gregoriana de Roma. Ele foi sacerdote, fez filosofia e viveu uns quatro anos mais do que eu lá. Trabalha com um material muito vivo. Morris West fez a projeção de uma situação que começava a se delinear na época. Mas, então, ninguém poderia prever que João Paulo II seria a reviravolta que foi na Igreja.
Luiz Carlos Bordoni — João Paulo II não está em conflito com a Rerum Novarum?
Absolutamente. Basta ler suas enclíclicas para ver que há uma continuidade de pensamento. João Paulo II faz afirmações fantásticas. Ele diz que sobre toda propriedade grava uma hipoteca social, o que significa que o direito de propriedade não é absoluto. João Paulo II é um homem extraordinário. Evidentemente, tem muitos inimigos, que torcem para que ele saia. Mas sua saúde não está assim tão grave como disse a revista Veja. Estive com o papa este ano e, na audiência que ele teve comigo, pude perceber que ele estava muito debilitado. Era visível o sofrimento dele. Mas, dois dias depois, ele estava muito bem. Tem um poder de recuperação fantástico. E nisso está a contradição da Veja — ela afirma que ele está decrépito, mas depois reconhece que ele não desmarcou um item de suas agendas.
Luiz Carlos Bordoni — Essas informações que alardeiam a doença de João Paulo II não podem ser uma arma de muitos padres progressistas que desejam que ele morra?
Alguns talvez nem rezem para que o papa morra, simplesmente porque não acreditam na oração. (Risos) Alguns, eu não falei todos. Pelo amor de Deus, não venham me complicar... (risos). João Paulo II está recuperando alguns valores que foram jogados fora e estão custando caro não só à Igreja, mas à humanidade. E o papa tem muita coragem. Não é fácil falar o que ele fala nos Estados Unidos, na Irlanda. João Paulo II nos contou que Gorbachev chegou a dizer para ele: “O senhor não é alheio a essas transformações que estão ocorrendo no mundo comunista”. Também não era para menos — quando João Paulo II visitou a Polônia, o New York Times o chamou, em manchete, de “o homem que invadiu a Polônia”.
Euler Belém — O senhor acredita que o papa possa renunciar?
Já aconteceu renúncia de papa na história, mas não creio que João Paulo II renuncie.
Licínio Leal Barbosa — Dom Lucas Moreira Neves, cardeal-primaz do Brasil, teria chance de sucedê-lo?
O papa tem muita estima por dom Lucas, já pude constatar isso. Dom Lucas é um homem conhecido em todo o mundo. Sem dúvida, poderia ser papa.
Euler Belém — A Veja criticou dom Lucas sob o ponto de vista intelectual. Ele é um homem preparado?
Dom Lucas tem uma formação muito sólida, muito vasta. Evidentemente, hoje é impossível se saber tudo. As especializações se multiplicaram muito.
“Já tive uma crise de fé”
Luiz Carlos Bordoni — Em algum momento, o senhor chegou a vacilar na fé?
Quando comecei a estudar filosofia, tive uma crise muito forte. E, hoje, estou convencido que a vocação que nunca teve uma crise existencial não é suficientemente sólida. Eu gostava muito de estudar, lia muito e fiquei um pouco assustado. Tive um professor que me disse: “Tenha calma. Quando se estuda o dogma, se perde a fé. Quando se estuda a moral, perde a vergonha”. Depois, tive outra crise — queria ser missionário na China. Mas meu diretor espiritual me disse: “É uma ilusão de juventude”. E não me deixou ir. Como padre, teve uma época que fiquei estatelado. Tenho uma biblioteca em Anápolis. Muita gente vai estudar lá. De repente, vi todas aquelas coisas que eu apreciava serem contestadas de todo lado. Era uma situação angustiante. O próprio dogma, as Sagradas Escrituras... Então, um dia, relendo a história da igreja, vi que ela já foi atacada por todos os lados. Mas venceu e sobreviveu a todos os hereges e até os enterrou maternalmente.
José Maria e Silva — A contestação a que o senhor se refere vinha da teologia da libertação?
Sem dúvida. Mas a causa da nossa diferença com a teologia da libertação não é a questão social. Nessa área ela fez coisas muito boas. O problema é a fundamentação antiteológica da teologia da libertação. Leonardo Boff, em toda a sua obra, destrói, praticamente, todo dogma cristão. Em seu último livro, Igreja, Carisma e Poder, ele passa de vez para uma ecologia da libertação.
Licínio Leal Barbosa — Boff deixou o hábito?
Deixou o hábito, mas não o nome. O nome é importante. O nome é importante... Lamento muito. Boff é um grande talento. A teologia da libertação esvaziou o dogma de tal maneira, que só restou sociologia, psicologia e a guerrilha. Trocaram a fundamentação das Escrituras pelo dogma marxista.
