terça-feira, 5 de julho de 2011

Reflexões sobre o valor dos documentos do Concílio Vaticano II .Mons. Marchetto acusa diversas vezes a linha de interpretação da escola de Bolonha de ser "ideológica", isto é, de ler o Concílio segundo o critério preconcebido do acontecimento em ruptura e em descontinuidade com o passado.


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Julho 26, 2009 escrito por admin

Capítulo Primeiro: o "status quaestionis"
Nos últimos meses, na Itália, viu-se ressurgir o debate sobre o Concílio Vaticano II e sua interpretação graças a duas publicações importantes, dois livros que adotam posições opostas. O primeiro é O Concílio Ecumênico Vaticano II Contraponto para sua história1, obra que reúne as intervenções de Mons. Agostino Marchetto, atual secretário do Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, a respeito da interpretação dos textos conciliares. O segundo é a Breve História do Concílio Vaticano II2, um resumo da famosa História do Concílio Vaticano II em cinco volumes, do prof. Giuseppe Alberigo, chefe do Instituto de Ciências religiosas de Bolonha.
Por que interessar-nos pela publicação das enésimas obras sobre o Concílio Vaticano II? Pelo fato desses dois textos constituírem uma espécie de manifesto das duas posições opostas sobre o Concílio, oposição abertamente reconhecida pelos próprios autores, que não hesitaram a fazer críticas recíprocas.
  
A linha da "escola" dossetiana de Bolonha, que se impõe um pouco em todo o mundo católico e não católico, é bem conhecida; ela vê no Concílio uma nova Pentecostes para a Igreja, uma nova passagem do Espírito Santo, que teria feito a Igreja reencontrar a autenticidade da mensagem cristã, perdida ao longo dos séculos3. Nessa perspectiva, o Concílio teria moldado um processo de renovação, de modernização (aggionarmento), de abertura ao mundo nunca vista, na medida em que apaga os anos de oposição obscurantista da Igreja em relação ao mundo moderno. Um acontecimento, portanto, em descontinuidade com o passado, cheio de novidades radicais, e também um acontecimento que marcou o início de um processo de renovação que não deve se limitar apenas à aplicação exclusiva dos decretos conciliares, e sim incitar a continuação do processo de modernização que o Concílio iniciou. É a célebre fidelidade ao "espírito do Concílio", isto é, fidelidade ao ideal de aggionarmento contínuo.
   
A afirmação do prof. Alberigo a esse respeito é muito clara: "A prioridade do "concílio", na medida em que é um acontecimento que reuniu uma assembléia de mais de dois mil bispos, aparece mais forte mesmo em relação a suas decisões, que não podem ser lidas como regras frias e abstratas, mas são como uma expressão e um prolongamento do próprio acontecimento4.
    
Essa teoria de um novo início na Igreja é a justo título atacada por Mons. Marchetto: "Se, na Igreja o "acontecimento" não é assim tão importante e torna-se uma ruptura, uma novidade absoluta, o nascimento de uma nova Igreja, uma revolução copérnica, a passagem para um outro Catolicismo... essa perspectiva não poderá nem deverá ser aceita, precisamente por causa da especificidade católica"5.
Aprovamos o princípio segundo o qual, no ensino da Igreja, não pode haver realmente nada de novo, porque a Igreja, como magistralmente ensina São Vicente de Lérins, "na sábia fidelidade às antigas doutrinas, só procura, com extremo zelo, fazer o seguinte: aperfeiçoar e purificar o que ela recebeu dos antigos em forma de esboço; consolidar e reforçar o que já foi exprimido com precisão; guardar o que já foi confirmado e definido". Entretanto, é necessário fazer no mínimo uma crítica precisa em relação à posição de Marchetto, saudada com entusiasmo pelo cardeal Ruini, e compartilhada ao mesmo tempo por João Paulo II e pelo atual Pontífice, todos os dois partidários de uma leitura do Concílio à luz da Tradição".
Mons. Marchetto acusa diversas vezes a linha de interpretação da escola de Bolonha de ser "ideológica", isto é, de ler o Concílio segundo o critério preconcebido do acontecimento em ruptura e em descontinuidade com o passado. Alberigo e seus colaboradores detêm-se arbitrariamente nos textos do Concílio que dão mais importância ao momento da novidade, esquecendo, em contrapartida, aqueles que manifestam a continuidade com a Tradição6. Nessa perspectiva, Mons. Marchetto opõe a sua linha de interpretação na sua opinião, mais fiel às intenções dos próprios padres conciliares que considera o Concílio como um todo7. Nessa perspectiva, compreender-se-ia que, nos textos conciliares, "houve um aggiornamento... a coexistência de nova et vetera (coisas novas e antigas), de fidelidade e de abertura, como o demonstram, além do mais, todos os textos aprovados no Concílio"8.  
  
Tal afirmação em si é problemática, pois é justamente sobre as nova que se coloca a questão. De nada serve demonstrar que há textos em continuidade com o ensino de sempre (o que ninguém jamais discutiu); o problema, ao contrário é a presença de elementos novos e ilegítimos que provêm do pensamento moderno, condenado diversas vezes e não de um aprofundamento do depositum fidei. Mas este problema, só este, já mereceria ser tratado à parte, e já foi objeto de um considerável número de estudos.
  
Dizíamos que a escola de Mons. Marchetto acusa a escola de Bolonha de ideologismo. Mas num certo sentido, é o próprio Mons. Marchetto que cai, por sua vez, numa espécie de ideologismo, ao afirmar: "O acontecimento, portanto, é um sínodo ecumênico..., portanto não há que considerar como um preconceito o fato de analisá-lo como tal, a partir do que ele é para a fé católica, mesmo com seu caráter próprio, que não pode contradizer o que os outros Concílios ecumênicos definiram"9.
   
Com essa afirmação, Mons. Marchetto pressupõe o que deveria ser demonstrado, isto é, que o Concílio Vaticano II goza da infalibilidade que caracterizou os Concílios ecumênicos precedentes e, conseqüentemente, que ele não pode conter em si nada que esteja em contradição não apenas com as definições dos outros Concílios, mas também com todo o Magistério ordinário precedente. Eis o ponto determinante, a viga mestra que sustenta toda a argumentação.
    
Essa questão é de uma grande importância e não pode ser evitada; ela aflige a consciência de muitos católicos, que fazem da fidelidade ao Concílio Vaticano II um problema de consciência, e consideram que a presença de elementos discutíveis nos textos do Concílio poderia de certo modo ferir gravemente o dogma da infalibilidade do Papa, ou colocar em discussão a continuidade do ensino da Igreja. A acuidade com a qual esse problema é sentido manifesta-se igualmente no fato de que o livro de mons. Marchetto já foi reeditado apenas alguns meses depois de sua primeira publicação.
  