José Maria e Silva — O senhor não acha que o Deus da teologia da libertação está se aproximando muito do Deus-energia do Movimento da Nova Era?
Exatamente. Essa é a fraqueza essencial da teologia da libertação. Chega num ponto em que não há nada mais em que apoiar. Sobra um panteísmo em que todos somos deuses. João Paulo II foi muito feliz quando disse que a maior desgraça do homem moderno foi ter perdido a noção do pecado. Caímos no subjetivismo moderno que faz do homem a medida da verdade.
Euler Belém — A teologia da libertação está na UTI?
De modo algum. A teologia da libertação continua ameaçando os seminários. Há seminários que resumem toda a teologia à obra de Boff. Por favor, os livros de Boff estão todos fora da linha da Igreja. Outro dia, na Venezuela, um seminarista me disse: “Aqui, o único teólogo vivo que nós conhecemos é Boff”. Agora, como o Catecismo da Igreja Católica, se tornou possível ter um norte. Mas fiquei sabendo que há padres que dizem que ele é “um escritorzinho da ala polaca do Vaticano”. Frei Betto diz que não fez teologia para não se enquadrar num sistema. Então, como se pode chamá-lo de teólogo? Alguém pode dizer: “Frei Betto vendeu 2 milhões de exemplares”. Simples: Fidel Castro comprou 1 milhão e 200 mil. Não sei se pagou, mas comprou.
Euler Belém — Qual o grande teólogo brasileiro de uma linha divergente da teologia da libertação?
O padre Bannwarth, que foi reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, tem estudos teológicos interessantíssimos. Infelizmente, ele já morreu.
Licínio Leal Barbosa — Qual é o papel de dom Hélder Câmara na formação do pensamento moderno da Igreja no Brasil?
Dom Hélder foi integralista. Ele projetou a Igreja do Brasil fora do Brasil. Não me agradava a maneira negativa com que ele se referia a todas as coisas do Brasil. Mas foi uma figura importante. Houve um tempo, entre 1965 e 1975, em que os bispos, no Brasil, só eram nomeados depois de passarem por ele.
Licínio Leal Barbosa — Houve uma certa época em que a CNBB parecia ter uma voz divergente em relação ao Vaticano, a um ponto de se falar em Igreja brasileira. Como o senhor avalia isso?
Não vou dar o meu testemunho, porque ele poderia ser suspeito, já que minha posição é muito clara. Vou pegar a opinião de um sacerdote irlandês que foi assessor da CNBB. Não me recordo o nome do livro, nem do autor. Sei que ele diz com todas as letras: “Quando se olha a Igreja do Brasil, logo se descobre os traços de Jesus Cristo. Mas, mudando um pouquinho o ângulo de visão, já não se sabe se é Cristo ou se é Marx”. A Igreja no Brasil já viveu um anti-romanismo muito acentuado. Em reunião de bispo, para se discutir liturgia, já ouvi um dos assessores dizer: “Acho que os bispos do Brasil precisam ter mais coragem e impor sua vontade a Roma”. Mas este anti-romanismo não é a vontade da maioria. Pelo contrário. Ocorre que essa maioria é quase silenciosa. Evidentemente, essa situação mudou. João Paulo II foi tomando as rédeas da Igreja no Brasil, com a nomeação dos bispos. Depois, a queda do Muro de Berlim representou um baque para a teologia da libertação.
Licínio Leal Barbosa — Com relação à Igreja da Holanda pode-se falar em cisma?
Tive uma experiência penosa com um sacerdote holandês. Ele me disse: “Quero uma igreja sem papa e sem bispo”. Sem disciplina, é claro. E não é fácil enfrentar a multidão, a opinião pública, ser apontado como quadrado, cafona... No fundo, o catecismo holandês acaba negando a realidade da eucaristia. Ele foi o germe de todas as doutrinas erradas que surgiram depois. E quando a Santa Sé exigiu a correção daquele catecismo, eles não aceitaram fazer as correções — limitaram-se a colocá-las como um anexo do texto.
Licínio Leal Barbosa — Na Holanda, chegou a se aceitar drogados fumando maconha dentro das igrejas.
Lá, houve o caso de uma igreja em que as pessoas podiam entrar nela com motocicletas. Imagina a maravilha na hora da consagração — uruuummm! (Risos). Isso foi a primeira vez. Da segunda vez, os motoqueiros deixaram as motos dentro da igreja e foram passear lá fora. O padre celebrava a missa para as motocas (Risos). É lamentável, mas perdemos duas gerações de catequese. Essas crianças que foram catequizadas por esses métodos modernos não sabem nada. Peguei um catecismo desses. Falava de Deus uma vez — e era na última página. Essa gente não é cristã coisíssima nenhuma.