Claro que a questão central é a do valor dos documentos do Concílio. A intenção de nossa intervenção é de responder as perguntas mais freqüentes: Os ensinamentos de um Concílio ecumênico (no caso, o Vaticano II) gozam ipso facto de infalibilidade? Quais são as condições para que um ensinamento seja infalível? É possível discutir um pronunciamento oficial da hierarquia católica?
A conclusão a que chegamos, e que tentaremos apresentar, articula-se do seguinte modo:
O Concílio Vaticano II:
1. Quanto ao valor dos documentos: pode ser discutido;
2. Quanto ao conteúdo dos documentos: deve ser discutido;
3. Quanto às condições atuais: deve ser colocado entre parênteses.
Capítulo Segundo: quaestio de quibus numquam fallitu (da Infalibilidade)
Interrogar-se sobre o valor dos documentos do Concílio implica fazer uma reflexão mais geral de potestate Magisterii (sobre o poder do Magistério).
Hoje, no mundo católico e no mundo não católico, são difundidas duas posições extremas, todas as duas errôneas e perigosas; posições que podemos considerar como as duas objeções principais a nossa tese: a dos infalibilistas e a dos que limitam a infalibilidade às decisões ex cathedra.
  
[Nota metodológica importante: construímos nossa argumentação, nesse segundo capítulo, de acordo com o esquema clássico da Summa Theologiae, cuja clareza lógica e explicativa é inigualável. Apresentamos os videtur quod, ou seja, as possíveis objeções à tese (seguidas de um número), que serão resolvidas no final. Entre esses dois pontos objeções e resoluções desenvolveremos o corpus da argumentação].
2.1 Videtur quod
Objeção 1: Há aqueles que poderíamos denominar de "infalibilistas", que consideram que nenhuma declaração oficial pode ser discutida, de modo nenhum, e com razão ainda mais forte se tal declaração for expressa da forma extraordinária que é um Concílio. Eles se referem freqüentemente à obediência cega inaciana, segundo a célebre expressão perinde ac cadaver, ou citam a décima terceira regra do sentire cum Ecclesia tirada dos Exercícios de Santo Inácio: "Para não nos afastarmos em nada da verdade, devemos sempre estar dispostos a crer que o que nos parece branco é preto, se a Igreja hierárquica assim o determinar; pois é necessário crer que entre Jesus Cristo, Nosso Senhor, que é o Esposo, e a Igreja, que é sua Esposa, há um só Espírito que nos governa e dirige para a salvação de nossas almas. Porque pelo mesmo Espírito e Senhor nosso, que deu os dez Mandamentos, é regida e governada a nossa Santa Madre Igreja"10.
  
É nessa mesma linha que está a afirmação categórica de Pio XII: "Que se em seus Atos, os Soberanos Pontífices fizerem um julgamento sobre uma questão até então discutida, fica então patente para todos que, conforme o espírito e a vontade dos próprios Soberanos Pontífices, essa questão não poderá mais ser tida como questão livre entre teólogos"11.
  
Chegando a esse ponto, aparecem apenas duas soluções: ou alinhar-se com as declarações dos Pontífices [conciliares], considerando-as em continuidade com o ensino dos predecessores, mesmo que o contrário seja evidente12, ou considerar que a sede [de Pedro] está vacante.
  
Objeção 2: Há aqueles que limitam a infalibilidade às decisões ex cathedra, deixando total liberdade de julgamento quanto às outras declarações. Para eles, em geral, a infalibilidade concerne exclusivamente o papa no ato de definir uma doutrina em matéria de fé e de moral, isto é, quando o objeto está diretamente ligado às verdades reveladas por Deus, claramente ligadas à Revelação (de fide) e/ou quando o Papa fala solenemente. O texto chave de referência é o do Concílio Vaticano I: "o Pontífice Romano, quando fala ex cathedra, isto é, quando, cumprindo seu ofício de pastor e de doutor de todos os cristãos, define em virtude de sua suprema autoridade apostólica, que uma doutrina em matéria de fé ou de moral deve ser admitida por toda a Igreja, goza... dessa infalibilidade de que o Divino Redentor quis que sua Igreja fosse dotada, quando ela define uma doutrina concernente à fé ou na moral"13. Conseqüentemente, as outras declarações, isto é, tanto aquelas que não têm ligação direta com a dogmática e a moral, quanto as que emanam de encíclicas, condenações, etc., só teriam algum caráter obrigatório temporariamente.
  
Essa posição pode ser encontrada em diversos níveis, do simples fiel à alta hierarquia, especialmente entre os defensores do Concílio Vaticano II. Estes, na verdade, apesar de constatarem oposições teoricamente insolúveis entre os textos do Vaticano II e certos ensinamentos dos Papas precedentes, especialmente os textos que dizem respeito a condenações de diferentes aspectos da modernidade (cf. a célebre afirmação do então cardeal Ratzinger sobre a Gaudium et Spes, qualificando-a de "contra-syllabus"), consideram essas condenações como declarações passíveis de revisão, nas quais a Igreja não engajou a plenitude de sua autoridade.
  
2.2 Sed Contra
1- A infalível garantia da assistência divina não está limitada apenas aos atos do Magistério solene; ela estende-se também ao Magistério ordinário, sem entretanto engajar nem assegurar da mesma maneira todos os atos14.
2- Para a infalibilidade do papa e do Magistério ordinário da Igreja "é necessário que a verdade ensinada seja proposta como já definida ou como tendo sido sempre crida ou admitida pela Igreja, ou como atestada pelo acordo unânime e constante dos teólogos como verdade católica"15.

2.2.1 Verdade e Autoridade
Parece-nos oportuno começar por uma consideração geral. A crise atual contribuiu para o surgimento de uma mentalidade muito difundida no mundo católico, mas que não é uma mentalidade católica. Referimo-nos a essa idéia banalizada de que a obediência ao Papa e aos bispos deveria ser cega, incondicional, isto é, justificada pela autoridade que eles representam, independentemente do que eles ensinam. Tal mentalidade deixa transparecer um pensamento legalista, segundo o qual uma afirmação seria verdadeira por ter sido pronunciada por uma autoridade legítima, e não por causa de sua verdade intrínseca. Assim, seria a autoridade que criaria o direito e a verdade, e ela não limitar-se-ia a reconhecê-los, guardá-los e ensiná-los.
   
Esta posição pode ser resumida da seguinte maneira: "o próprio do catolicismo não é a verdade comprovada e mantida pela autoridade, ao contrário, é a autoridade, fonte de uma "verdade" que não tem valor em si, mas no ditame que a consagra"16. Mas essa posição, repetimo-lo, não é a posição da Igreja católica, que recebeu de Nosso Senhor um ensinamento completamente diferente. O próprio Jesus quis ressaltar que "Minha doutrina não vem de Mim, mas d'Aquele que Me enviou. Se alguém quiser fazer a vontade d'Ele reconhecerá se minha doutrina vem de Deus, ou se falo de Mim mesmo" (Jo. 7, 16-17). E São Paulo, seu vas electionis, não diz outra coisa: "Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema!" (Gal. 1, 8). Enfim, o texto de Pastor Aeternus, que define a infalibilidade do Papa reforça a idéia de que "O Espírito Santo foi prometido aos sucessores de Pedro não para que eles proponham, por Sua revelação, uma nova doutrina, mas para que guardem religiosamente e ensinem fielmente, graças à Sua assistência, a revelação transmitida pelos Apóstolos, isto é, o depósito de fé"17.
   
A perspectiva católica é simples: a autoridade está a serviço da verdade. Portanto, de modo algum é possível exigir obediência quando o ensino proposto é contrário à verdade. Isso não significa que o julgamento sobre a verdade seja deixado por conta do livre-arbítrio de cada um. Entre os dois extremos (obediência absoluta e livre-arbítrio) há uma gradação, que será objeto de nossa análise logo a seguir. Mas antes é necessário repetir que a autoridade existe na Igreja como um meio, e não como um fim. Na verdade, é justamente por causa dessa grande confusão sobre a relação entre autoridade e verdade que os "revolucionários" puderam introduzir os germes da crise atual para a corrente sanguínea católica, sem que os "anticorpos" reagissem à terrível infecção. Abusando da obediência para impor suas falsas doutrinas, a cada tentativa que alguém fizesse para manifestar seu desacordo, utilizaram a acusação de desobediência para isolar o pobre infeliz e assim, quebrar toda e qualquer resistência. É este mau uso da virtude de obediência que Mons. Lefebvre magistralmente definiu como "o golpe de mestre de Satanás".
  
2.2.2 Magistério infalível e Magistério canônico18  
O Magistério da Igreja, cujo poder reside ou junto ao Pontífice isoladamente ou junto ao episcopado cum Petro et sub Petro, não se expressa sempre no mesmo nível.
O grau mais alto do Magistério compreende a Revelação divina que Jesus confiou à sua Igreja para que ela a guarde e transmita fielmente. Nesse nível, a infalibilidade do Magistério está garantida.
Acompanhemos passo a passo a afirmação de Billot: "O poder infalível do magistério tem como objeto primário coisas de fé e de costumes que estão contidas formalmente no depósito da revelação católica, de modo explícito ou implícito"19.
O teólogo jesuíta considera o objeto (quae continentur in deposito catholicae revelationis), isto é, tudo que o Cristo ensinou aos Apóstolos e tudo o que os próprios Apóstolos aprenderam do Espírito Santo, e que nos é dado tanto pelas Escrituras quanto pela Tradição não escrita. Isso significa que neste nível, a infalibilidade do Magistério "estende-se somente às verdades reveladas por Deus sobrenaturalmente"20.
"Em segundo lugar, [o poder infalível do magistério] se estende também a outras verdades não reveladas em si mesmas, que, no entanto, são requeridas para que o depósito da revelação seja conservado íntegro, e, nomeadamente, se estende às numerosas condenações de doutrina e os fatos dogmáticos"21. Isso significa que Cristo prometeu Sua assistência especial não apenas para que a Igreja receba e transmita fielmente seu ensinamento, mas também para que ela o guarde e o desenvolva ao longo dos séculos. Eis porque o Magistério infalível se estende também às verdades incluídas nas precedentes, mas não ainda explicitamente enunciadas quoad nos, e também às proposições a que ele garante a verdade de modo absoluto (definições infalíveis, mas não dogmáticas), desde que não sejam objeto de fé divina.
  
Nesse ponto o cardeal Journet faz uma reflexão muito importante e de muitas conseqüências; ele afirma que, para os três tipos de verdades indicadas acima, o Senhor Jesus dá a sua Igreja uma assistência especial, uma assistência absolutamente infalível. Mas o Magistério da Igreja, acrescenta o cardeal, "não fundamenta, ele condiciona o assentimento infalível de fé. É esta sua mais alta função, e está absorvida pela assistência divina"22.
  
O Magistério infalível exerce portanto função de comunicação da verdade revelada; ele é verdadeira causa segunda, sua ação não fundamenta a infalibilidade do conteúdo (que é fundamentada em Deus, que não pode nem se enganar nem nos enganar), mas de certa forma a garante.
   
Pode-se compreender a infalibilidade do ensinamento do romano Pontífice quando ele define ex cathedra uma verdade como sendo revelada, como foi o caso do Vaticano I. Na verdade, o que o Papa faz é apenas declarar solenemente o que o próprio Deus revelou por Cristo ou pelos Apóstolos; a obediência ao Papa é, realmente, a obediência direta ao próprio Deus, e obediência indireta ao Papa como Seu instrumento e Seu intermediário.
Os problemas, por assim dizer, começam em outro nível, que comumente chamamos de "verdades especulativas secundárias". Esse último adjetivo poderia induzir a um desagradável equívoco, o de fazer pensar que essas verdades não teriam importância para a conservação da fé.
  
Na verdade, existem muitas verdades que não pertencem ao depositum fidei mas estão a ele ligadas (como por exemplo as verdades filosóficas da philosophia perennis, que teve em Santo Tomás sua mais alta expressão, e que a Igreja inúmeras vezes mandou que se ensinasse e seguisse). Há também as verdades ainda não definidas pela Igreja de modo imutável (por exemplo as conclusões teológicas universalmente ensinadas ou cridas).
   
Essas verdades são garantidas prudencialmente (de maneira diferente que a autoridade absoluta, que concerne as verdades especulativas primárias) na medida em que a Igreja não é mais um simples intermediário dos ensinamentos divinos; "ela age em virtude de seu poder canônico, que promulga o que convém ou não ensinar e crer, para preservar a inteligência dos fiéis dos perigos que ameaçam sua fé... Nesse momento, a Igreja não intervém, como na fé divina, a título de simples condição de nosso assentimento. Ela própria torna-se fundamento imediato de um assentimento (cujo fundamento mediato é Deus, que rege a Igreja) que se pode chamar de... obediência eclesiástica, fé eclesiástica, assentimento religioso, piedoso assentimento"23.
   
Que tipo de obediência, então, deve-se a esse tipo de Magistério?
  
Primeiramente, é preciso enfatizar que, no seio desse vasto domínio das verdades que gozam de uma assistência prudencial, há uma diferença decisiva. Existe na verdade ensinamentos que a Igreja propôs de modo constante e universal, nos quais ela entende estar utilizando a plenitude de sua autoridade prudencial. Nesse caso, "não hesitamos em dizer que o Magistério propõe tais verdades em virtude de uma assistência prática prudencial, que é realmente e apropriadamente infalível, de sorte que estaremos seguros da prudência de cada um desses ensinamentos, e portanto, praticamente seguros da verdade intrínseca, especulativa, de cada um deles"24. Nesse caso fala-se não de verdade infalível, mas de certeza infalível (infallibilis securitas).
  