Euler Belém — A atuação de dom Antônio aparentemente é muito discreta, se comparada à de dom Fernando, seu antecessor na Arquidiocese de Goiânia. Quais são os méritos dele? Dom Antônio faz bem em fugir da mídia?
São personalidades diferentes. Dom Fernando, um vulcão. Impetuoso, era assim mesmo capaz de pedir perdão a uma flor que suas larvas queimassem. As marcas positivas de sua passagem são evidentes. Dom Antônio, sereno, tímido, busca compor como pode. Hoje, ser bispo não constitui missão fácil. Muitas coisas devem-se resolver ou construir em silêncio. A mídia pode ajudar mas, frequentemente, a busca do sensacional, do fantástico, só atrapalha. Dizia-me uma velhinha lá no litoral norte de São Paulo: “Seu padre, feijão podre é que bóia. O feijão bom fica no fundo”. Quantas vezes descobri que ela tinha razão...
Euler Belém — Com a saída de dom Luciano Mendes de Almeida da CNBB, ela ganhou em substância religiosa e perdeu em militância política, entendem alguns. O que o senhor acha?
Creio, e o disse várias vezes em assembléias, que nos preocupamos demais com militância política e social, não sem algumas vitórias e muito desgaste na área religiosa. Não podemos fugir à responsabilidade política. É o quarto mandamento. Mas correr o risco de identificar-se com partidos que, programaticamente, defendem posições anticristãs, como aborto, esterilização ou contracepção, “casamentos” homossexuais etc., é comprometer a nossa própria natureza e desorientar os fiéis. Nada do que se faz é eficaz sem atingir e formar, cristãmente, a consciência e o coração dos homens. Aí está o essencial da missão da Igreja, sem o quê o resto é resto.
Euler Belém — Alguns dizem que o movimento dos sem-terra não é ideológico: as pessoas estariam apenas em busca de terra para produzir. Outros asseguram que o movimento é ideológico: entre os sem-terra, muitos seriam petistas ou de outras correntes políticas. O objetivo deles seria perturbar a ordem social. Como o senhor avalia a questão?
Uma coisa é a reforma agrária que, cada vez mais, se mostra necessária e urgente, outra coisa é o movimento dos sem-terra. Perguntei certa vez a um bispo responsável pela Pastoral da Terra se era verdade que 80 por cento dos títulos concedidos em Goiás já tinham sido vendidos. Respondeu-me que não podia ser tão preciso, mas o número de tais casos era elevado. Insisti, estranhando que, dessa forma, não ajudávamos para a solução de um problema social, mas fomentávamos a indústria da invasão. Disse-me que eu não estava entendendo nada: podíamos não resolver o problema, mas estávamos desestabilizando o sistema. Protestei. Dessa forma, não servíamos deles para um objetivo político. Isso foi mais ou menos em 1980. Uma coisa é quem puxa os cordéis, outra, os que são levados, de boa fé e até entusiasmo. Em tudo isso, há muitos equívocos e não poucos mistérios. Entretanto, a verdade é que nesses acontecimentos aparece clara a multidão de carentes e empobrecidos que exige de nós grande senso de justiça e a coragem política do bem comum.
Euler Belém — Como o senhor avalia o trabalho pastoral de dom Pedro Casaldáliga e de dom Tomás Balduíno?
Não fui constituído juiz de meus irmãos. Evidentemente, penso que, sem contestar os seus méritos, nunca assumiria algumas de suas atitudes. Alguma coisa mudou, é claro. Entretanto, prefiro privilegiar o sobrenatural da ação da Igreja.
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“A Revolução de 64 foi um alívio”
Luiz Carlos Bordoni — Como o senhor avalia, hoje, o regime militar de 64?
Sobre o período imediatamente anterior ao regime militar, não se tem mais coragem de dizer nada. Mas 63 foi terrível. Vivi em Santos. Lá, apenas neste ano, tivemos 97 greves. Inclusive uma greve de coveiros, numa cidade com 40 graus à sombra. O mau cheiro dos cadáveres em decomposição era terrível. Meu pai era doqueiro no porto de Santos. Meu avô era estivador. Quem não aceitava aquela linha de greves e mais greves era simplesmente eliminado. O ministro do Trabalho da época, Valdemar Falcão, chegou a ir a Santos, apavorado com o número absurdo de acidentes de trabalho. Meu pai, por exemplo, foi atacado porque não quis coletar contribuições para o Partido Comunista entre os operários de sua turma. Ficou hospitalizado três meses por causa disso. A revolução de 64 foi uma revolta popular, porque ninguém mais suportava aquilo. Claro que, depois, foi usada. Todo poder corrompe. E o poder absoluto, corrompe absolutamente.