Além do mais, há ensinamentos nos quais a Igreja não entende estar utilizando a plenitude de sua autoridade prudencial; nesse caso, "diremos que o Magistério propõe tais ensinamentos de um modo falível"25.
   
Disso tudo podemos concluir o que se segue: no caso do Magistério declarativo, pelo fato que se obedece propriamente a Deus e à Igreja somente enquanto mediadora, a obediência devida será de ordem teologal (própria da virtude teologal da fé). Quanto ao Magistério prudencial, em contrapartida, a obediência devida depende do grau com o qual o Magistério engaja sua autoridade: "se o Magistério é natural, a obediência será, por si, natural. Se o magistério se realiza de um modo analógico e sobrenatural, a virtude de docilidade e de obediência se realizará, também, de modo analógico e sobrenatural"26.
   
No caso da assistência prudencial falível, é então possível que o Papa ou uma Congregação romana se equivoquem. O que deverá ser feito nesse caso? "Será lícito sentir de modo diferente ... duvidar...; no entanto, não será lícito contradizer publicamente, em reverência à autoridade sagrada ...; mas deve-se guardar o silêncio, que é chamado obsequioso"27. Entretanto, queremos enfatizar que, no caso de perigo próximo para a fé, mesmo a repreensão pública é necessária28.
2.3 Solução das dificuldades
Resposta à objeção 1: O texto de Santo Inácio é preciso: "Para não nos afastarmos em nada da verdade, devemos sempre estar dispostos a crer que o que nos parece branco é preto, se a Igreja hierárquica assim o determinar". O verbo utilizado nos envia diretamente ao primeiro grau do Magistério, o Magistério infalível. Vimos de fato que o ato correspondente a tal ensinamento é a obediência da Fé que adere à verdade revelada por Deus e transmitida pela Igreja em virtude da própria autoridade Daquele que revelou.
     
Essa obediência "cega" do ponto de vista humano (no sentido de que não se compreende a evidência racional da verdade relevada) é na realidade esclarecida pela virtude teologal da Fé, cuja certeza é superior a qualquer evidência intelectual porque é Deus quem revela. Mas no caso em que a Igreja hierárquica não pretenda definir nada, tal obediência sobrenatural seria desproporcional em relação a seu objeto. Repetimos: a obediência deve depender do grau com o qual o Magistério emprega sua autoridade. Assim fica resolvida a primeira dificuldade.
  
Pode-se raciocinar da mesma maneira sobre o ensinamento de Pio XII. O próprio Pontífice, de fato, especifica que o assentimento deve ser dado "segundo a intenção e a vontade dos Pontífices". Trata-se ainda da importância da intenção de querer definir alguma coisa ou de engajar o mais alto grau de sua autoridade.
Resposta à objeção 2: Respondemos amplamente a essa objeção no decorrer de nosso texto, quando falamos do Magistério canônico. Reafirmamos a noção segundo a qual a infalibilidade do Magistério estende-se além do ensinamento ex cathedra definido pelo Concílio Vaticano I, nas condições subscritas. Billot afirma com muita clareza: "Tudo o que, seja através de um juízo solene, seja através do magistério ordinário e universal, é proposto pela Igreja como sendo revelado por Deus deve ser crido com fé divina, e quem resistir com pertinácia incorre em heresia. As demais verdades definidas pelo mesmo magistério, parece que devem ser cridas com fé eclesiástica, e não divina"29.
O ponto chave, que implica obediência à Fé, é o fato de se ensinar alguma coisa "tamquam a Deo revelatum". No caso da fé eclesiástica, ao contrário, é necessário, repetimos mais uma vez, que alguma coisa seja definida. Isso nos remete à distinção feita acima entre uma assistência prudente falível e uma assistência prudente infalível.
  