Euler Belém — O senhor participou daquelas marchas contra o governo João Goulart?
Participei, e de modo convicto. Mas tive uma grande decepção, logo no 1º de abril, quando foi eleito para vice-presidente o Alkmin. Todo mundo esqueceu qual foi o voto de um padre de São Paulo, no Congresso. Indignado, ele votou assim: “Para vice-presidente, Félix Galdeano”. As pessoas abafaram o riso, com medo. Félix Galdeano tinha sido o agenciador da famosa tramóia uísque a meio dólar. Nós nos sentimos traídos nessa hora, mas, antes, havia o perigo iminente de uma República sindicalista. Meu bairro era chamado de Kremlin, e Santos era a Moscou brasileira. Santos tinha 67 sindicatos. Quem levantava a voz contra essa situação era ameaçado de morte.
Euler Belém — João Goulart tinha algo a ver com isso? Ou foi um inocente útil?
Não tão inocente, mas era bastante útil. Felizmente, a maldade do homem é sempre maior do que sua inteligência, daí porque não existe crime perfeito. Jango foi uma vítima também, mas uma vítima consciente. Fazia parte da engrenagem.
José Maria e Silva — Como o senhor avalia o governo de Fernando Henrique Cardoso?
Fernando Henrique Cardoso continua sendo um enigma para mim. Estou com muito medo. Fernando Henrique integrou o Cepal. Também participou do famoso Fórum de São Paulo, que uniu os líderes da América Latina sob a liderança de Fidel Castro. Acho que ele prestou um grande serviço ao estabilizar a moeda, mas não podemos sacrificar tudo à moeda, como se fosse um bezerro de ouro. O que está faltando, além de coragem, é força política para impor certas reformas. Outra coisa que chegou ao absurdo, no Brasil, é a impunidade.
Euler Belém — O senhor está falando como uma pessoa de esquerda?
Não. Estou falando como uma pessoa que tem consciência dos valores cristãos.
Euler Belém — O senhor não acha que a política em Anápolis anda um tanto esquentada?
Evidente, se tudo é de fato como aparece. Penso que ainda deva haver muito estouro até que a pipoca salte e encha a panela. Seria muito bom se todos se deixassem investir pelo espírito do bem comum.
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“Renan é o poeta da mentira”
Euler Belém — O trabalho de Huberto Rohden, autor de O Drama Milenar do Cristo e do Anti-Cristo, tem consistência teológica e filosófica? O que acha do livro citado?
Não conheço o livro, logo não posso julgá-lo. Seminarista de calças curtas, lia seus livrinhos açucarados do Apostolado da Boa Imprensa. O seu Paulo de Tarso, para nossa decepção, resultou ser, em boa parte, plágio do alemão Hollzsmeister, se não me engano. Depois, ele deixou os Jesuítas e, finalmente, o sacerdócio. Recebeu uma bolsa para pesquisas científicas em Princeton; freqüentou três anos o Golden Lotus Temple, de Kriya Yoga, em Washington, percorreu o Oriente em busca da mística. Promoveu cursos em Goiânia e Brasília sobre o que chama de Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho. Homem de muitas palavras novas e idéias mais antigas, como macrocosmo mundial e microcosmo hominal, misturou um pouco de Ocidente com muito do Oriente, apresentou um amálgama de ciência, filosofia e esoterismo gnóstico, bem ao gosto da mentalidade místico-poética de muitos dos nossos contemporâneos.
Euler Belém — Rohden cita Nietzsche: “Se o Cristo voltasse ao mundo, a primeira declaração pública que faria a todos os países seria esta: ‘Cristãos de todas as igrejas, sabei que eu não sou cristão — eu sou Cristo”. Trata-se de uma crítica aos cristãos?
Não afirmo que todas as críticas aos cristãos sejam injustas. Evidentemente, tanto Nietzsche quanto Rohden não nos poupam. Somente Cristo é Cristo. Não passamos de suas pálidas imagens, na melhor das hipóteses. Podemos ser sua morada, mas sempre infinitamente longe dele. Para nossa desgraça, muitas vezes de cristãos temos apenas o rótulo. “Não é quem diz: Senhor, Senhor! que entra no reino dos céus, mas quem faz a vontade de meu Pai, esse entra no reino dos céus” — disse Jesus. Para o cristão, cada instante é uma oportunidade que Deus lhe dá para ser melhor. Quem se julga suficientemente bom, já começa a ser ruim.
Euler Belém — Qual é a biografia mais completa de Jesus Cristo? É a de Renan?
Pelo amor de Deus! Renan é anticristão. É o poeta da mentira. Ele embrulha tudo. Muitos jovens se perderam lendo Renan. Leiam um brasileiro que fala dele, Paulo Setúbal, no Confiteum.
José Maria e Silva — O senhor leu Renan com prazer?
Vou fazer uma comparação meio absurda: um castelo de esterco, mesmo sendo de esterco, é um castelo e pode ter muita coisa bonita. A maior biografia de Cristo, sem dúvida alguma, é a de Ricciotti, A Vida de Jesus. Quem quiser um livro mais literário sobre Jesus, e também sério, deve ler Plínio Salgado.
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A crença no humanismo
Euler Belém — É admirável a relação da Igreja Católica com a palavra, tradição que vem da cultura judaica. Mas, modernamente, a Igreja vem-se afastando dessa tradição. A liturgia não tem mais a mesma solenidade de antes e os padres demonstram ter pouca intimidade com o idioma. Como o senhor avalia essa queda do padrão cultural do clero?
Somos um pouco o reflexo da própria situação geral. Hoje em dia é difícil encontrar, por exemplo, um advogado que escreva uma petição sem cometer dois erros por linha. O problema da Igreja, hoje, é o fim dos seminários menores.
Licínio Leal Barbosa — Como o senhor avalia a substituição do canto gregoriano pelos cânticos laicos, profanos?
Recentemente, estive relendo o que Platão diz sobre os cantores. Ele diz que os cantores amolecem o caráter, por isso deveriam ser expulsos da cidade. Hoje, com essa vontade de se amoldar ao mundo, muitos setores da Igreja substituíram a música-oração pela música mensagem. E a música-mensagem, às vezes, pode ser até o ritmo, o grito, o berro. Já o canto gregoriano é recolhimento, é elevação. Pesquisas recentes descobriram que o canto gregoriano tem até mesmo um efeito terapêutico. Um grupo de pesquisadores alemães constatou que os doentes mentais ficam mais tranqüilos quando ouvem música clássica, ao passo que se agitam ao ouvir rock. Já um italiano notou que, com o canto gregoriano, se ia além dos efeitos da música clássica — o doente mental não apenas ficava tranqüilo como também entrava num processo de recuperação. Em Paris, há um cientista que se utiliza do canto gregoriano na cura de doenças mentais. Ele descobriu que os tons altos do gregoriano correspondem ao tom de voz da mãe quando fala com seu filho no útero. E é bom salientar que os tons altos da música de Mozart têm íntima relação com os tons altos do canto gregoriano. O mercado fonográfico redescobriu o canto gregoriano. Tudo começou com os monges da Abadia de São Domingos, que gravaram um disco. Mas eles se agastaram e não querem gravar mais. O canto gregoriano estava sendo usado até em strip-tease. Estava virando uma profanação sem limites. Em Anápolis, no seminário, estamos tentando recuperar o canto gregoriano.
José Maria e Silva — Além do canto gregoriano, o latim também foi jogado no lixo?
Infelizmente. O que é um crime. O latim é mais que um idioma — é um xadrez que esclarece o pensamento. O latim me leva à saudável ginástica mental. Evidentemente, não sou favorável à volta da missa em latim, porque não há mais condições culturais para isso, mas creio que seria salutar que sempre houvesse missas em latim para aqueles que querem. Na Europa, há igrejas que ainda hoje reservem horários para missas em latim. E há muitos fiéis que gostam.
José Maria e Silva — O senhor é a favor da missa em latim com o padre virado de costas para o público?
O padre nunca esteve de costas para o público — ele esteve à frente do público, virado para Deus. É uma questão de interpretação. E a missa atual coloca o padre de frente para o público e para Deus, que fica no centro, no altar. O que também é muito positivo. O que ocorre é que muitos sacerdotes se esqueceram que sua função é interligar o povo a Deus e se coloca como o centro da missa, se transformando num showman. É lamentável ter que dizer isso, mas há certas missas que não diferem muito de programas de auditório da televisão.
José Maria e Silva — Como o senhor avalia as missas afro-brasileiras, que incorporam a dança e o batuque à liturgia?
Entendo isso como uma volta ao que nunca existiu. Todo esse movimento negro no Brasil, em termos culturais, surge com Nina Rodrigues (1862-1906). Os negros no Brasil são todos assimilados. Não vou discutir, aqui, como se deu esse processo de assimilação, mas o que importa é entender que, em termos culturais, o negro brasileiro não é africano. Pelo amor de Deus, é preciso entender isso.
Euler Belém — O avanço tecnológico, ao contrário do que se esperava, não afastou o homem de Deus. Mas do que nunca as religiões e seitas estão fortes. Por quê?