Capítulo Terceiro: o Concilio Vaticano II em questão
Depois de ter esclarecido os princípios que a reflexão teológica nos oferece, resta ver de que modo esses princípios são aplicáveis ao Concílio Vaticano II.
Permitam-nos, antes de mais nada, colocar em evidência um corolário da argumentação precedente: "O que acabamos de expor seria aplicável também a um Concílio ecumênico, ao que comumente é considerado como um ato do magistério extraordinário"?
Recorremos mais uma vez ao raciocínio do cardeal Journet: "O poder de dirigir a Igreja universal reside primeiro no Soberano Pontífice, depois no colégio episcopal unido a ele; e este poder pode ser exercido ou pelo Soberano Pontífice exclusivamente, ou por ele e o colégio episcopal solidariamente. O poder do Soberano Pontífice sozinho e o poder do Soberano Pontífice unido ao colégio apostólico constituem não dois poderes distintos, mas um só poder supremo considerado, sob um aspecto, como a cabeça da Igreja docente onde ele reside integralmente como em sua própria fonte; sob outro aspecto, concomitantemente como a cabeça e o corpo da Igreja docente..." 30
A conseqüência dessa verdade é que as decisões de um concílio "são peremptórias quando são pronunciadas em colaboração atual com o Soberano Pontífice, ou ulteriormente ratificados por ele"31.
A distinção entre o ensinamento do Papa seorsim ou simul cum Episcopis concerne, portanto, a mobilidade de exercício do Magistério (o Chefe sozinho ou Chefe e todo o corpo docente), e não sua essência.
O grau de infalibilidade com que o Magistério se exprime depende portanto da vontade, da intenção do Papa e dos bispos a ele unidos. Não há coincidência definitiva entre Magistério extraordinário (no caso presente, um Concílio) e Magistério infalível.
As duas características (caráter extraordinário e infalibilidade), na verdade se colocam em dois níveis qualitativamente diferentes. Enquanto o caráter ordinário ou extraordinário refere-se à modalidade de expressão do Magistério, a infalibilidade diz respeito à autoridade que a Igreja pretende engajar em determinado ensinamento. Imagina-se em geral que quanto mais alto o nível hierárquico que exprime um ensinamento, mais a autoridade da Igreja fica comprometida; conseqüentemente o ensinamento do Papa ou o de um concílio ecumênico comportaria automaticamente a plenitude da autoridade (infalibilidade) da Igreja. Mas não é assim, pois a modalidade com que o Magistério se exprime é um elemento importante mas não decisivo.
Para haver um ensinamento infalível, é certamente necessário que seja o Soberano Pontífice que ensina (sozinho ou através de um Concílio); mas esta condição não é suficiente. Há na verdade dois outros elementos que condicionam a autoridade de um ensinamento: a intenção e a matéria tratada.
Propomos então a seguinte distinção:
1. quanto à modalidade, pode-se ter um Magistério ordinário ou extraordinário. Este último pode exprimir-se através do caráter extraordinário do Papa (ex cathedra) ou através de um caráter extraordinário colegial (Concílio ecumênico).
2. quanto à autoridade engajada, um ensinamento pode gozar de uma:
a) infalibilidade absoluta,
b) prudencial infalível ou
c) prudencial falível, como vimos no segundo capítulo, de acordo com a intenção manifestada e a matéria ensinada.
Torna-se claro, agora, que o problema central reside nesses dois elementos: a intenção e a matéria.
3.1 A intenção
Quando nos interrogamos sobre o valor de um documento, é preciso verificar qual a intenção que tiveram o Papa ou o Concílio no ato de ensinar, intenção que pode se manifestar ou por fórmulas claríssimas ("Nós definimos, nós declaramos...), ou sem elas32.
O fato de que essa intenção seja um elemento fundamental e determinante do valor de um documento sempre foi implicitamente admitido, e até mesmo explicitamente ensinado. Já vimos que os textos teológicos apoiando a adesão ao ensinamento do Papa, mesmo quando este se exprime de modo ordinário, remetem à questão de sua intenção.
Qual é o fundamento dessa verdade? Porque a referência insistente quanto à intenção de um ensinamento?
A resposta a tais perguntas é de uma importância crucial para quem quer se orientar na crise atual. Realmente, se é verdade que a Igreja teve que enfrentar períodos mais ou menos longos de crise, não é menos verdade que o período em vivemos é de uma gravidade especial. Nas reflexões dos maiores teólogos católicos, não está mencionado em lugar nenhum o caso em que, durante quase meio século, o Papa ou um Concílio veiculem erros. Donde a importância de partirmos de premissas bem fundadas.
O ponto central a compreender é que um ensinamento do Papa ou de um Concílio não tem como conseqüência ipso facto uma obediência incondicional: esta depende e é proporcional à intenção com que o Magistério pretende engajar sua autoridade. Vejamos agora como demonstrar isso.
Para construir nossa argumentação, partiremos de certos textos da reflexão teológica de S. Tomás de Aquino. Primeiramente, "intelligendum est Deum operari in rebus, quod tamen ipsae res propriam habeant operationem".33 A causalidade universal de Deus não suprime a causalidade própria das criaturas, ao contrário, a sustenta. Por exemplo, é certo que é Deus quem nos dá o sol ou a chuva, mas isso não invalida a causalidade física, passível de ser conhecida pela razão humana.
O mesmo raciocínio deve ser aplicado nessa causalidade particular que é a liberdade humana. Também nesse caso, Deus não destrói, mas configura-se como necessário à liberdade humana e fonte dessa liberdade. Na verdade, o Todo-poderoso pode dar sem nada perder de seu poder, só ele pode comunicar-se sob forma de puro dom, e portanto sem tornar-se dependente do dom que faz. A incompatibilidade aparente que existe na filosofia moderna entre "todo-poderoso" e "livre" é devida ao fato de que Deus não é mais considerado como Deus, mas como realidade imanente ao mundo.
Portanto, para S. Tomás, a totalidade causativa da Causa primeira não é um fator inibidor e sim um fator constitutivo da causalidade das causas segundas. Em outros termos: Deus age de modo que podemos ser realmente a causa de nossas escolhas precisamente na medida em que nosso ser depende dEle. Conseqüentemente, se não dependêssemos dEle, que é todo-poderoso, não poderíamos ser livres, pois é próprio do todo-poderoso e somente dEle tornar-nos livres.
O que é preciso reter, na profunda reflexão de S. Tomás, não minimiza, ao contrário, fundamenta a causalidade criada (causa segunda), e conserva suas particularidades: "[a divina Providência] move todos os seres segundo sua condição, de modo que, sob a moção divina, as causas necessárias produzem seus efeitos de modo necessário, e as causas contingentes produzem seu efeito de modo contingente"34.
Ora, o ser humano é um ser livre, caracterizado por duas faculdades essenciais, a inteligência e a vontade, que lhe permitem executar atos humanos, isto é, atos nos quais ele não é simplesmente causa, mas causa livre. Os atos humanos se diferenciam dos atos do homem pelo fato de que estes últimos são executados pelo homem, mas não livremente. No ato humano, por outro lado, diz-se que o homem sui actus est dominus (é senhor de seus próprios atos).
Um texto da Summa contra Gentiles mostra que os atos humanos não são absolutamente diminuídos pela ação divina: "O fim último de cada criatura é alcançar a semelhança divina... Quem age de modo voluntário alcança a semelhança divina precisamente no fato de agir livremente; vimos que, na verdade Deus tem um livre-arbítrio (l. I, c. LXXXVIII). Conseqüentemente, o livre-arbítrio não é subtraído pela Providência"35.
Eis então o ponto central: a ação providencial "respeita" a ordem criada, e portanto não interfere na liberdade humana naquilo que ela estabeleceu como pertencente ao livre-arbítrio humano.
Ora, o ato humano é sempre caracterizado por três componentes: o objeto que especifica o ato, a intenção daquele que age; as circunstâncias nas quais ele age. Desses três elementos, o que constitui o aspecto formal é a intenção, portanto ela é o elemento fundamental para julgar a moralidade de um ato, pois é a intenção que indica tendência em direção ao fim (motus voluntatis in finem) 36.
  
De tudo isso conclui-se claramente que, onde não houver intenção, não existe ato humano propriamente dito.
Aplicando essas considerações ao domínio teológico, podemos fazer fecundas reflexões.
Tomemos, por exemplo, o caso da inspiração da Santa Escritura. Sabe-se que o que distingue particularmente a perspectiva católica da perspectiva islâmica, é o fato de que a inspiração divina não substitui de modo algum as faculdades dos escritores sagrados, o que aconteceria se considerássemos a inspiração como uma espécie de ditado. Ao contrário, a intervenção divina pressupõe e utiliza as capacidades humanas dos hagiógrafos. Reencontramos aqui o princípio tomista segundo o qual a causa primeira (a inspiração divina) conserva todas as características próprias à causa segunda (o autor humano), de modo que este último seja, em sua própria ordem, verdadeira causa. Os escritores sagrados agiram então inteligente e voluntariamente; seus atos não foram "substituídos" pela intervenção divina, mas elevados por ela.
Pensemos agora na ação sacramental. A Igreja ensina que o ministro do sacramento deve ter a intenção, mesmo que não seja atual, de fazer o que faz a Igreja, isto é, ordenar sua ação ao fim para o qual Deus a instituiu. Sem essa intenção, o sacramento é inválido. Reencontramos claramente o princípio tomista já enunciado: também na ação sacramental, Deus não pede um ato mecânico, mas um ato humano, caracterizado pela intenção.
Se este princípio é válido para o munus sanctificandi, não se compreende porque ele não deveria ser válido para o munus docendi.
A transmissão, o ensino da fé é feito por ministros ordenados para esse fim. Ora, esses ministros são seres humanos e guardam suas características humanas. Se o Papa ou um Concílio, no ato de ensinar, não têm a intenção de ensinar alguma coisa como tendo sido revelada por Jesus Cristo, como tendo sido sempre ensinada pela Igreja, ou não pretendam usar a plenitude de sua autoridade (infallibilis securitas), não vemos porque a assistência divina deveria substituir a mediação humana, querida por Deus como humana.
Conseqüentemente, é só no caso em que o Pontífice pretende exercer a plenitude do Magistério que lhe é garantida essa infalibilidade ativa e passiva in docendo, que lhe permite não apenas ser guiado na definição de uma verdade, mas também ser corrigido e detido in extremis no caso em que se aproxime do caminho que leva ao ensinamento de uma heresia.
É o bem conhecido princípio tomista: gratia non tollit naturam, sed perficit (a graça não destrói a natureza, mas aperfeiçoa-a). Em sua assistência à Igreja, Deus não substitui as mediações, Ele as supõe na integridade de suas faculdades e as eleva acima das simples possibilidades humanas.
Essas mediações, à medida que são livres, devem entretanto querer colaborar com a graça divina, predispondo tudo que lhe é próprio para poder receber a plenitude da assistência divina.
3.2 A matéria
O segundo aspecto determinante é o que é ensinado: a matéria.
Num estudo apresentado no Congresso de Sim Sim Não Não de 2004, o professor Pasqualucci analisou o texto do segundo Concílio de Nicéia (787), que invalidava o conciliábulo de Constantinopla de 753, criado ad hoc para aprovar as teses iconoclastas.
Nesse texto são formuladas expressamente as condições necessárias para a validade de um Concílio, entre as quais figura a "profissão de uma doutrina coerente com os concílios precedentes"37. Diante de um Concílio (o de Constantinopla) que tinha entrado em contradição com os ensinamentos dos Concílios precedentes , a posição dos padres reunidos em Nicéia foi clara: "Como um Concílio, que não concorda com os seis Concílios santos e ecumênicos que o precederam, poderia ser o sétimo?"38.  É interessante observar a lógica dessa passagem: um Concílio é ortodoxo porque seu conteúdo é ortodoxo e não o inverso.
A ortodoxia da doutrina, sua conformidade com o ensinamento constante da Igreja, é portanto a condição sine qua non da validade de um Concílio (para aprofundar essa questão, remetemos o leitor à conferência do professor Pasqualluci publicada em Penser Vatican II quarante ans après. Actes du VIe. Congrès Théologique de Si Si No No. Rome, Janvier 2004. Courrier de Rome, 2004, pp. 75-128).
Esse princípio, que nos remete ao que afirmamos a respeito do sujeito da relação autoridade-verdade, manifesta de modo límpido a mens catholica: a autoridade está ao serviço da verdade; ela é um meio para que a verdade seja comunicada. A autoridade, dito de outro modo, não cria a verdade, ela a reconhece, guarda-a e ensina-a.
O sofisma subjacente a tantas concepções errôneas da autoridade pode ser enunciado da seguinte maneira: uma coisa é verdadeira, ela é legítima, porque ela é ensinada ou proposta pela autoridade. A perspectiva católica, ao contrário, assim como a de toda sã filosofia, afirma: desde que algo seja verdadeiro e legítimo, será ensinado e proposto pela autoridade.
Não são detalhes sem importância: a relação essencial encontra-se invertida, pois a razão de ser da autoridade é sua função instrumental em relação a uma ordem objetiva pré-existente. É bom repetir: a autoridade legítima é o meio, e não o fim. É por essa razão que a teologia afirma que o Magistério é a norma próxima da fé; o que significa "norma próxima", na verdade, se não há uma norma longínqua, mais alta, a que ela deverá conformar-se?
3.3 Conteúdo e intenção do Concílio Vaticano II
No caso do Concílio Vaticano II, é possível realizar o seguinte "percurso": a partir da constatação objetiva de proposições errôneas nos textos, pode-se remontar ao desvio da própria intenção do Concílio. A deformidade do conteúdo em relação ao Magistério infalível (absoluto ou prudentialiter) é ratio cognoscendi da deformidade da intenção. Muito já foi dito e escrito sobre esses dois aspectos. Remetemos portanto os leitores aos estudos correspondentes, que trazem à luz tanto os aspectos problemáticos de textos conciliares quanto a anomalia das intenções declaradas pelos papas do Concílio em seus discursos antes, durante e depois do Concílio. Resta-nos aqui apenas lembrar o que esses estudos demonstraram, com abundância de documentação:
I. O Concílio Vaticano II não tem uma intenção conforme à da Igreja. Na verdade, ele não foi convocado para defender e desenvolver o depositum nem condenar os erros modernos, e sim com outras finalidades, estranhas à natureza da Igreja. Eis as intenções de João XXIII:
I.I. O aggionarmento: "A finalidade do Concílio não é a discussão desse ou daquele tema da doutrina fundamental da Igreja", mas estudar e expor a doutrina "através de formas de estudo e da formulação do pensamento contemporâneo" (Joannes XXIII PP., Discours d'Ouverture de la première session, 11 octobre 1962, in Les documents du Concile Oecuménique Vatican II, Padoue, Gregoriana Editrice, 1967, pp. 1078-1079).
I.2. O ecumenismo terrestre da não conversão: "Eis a proposta do II° Concílio Ecumênico do Vaticano, [que]... prepara de algum modo e aplaina a via em direção à unidade do gênero humano, fundamento necessário para fazer que a cidade terrestre se torne à imagem da cidade celeste (Idem, p. 1082).