Na abertura daquele fantástico livro de Santo Agostinho, As Confissões, ele diz mais ou menos assim: “Senhor, tu me fizeste para ti, e o coração humano não encontrará repouso senão em ti”. O homem não é um animal aperfeiçoado, uma parcela de um jogo matemático-econômico — ele é pó, mas é pó com sopro divino. E o coração do homem é insaciável. O mundo de hoje não quer acreditar em Deus e acaba absolutizando o relativo, eternizando o temporal. O homem moderno enche o coração de novidades, de tecnologias, de ilusões, mas no fundo seu coração está vazio.
Euler Belém — O que o senhor acha da pílula anticoncepcional e da camisinha?
A pílula anticoncepcional foi recursos descoberto com objetivos terapêuticos, para mulheres que sofriam de dismenorréia. Depois é que passou a ser utilizada como anticoncepcional. E aí vieram os problemas, morais e físicos. A pílula abriu as portas para toda a degradação moral que estamos vendo. Já em relação à camisinha, para mim há algo de satânico, de diabólico na campanha que recomenda seu uso. Dizer que o uso da camisinha é o sexo seguro contra a Aids é um crime. Numa relação sexual, cerca de 10 por cento dos espermatozóides passam pelos poros da camisinha. E o vírus da Aids é muito menor que o espermatozóide, obviamente, passa muito mais. Nem precisa dizer o que acontece.
José Maria e Silva — Uma adolescente, virgem, é estuprada violentamente. Ao cabo de um mês após o estupro, quando ainda não conseguiu se recuperar do trauma sofrido com a violência, ela descobre que está grávida do estuprador. Se ela optar pelo aborto, será condenado ao inferno?
Se ela, antes adolescente e virgem, optar pelo aborto, já está condenada ao inferno nesta vida, pelos remorsos da consciência, avivados a cada choro, a cada sorriso ou a cada passinho de criança que poderia ser a sua, se não a tivesse matado. Não é sem razão que 85 por cento das mulheres internadas em casas de saúde mental nos Estados Unidos, país tão liberal, têm na sua história pelo menos um aborto. Falo de opção. Mas mesmo quando apenas cede à pressão, à chantagem ou ao desespero, a angústia não é menor. O problema é que o aborto é assassinato frio de um inocente, que está vivo e não tem nada a ver com o que fizeram. Não se pode obrigá-la a ficar com o filho, mas não é possível simplesmente convidá-la a ser assassina. O aborto é o crime mais frio, mais cruel, mais absurdo da nossa época.
Euler Belém — Os governos dizem que a escola pública está melhorando, mas ela ainda está aquém do que a sociedade espera. O que está faltando para a escola pública melhorar?
Muita coisa. O Relatório Coleman ao Senado Americano dizia que as escolas sem filosofia de vida apresentam não só mais graves problemas de disciplina e moralidade, mas também de menor aproveitamento escolar. Ele afirmava que esta era a razão da decadência da escola pública nos Estados Unidos. Não se pode pretender somente erudição, principalmente hoje, quando os bancos de dados são tão numerosos, ricos e acessíveis. Se a escola não forma para a vida, ela fracassa. A educação não acontece sem valores humanos apresentados. Se a própria escola, a partir do testemunho dos professores, não educa por tudo o que é e tem, é inútil e prejudicial. Não se educa por um aglomerado de conhecimentos científicos, mas por uma estruturação de valores humanos, que uma formação humanística pode dar. Supercérebros arriscam-se a se tornar supermonstros. O coração, a sensibilidade, a consciência, a vontade são áreas essenciais da personalidade humana. E disto, pouco se cogita ou se cogita mal. Valorizar os professores, sim, mas qualificando as verdadeiras vocações ao magistério, em cujas mãos se prepara, em grande parte, o futuro das novas gerações.
Euler Belém — O que está acontecendo com os jovens que, cada vez mais, procuram drogas, como cocaína, maconha, cigarro e álcool?
Os nossos jovens são, em geral, frutos e vítimas de uma sociedade consumista, materialista, imediatista, ávida de prazer, fabricada ou explorada pela mídia, bem ao gosto e a serviço dos que querem conduzir os homens como massa de manobra, inconsciente do seu destino pessoal. Quando faltam ideais de grandeza e auto-estima, já não se sabe o que fazer da vida. Aí vale tudo para se fugir de uma liberdade inútil e de uma responsabilidade absurda. Foge-se nas asas de um sonho químico, na loucura de um ritmo alucinante e alienante, na degradação do sexo sem dignidade e amor, ou até na superatividade estressante de quem não quer ter tempo nem para pensar. Precisamos de apóstolos capazes de atrair o jovem, pelo entusiasmo e pelo testemunho, a uma estrada de sacrifício e heroísmo. Porque os que ainda têm condições de atender a esse apelo — e não são poucos — poderão, à falta de autênticos valores, deixar-se seduzir pelo brilho efêmero de ideologias de morte e escravidão, inclusive pelo culto a satã, “homicida desde o início” e “pai da mentira”, como o chama Jesus. No fundo, todos sentem que só vale a pena viver quando se encontra uma causa pela qual valha a pena morrer. E a vitória sobre a morte, só Cristo no-la dá, pela sua morte e ressurreição. Sem ele, não há caminho, nem verdade, nem vida.