I.3. A não condenação dos erros: "A Esposa do Cristo prefere recorrer ao remédio da misericórdia a brandir as armas da severidade. Ela estima que, ao invés de condenar, ela responde melhor às necessidades de nossa época, colocando em evidência as riquezas de sua doutrina" (Ibidem, p.1079). O que Paulo VI disse é ainda mais claro:
I.4. A autoconsciência da Igreja: "Parece-nos que chegou a hora em que a verdade que diz respeito à Igreja do Cristo deva ser cada vez mais explorada, ordenada e expressa, não talvez através dessas fórmulas solenes chamadas definições dogmáticas, mas através de declarações pelas quais a Igreja diz a si própria, num ensinamento mais explícito e autorizado, o que ela pensa de si mesma" (Paulus VI PP., Discours, d'Ouverture de la deuxième session, 29 septembre 1963, in Les documents du Concile Oecuménique Vatican II, cit., p. 1095).
I.5. A intenção ecumênica: "A convocação de Concílio... tende a uma ecumenicidade que gostaria de ser total, universal" (Ibidem, p. 1098).
I.6. Diálogo com o mundo contemporâneo: "Que o mundo o saiba: a Igreja o vê com uma profunda compreensão, com uma verdadeira admiração, sinceramente disposta não a subjugá-lo, mas a servi-lo; não a depreciá-lo, mas fazer crescer sua dignidade; não a condená-lo, mas a apoiá-lo e salvá-lo" (Ibidem, p. 1100).
Todas essas intenções declaradas não podem de modo algum engajar a plenitude de autoridade da Igreja, que recebeu uma missão completamente diferente de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eis porque, diante dos textos conciliares, é preciso seguir as indicações do próprio secretariado geral do Concílio (16 de novembro de 1964): "Dado o costume geral dos concílios e a finalidade pastoral do Concílio atual, este define que somente devem ser considerados como sendo da Igreja os pontos referentes à fé e à moral, claramente declarados por ele. Quanto aos outros pontos propostos pelo Concílio, sendo um ensinamento do Magistério supremo da Igreja, todos os fiéis devem recebê-los e compreendê-los segundo o próprio espírito do Concílio, como resulta tanto da matéria tratada quanto da maneira pela qual ele se exprime, segundo as regras da interpretação teológica".
Conclui-se de tudo isso que o Concílio Vaticano II deve ser considerado como assistido prudencialmente pelo Santo Espírito, mas não segundo a infaillibilis securitas; e isso, porque o Concílio não tem a intenção de definir o que quer que seja , nem em relação à Revelação, nem em relação às conclusões teológicas. Além do mais, não há a menor certeza "da verdade intrínseca, especulativa" de cada um dos ensinamentos do Concílio.
E há um segundo aspecto:
II. Certos ensinamentos do Concílio Vaticano II não estão de acordo com o Magistério infalível da Igreja; eles se situam até freqüentemente numa linha oposta ao Magistério precedente. É o caso, por exemplo, do ensinamento sobre a liberdade religiosa, sobre a relação Igreja-Estado, sobre o ecumenismo.
CONCLUSÃO
Retomemos ponto por ponto a tese que apresentamos no início deste estudo.
Primeiramente afirmamos que o Concílio Vaticano II, quanto ao valor dos documentos, pode ser colocado em discussão e isso se deve às considerações feitas sobre a intenção do próprio Concílio. Contrariamente à afirmação de Monsenhor Marchetto, o Concílio não teve a intenção de engajar a plenitude da autoridade magisterial ou ao menos ele não fez isso nos pontos mais controvertidos.
As posições sobre a liberdade religiosa, por exemplo, ou sobre o ecumenismo, são apresentadas pelo Concílio como "verdades" adaptadas ao contexto cultural de hoje em dia. Portanto, elas não concernem, como dizia o cardeal Journet, "o que convém ou não ensinar e crer, se quisermos preservar a inteligência dos fiéis dos perigos que ameaçam sua fé". Ao contrário, concernem o que se deve pensar para melhor dialogar com o mundo contemporâneo; domínio que não engaja a plenitude da autoridade magisterial.
Monsenhor Marchetto (cf. SSNN 146 I ª. parte desse artigo) pressupõe então uma plenitude de autoridade que não existe.
Ele certamente possui o mérito de se ter oposto ao monopólio do prof. Alberigo e do Instituto de Bolonha, mas sua "solução", na realidade, não resolve nada, porque ela recusa a priori uma análise dos conteúdos problemáticos dos documentos conciliares.
A seguir, quanto ao conteúdo dos documentos, o Concílio deve ser colocado em discussão.
Se na realidade a ausência de intenção de engajar a plenitude da autoridade magisterial deixa aberta a possibilidade de haver erro, a constatação dos erros presentes nos textos constitui, nós vimos, um motivo suficiente para se colocar em discussão as partes problemáticas do Concílio.
Não é possível invocar uma leitura do Concílio segundo a Tradição se, além do mais, constata-se a presença de elementos que parecem contrários a essa Tradição.
Muito provavelmente, o problema é saber em que consiste essa Tradição, ou seja, saber se ela é considerada como depositum transmitido e desenvolvido ou se ela é compreendida de acordo com a acepção progressista, que a associa à mudança, mesmo no "essentialibus".
Face às afirmações conciliares que constituíram matéria para as condenações repetidas pelo passado, aplica-se o princípio: contra facta non valet argumentum.
Enfim, quanto às condições atuais, os pontos problemáticos do Concílio devem ser colocados ao menos entre parênteses.
Essa consideração prática pode parecer surpreendente; mas na verdade, ela nos parece a mais adaptada ao momento que estamos vivendo.
A urgência de um retorno à sã doutrina não precisa mais de ser demonstrada. Até Roma reconhece essa urgência, diante do impressionante processo de descristianização por um lado, e o enfraquecimento do catolicismo que acontece sob nossos olhos, por outro. Mas o mais freqüente é correr o risco de entrar num beco sem saída ao tentar abordar a questão do Vaticano II. Faz-se desse Concílio o que ele não é: o fundamento definitivo de fidelidade à Igreja católica, tanto para aqueles e são os mais numerosos que o defendem quanto para aqueles que o criticam. É essa a posição mais arriscada a paralisar a ação apostólica e desperdiçar energias.
É necessário, antes de qualquer outra coisa, reconhecer que esse Concílio não pode ser considerado do mesmo modo que os Concílios ecumênicos que o precederam, que definiram dogmas, condenaram heresias, invocaram a plenitude de sua autoridade para confirmar na fé o povo cristão, protegendo-o dos perigos.
Em segundo lugar, é preciso ter a coragem de reconhecer a falência do Concílio. O que segundo a voz geral devia ter uma finalidade essencialmente pastoral gerou uma grande confusão e um grande desvio. Nos textos conciliares, infelizmente, há "refúgio" para todas as posições, desde as mais progressistas às mais conservadoras, por causa da incrível ambigüidade dos textos; uma ambigüidade que ainda permanece voluntariamente conservada.