Euler Belém — O conflito da Globo com a Igreja Universal do Reino de Deus teve só componentes comerciais? O que o senhor acha da igreja dirigida por Edir Macedo, que se intitula bispo?
O conflito da Globo com a Igreja Universal é problema deles. A atitude infeliz e grosseira do “bispo” que agrediu a sensibilidade cristã do povo é mais profunda do que se esperava. Despertou até a consciência católica, não só para o amor a Nossa Senhora, mas também para o clima de real perseguição que estamos sofrendo em todos os campos. O fato de ter-se a Globo aproveitado isso para combater a rival, não a redime das iniqüidades que pratica diariamente contra os princípios cristãos. Nessa altura, são dignas uma da outra.
José Maria e Silva — Os evangélicos costumam dizer que Anápolis é uma cidade evangélica. Foi lá, por exemplo, que começou a Assembléia de Deus em Goiás, a maior denominação evangélica do Estado. O Senhor concorda que, em Anápolis, os evangélicos chegaram, de fato, a uma espécie de poder espiritual?
Não se pode esconder a influência das igrejas evangélicas em Anápolis. Mas os diversos horários de santas missas, tanto aos sábados e domingos, como em dias de semana, mostram uma larga participação católica. Não falo só dos momentos fortes da liturgia: Natal, Semana Santa, Páscoa, Pentecostes, Corpo de Deus. A Campanha da Fraternidade, os movimentos marianos e a recitação do terço em família, as manifestações pró-vida etc., confirmam ativa presença católica. Quando cheguei, a estatística oficial dava 83 por cento de católicos (sei que não poucos e são de nome apenas). Depois, creio que em 89, a estimativa era de 80 por cento. Cheguei a reclamar que tivessem tirado o item “religião” dos recenseamentos. Entretanto, nossas igrejas estão cheias, o atendimento é satisfatório, os movimentos, em geral, dinâmicos, a catequese extensa. Sempre há muito por fazer. Mas os números não nos preocupam. As vidas, as almas, sim.
Euler Belém — O senhor já teve simpatias pelo marxismo?
Não. Que me desculpem, mas para ler um livro como O Capital é preciso ter muito estômago. Tenho este livro numa edição espanhola. Marx foi satanista aos 17 anos, teve um filho com a empregada, deixou dois filhos morrerem de fome. Era um homem completamente irresponsável. E toda obra, de alguma maneira, é autobiográfica — ela assimila as fraquezas do autor.
José Maria e Silva — Não há dúvida que o pensamento de Marx é disforme e até confuso, assim como o de Max Weber, segundo alguns críticos. Mas Marx não tem nada de aproveitável? O senhor desconhece a importância dele como pensador?
Marx tem algumas coisas importantes. A Questão Judaica, por exemplo, é interessante.
José Maria e Silva — Como o senhor avalia a participação dos leigos nos sacramentos católicos, inclusive manipulando a hóstia?
Acabo de traduzir um livrinho sobre o assunto. É de um autor italiano e se chama O Complô Contra os Sacerdotes e a Eucaristia. A gente tem impressão que houve um plano para fazer o povo perder a fé na eucaristia. A manipulação fácil da eucaristia quebra toda sua riqueza e a sensibilidade.
Luiz Carlos Bordoni — Como o senhor se posiciona em relação à pena de morte?
Não defendo a pena de morte, mas entendo que se um organismo chega a uma situação em que só cortando um dedo podre ele é capaz de se recuperar, então, esse dedo tem que ser cortado. O próprio Cristo prega isso na Bíblia, em relação aos homicidas vinhateiros. Se uma sociedade não tem o direito de eliminar um sujeito que está pondo em risco a sobrevivência dela, então, ela está indefesa perante a própria ruína.
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O talento goiano
Euler Belém — Fora a Bíblia, o senhor tem um livro de cabeceira? Lê algum poeta em especial?