Tomemos, a título de exemplo, o caso do célebre subsistit in da constituição Lumen Gentium: se o objetivo do Concílio era de expor a fé numa linguagem mais adaptada à nossa época, e portanto mais compreensível para todos, por que utilizar tal terminologia? Por que recorrer a uma expressão de uso pouco corrente, a não ser para poder abrir caminho para as diferentes interpretações (não ortodoxas) desse texto na fase do pós-Concílio? O que impedia de dizer mais claramente: "a Igreja do Cristo é a Igreja católica", levando em consideração o apelo tantas vezes repetido de se ler o Concílio à luz da Tradição? Assim, esse texto pode ser interpretado tanto num sentido tradicional quanto num sentido progressista, dando margem a uma e outra interpretação, tornando-se uma ocasião de confusão e de discussões sem rumo.
Há outras passagens, entretanto, que não podem ser lidas à luz da Tradição, pois constituem uma absoluta novidade que entra em conflito com o ensino constante dos Papas precedentes. Os textos consagrados à liberdade religiosa, por exemplo, estão em contradição com o ensino pontifical que vinha sendo exposto desde Gregório XVI.
O Concílio demonstrou, e continua a demonstrar, que ele não é um ponto de referência seguro para que possa oferecer uma garantia da totalidade das bases da fé. Seus documentos escondem erros e equívocos que se tornam mais insidiosos na medida em que estão fugazmente escondidos no meio de textos que podem ser considerados, de modo geral, ortodoxos.
Para o bem da Igreja, é urgente voltar às fontes seguras da doutrina, aos ensinamentos garantidos pelo selo do Magistério infalível, sobretudo ali onde ele se pronunciou sobre os erros de nossa época.
(Sim Sim Não Não, nos. 146 e 147)
  1. 1. A. Marchetto, Il Concilio Ecumênico Vaticano II. Contrapounto per la sua storia, Cité du Vatican, Libreria Editrice Vaticana, 2005.
  2. 2. G. Alberigo, Breve storia del Concilio Vaticano II, Bologne, Il Mulino, 2005.
  3. 3. Cf. G. Alberigo, Brève histoire..., cit., p.163.
  4. 4. Ibidem, p. 12. Ver também essa afirmação do autor, colocada na conclusão do livro, e portanto de sentido mais forte: "Se a impulsão conciliar se fechasse sobre si mesma, isso causaria uma decepção muito grande, frustrando um excepcional movimento de espera e de disponibilidade, uma autêntica ocasião histórica." (p. 176).
  5. 5. A. Marchetto, Le Concile Oecuménique Vatican II, cit., p.381.
  6. 6. Cf. Ibidem, p. 359.
  7. 7. Cf. Ibidem, p.375.
  8. 8. Ibidem, p.386.
  9. 9. Ibidem.
  10. 10. Santo Inácio de Loyola, Exercícios espirituais, parágrafo 365.
  11. 11. Pius PP.XII, Humani generis, 12 de agosto de 1950.
  12. 12. Lembro-me que um de meus amigos, bastante conhecido na Itália por suas posições conservadoras, respondeu-me um dia, perante as provas de evidentes oposições entre as posições de João Paulo II e as de seus predecessores: "Adoto, em relação às encíclicas de João Paulo II, o comportamento que Dei Filius recomenda diante das oposições aparentes entre a fé e a razão: como não pode haver oposição entre elas, considero que a oposição é apenas aparente, mesmo que por enquanto não se consiga demonstrá-lo".
  13. 13. Concílio Vaticano I, Pastor Aeternus, 18 de julho de 1870.
  14. 14. Labourdette, Revue Thomiste, 1950, p.38.
  15. 15. Dict. De Théologie Catholique, article Infaillibilité du pape, VII, col.1705.
  16. 16. L. Méroz, L'Obéissance dans l'Église. Aveugle ou clairvoyante?, Genebra, Claude Martingay, p.39. Note-se que o autor faz essa afirmação para refutá-la em seguida, pois ele não compartilha esse ponto de vista.
  17. 17. Concílio Vaticano I, Pastor Aeternus, 18 de julho de l870. Salaverri afirma que o Concílio Vaticano I, apesar de fazê-lo implicitamente, definiu que "o Magistério é tradicional, isto é, instituído não para ensinar novas verdades, mas para guardar, defender e enunciar o depósito de verdade recebido" (I. Salavarri, Sacrae Theologiae Summa, t. I, III, parágrafo 512).
  18. 18. O termo "canônico", em relação ao Magistério, não é habitual em teologia. O cardeal Journet o emprega para indicar que, nesse caso, a Igreja utiliza seu poder canônico para ensinar ou condenar qualquer coisa que, mesmo não estando contida na Revelação divina, condiciona sua salvaguarda e sua promulgação.
  19. 19. "Potestas infallibilis magisterii pro objecto primario habet res fidei et morum quae in deposito catholicae revelationis formaliter explicite vel formaliter implicite continentur" L. Billot, De Ecclesia Christi, I,th. XVII.
  20. 20. B. Bartmann, Manuel de Théologie Dogmatique, II, parágrafo 141.
  21. 21. "Secundario vero [potestas infallibilis magisterii] extenditu ad alias etiam veritates in se non revelatas, quae tamen requiruntur ut revelationis depositum integrum custodiatur, et nominatim quidem ad multíplices propositionum censuras et ad facta dogmatica" L. Billot, De Ecclesia Christi, cit.
  22. 22. Ibidem, p. 446.
  23. 23. Ibidem, p. 454.
  24. 24. Ibidem, p. 456.
  25. 25. Ibidem.
  26. 26. Ibidem, p. 454.
  27. 27. "Licebit dissentire... licebit dubitare...; nec tamen pro reverentia auctoritatis sacrae faz erit publice contradicere...; sed silentium servandum est, quod obsequosium vocant" I. Salaverri, Sacrae Theologiae Summa, cit., III, parágrafo 675.
  28. 28. Cf. Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, q.XXXIII, a.4, e também Super Epistolam ad Galatas, lect.II.
  29. 29. Quidquid ab Ecclesia sive solemni iudicio, sive ordinario et universali magisterio tamquam a Deo revelatum proponitur, fide divina credendum est, et pertinaciter obnitens incurrit haeresim. Caetera vera sed ecclesiastica fice videntur esse credenda L. BILLOT, De Ecclesia Christi, cit., th. XVIII.
  30. 30. C. Journet, L'Église du Verbe Incarné, cit., p. 531.
  31. 31. C. Journet, L'Église du Verbe Incarné, cit., p. 536.
  32. 32. C. Journet, L'Égise du Verbe Incarné, cit., p. 578: "O "sentido" de um ato pontifical, sua intenção de dirimir definitivamente uma questão, pode aparecer com evidência, independentemente de todas as fórmulas convencionais".
  33. 33. Summa Theologiae, I, q. CV, a. 5: "é necessário compreender que Deus age nas coisas de modo que estas guardem sua operação própria."
  34. 34. Summa Theologiae, I-II, q. X, a.4: "ex causis necessariis per motionem divinam sequuntur effectus ex necessitate; ex causis autem contingentibus sequuntur effectus contingentes".
  35. 35. Summa contra Gentiles, I, c. LXXII: "Finis autem ultimus cujiuslibet craturae est ut consequatur divinam similitudinem in hoc quo libere agit; ostensum est enim (1. I,c.LXXXVIII) liberum arbitrium in Deo esse. Non igitur per providentiam subtrahitur voluntatis libertas".
  36. 36. Para uma análise detalhada da intentio, cf. Summa Theologie, I-II, q. XII.
  37. 37. G. Alberigo, Introdução a Décisions des conciles oecuméniques, Turin, UTET, 1978, p. 34.
  38. 38. Cit. In V. Peri: Les Conciles et les Eglises. Recherche historique sur la tradition d'universalité des synodes oecuméniques, Rome, 1965, pp.24-25.





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