Em cima do meu criado-mudo há sempre pelo menos cinco livros. Leio um pouco, antes de deitar, qualquer que seja a hora. A escolha depende da disposição. Chesterton (1874-1936), por exemplo. Ou Gustavo Corção (1896-1978), Lições de Abismo. Hugo Wast, o grande escritor argentino. Virgil Gheorghiu da 25ª Hora e suas deliciosas memórias. Ricciotti, A Vida de Jesus, São Paulo, A Igreja dos Mártires, História de Israel, Com Deus ou Contra Deus, Deus na Pesquisa Humana. Padre Antônio Vieira, incomparável. Às vezes, Agatha Christie. Freqüentemente algum livro de filosofia, ligado às disciplinas que estou lecionando. De poetas, li mais antologias, tão úteis para a formação do estilo. João de Deus, Campo de Flores, o mestre da simplicidade. Castro Alves, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Primavera, muitos sonetos de Camões, Bocage e Antero de Quental, Álvares de Azevedo. O tempo não é muito para as ocupações obrigatórias.
Euler Belém — Quais os autores goianos que o senhor gosta de ler?
A primeira coisa que fiz ao receber do senhor núncio a notícia de que o Papa me queria bispo de Anápolis, foi ler na Enciclopédia dos Municípios tudo sobre as regiões da diocese. No seminário menor, ganhara, de prêmio escolar, o livro Lá Longe no Araguaia. Soube aí que existia Meia Ponte, Antas e outras coisas. Monsenhor Primo Vieira fora meu pároco e professor no Seminário Maior. A família morava em Catalão, outro nome amigo no meu pequeno universo. Mas ao chegar aqui, infelizmente, encontrei tanto o que fazer que tive que deixar a literatura. As dificuldades do início me bloquearam também os contatos com a gente de letras. Conheci Ursulino Leão, Gelmires Reis, Haydée Jaime. Li versos de Cora Coralina, José Mendonça Telles. Soube que Bernardo Élis era originário da diocese. Assíduo freqüentador de jornais, pude encontrar com alegria alguns excelentes prosadores. Gostaria de fazer mais justiça ao talento goiano.
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Força revolucionária
Licínio Leal Barbosa — Goiás deve ao senhor ter trazido aqui, em agosto de 1984, um autor famoso em todo mundo, Virgil Gheorghiu, autor da 25ª Hora e a Espiã. Qual a contribuição dele para os tempos modernos?
A contribuição dele é fantástica. Espero que não seja esquecido. Escrevi no prefácio que fiz para A Espiã que ele era um desses autores malditos. Muitas enciclopédias sequer o citam. No entanto, 25ª Hora foi considerado um dos grande romances da literatura, por ninguém menos que o filósofo francês Gabriel Marcel. Virgil Gheorghiu é por todos e contra todos. Num de seus livros, O Exterminador, ele mostra como Stalin considerava a religião sob o aspecto de sua força revolucionária.
Licínio Leal Barbosa — Naquela noite em que estivemos, no apartamento do escritor Ursulino Leão, com Virgil Gheorghiu, a Bandeirantes exibiu o filme 25ª Hora. O senhor teve influência nisso?
Sim. Insisti para que o filme fosse veiculado durante sua estada aqui. 25ª Hora significa a hora depois do tempo. Houve até um espanhol, Cabo de Villa, que escreveu um livro chamado 32 de Dezembro. Gheorghiu também inspirou Buñuel, em um filme engraçadíssimo sobre um ateu que fala em Deus o tempo todo.
Licínio Leal Barbosa — Como o senhor conheceu Virgil Gheorghiu?
Li Gheorghiu, pela primeira vez, quando estava começando meu magistério em Santos. Eu me empolguei com ele e passei a utilizar suas obras em minhas aulas. Uma de minhas alunas, que era professora de um grande instituto de educação, também fez o mesmo com seus alunos, que resolveram escrever para ele. Falaram de mim e, com isso, se estabeleceu o contato entre nós. Estive em sua casa em Paris, e o convidei, em 84, para ser um dos conferencistas da Semana Internacional de Filosofia em Petrópolis. Gheorghiu estava preocupado com o futuro de sua obra. Havia um documento na KGB, com sua assinatura, falsa, cedendo todos os direitos de sua obra para a KGB. Mas o governo soviético caiu, e ele ainda sobreviveu por algum tempo.
Euler Belém — O que o senhor acha do cinema de Pasolini e de Felini?
Pretendo enviar uma carta à comissão de cinema que incluiu o Evangelho de São Mateus, de Pasolini, na lista dos grandes filmes. Mas Pasolini reduz Cristo à figura de um reformador social. Mais nada. Um de seus filmes, Teorema, até recebeu prêmio da Organização Católica Nacional de cinema, da Itália, mas já era possível perceber que Pasolini estava indo pelo caminho errado. Apesar de alguns possíveis valores "técnicos e até poéticos, a obra de Pasolini é extremamente negativa. Pasolini acabou sendo uma espécie de Voltaire do cinema.
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