sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Fratres in Unum entrevista o Professor Roberto de Mattei.

   

Nesta semana, a obra O Concílio Vaticano II: uma história nunca escrita, de autoria do Professor Roberto de Mattei, foi apresentada em Portugal. Por esta ocasião, o autor gentilmente aceitou trocar algumas palavras com o Fratres in Unum.
De Mattei nasceu em Roma, em 1948. Formou-se em Ciências Políticas na Universidade La Sapienza. Atualmente, leciona História da Igreja e do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, no seu departamento de Ciências Históricas, do qual é o diretor. Até 2011, foi vice-presidente do Conselho Nacional de Investigação da Itália, e entre 2002 e 2006, foi conselheiro do Governo italiano para questões internacionais. É membro dos Conselhos Diretivos do Instituto Histórico Italiano para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade Geográfica Italiana. É presidente da Fundação Lepanto, com sede em Roma, e dirige as revistas Radici Cristiane e Nova Historica e colabora com o Pontifício Comitê de Ciências Históricas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja.
Primeiramente, Professor Roberto de Mattei, muito obrigado por atender ao nosso convite. A sua obra tem causado grande agitação nos meios eclesiais — entre o acolhimento entusiasmado de uns e a recepção nada amistosa de outros. Afinal, o que há de tão especial em seu trabalho que o caracterize como “uma história nunca escrita”?
Professor Roberto de Mattei.
Professor Roberto de Mattei.
O Concílio Vaticano II foi considerado, por 50 anos, como um monólito histórico-teológico que era aceito em bloco, resultando com que muitos o tenham rejeitado em bloco. A minha abordagem é a de distinguir os documentos do Concílio do evento histórico, procurando, no âmbito histórico, a verdade dos fatos. Isso significa que o Concílio Vaticano II deve ser encarado não só na esfera teológica, mas, sobretudo, na histórica, como evento.
Alguns me acusam de usar o mesmo método da Escola de Bolonha, enquanto há uma diferença substancial. A escola progressista de Bolonha transforma a história em um locus theologicus, atribuindo ao historiador o papel do teólogo. Eu, pelo contrário, afirmo a distinção dos papéis. O teólogo exerce a sua reflexão sobre os textos; o historiador, sem desprezar os textos, reserva a sua atenção sobretudo à sua gênese, às suas consequências, ao contexto em que elas se situam. Os dois níveis, o histórico e o hermenêutico, não podem ser confundidos, a menos que você acredite que a história coincida com a sua interpretação. É só após a reconstrução histórica, e não antes, que intervém o teólogo ou o Pastor, para formular os seus juízos. Se, então, os fatos históricos colocam problemas teológicos, o historiador não pode ignorá-los e deve trazê-los à luz, remetendo-se sempre à doutrina da Igreja.
Como o senhor avalia a recepção do livro por parte dos clérigos, em especial dos bispos? Alguma apreciação do Papa ou de seus colaboradores mais próximos? É possível entrever alguma abertura das autoridades eclesiásticas a uma discussão sobre esse tema, até hoje considerado tabu?
Roberto de Mattei e o Cardeal Burke.
Cardeal Burke e Roberto de Mattei
Tenho recebido expressões de aprovação e elogios por parte de bispos e cardeais, não só italianos. Entre estes, o Cardeal Raymond Leo Burke e Dom Athanasius Schneider. Na Itália, o meu livro foi apresentado com sucesso em muitas dioceses e, em alguns casos, os apresentadores foram os próprios bispos, como Dom Luigi Negri, bispo de Montefeltro-San Marino, e Dom Simone Giusti, bispo de Livorno. Ademais, é de conhecimento que o Cardeal Brandmüller organizou, em 2012, uma série de debates “a portas fechadas” sobre o Concílio Vaticano II com estudiosos de diferentes tendências. Fui convidado para estas discussões, tendo a oportunidade de apresentar a minha tese e de criticar as de outros estudiosos presentes. Tudo se desenvolveu sempre em um clima de sereno e profícuo aprofundamento cultural.
Nas últimas décadas, percebe-se claramente uma polarização entre os historiadores do Vaticano II. De um lado, as idéias da Escola de Bolonha, que prevalecem atualmente no panorama eclesial; de outro, uma corrente mais recente, cujo expoente de maior destaque é o Arcebispo Agostino Marchetto. O senhor poderia expor, em linhas gerais, as teses defendidas por cada uma destas correntes? Como a sua obra se enquadra nesse contexto?
A corrente hermenêutica hoje dominante é a Escola de Bolonha, que teve seu iniciador no prof. Giuseppe Alberigo e hoje é representada principalmente pelo prof. Alberto Melloni. Esta escola contrapõe aos documentos do Vaticano II o seu “espírito”, e vê no evento conciliar um Pentecostes para a Igreja “traído” por Paulo VI e seus sucessores. A sua expressão é uma História do Concílio Vaticano II, em cinco volumes, publicada em vários idiomas, em um trabalho de vários autores de diferentes nacionalidades. Contra a escola de Bolonha, em 2005, vem a campo Dom Agostino Marchetto, com o volume Il Concilio ecumenico Vaticano II. Contrappunto per la sua storia (Libreria Editrice Vaticana, 2005), que foi seguido, neste ano, por um outro estudo: Il Concilio Ecumenico Vaticano II. Per la sua corretta ermeneutica (Libreria Editrice Vaticana, 2012). Dom Marchetto não escreveu uma história alternativa à de Bolonha, mas se limitou a examinar criticamente alguns estudos de autores que ele considera “descontinuístas”, tanto do lado progressista como tradicional (e eu sou um deles), em nome de “hermenêutica da continuidade”. Porém, contra a história tendenciosa de Alberigo e seus seguidores não basta afirmar que os documentos do Concílio devem ser lidos em continuidade e não em ruptura com a Tradição. Quando, em 1619, Paolo Sarpi escreveu uma história heterodoxa do Concílio de Trento, não lhe foram contrapostas as fórmulas dogmáticas de Trento, mas uma história diversa, a célebre Storia del Concilio di Trento, escrita por ordem do Papa Inocêncio X pelo Cardeal Pietro Sforza Pallavicino (1656-1657): a história se combate efetivamente com a história, não com hermenêutica.
Com o meu livro, espero ter aberto o caminho para “reescrever”, de maneira objetiva, o que aconteceu, não só nos três anos em que se desenvolveu o Concílio Vaticano II, de 11 de outubro de 1962 a 8 de Dezembro de 1965, mas nos anos que o precederam e que imediatamente lhe seguiram, a época do chamado “pós-concílio”.
Alguns, inclusive Cardeais, sustentam que a Missa de Paulo VI não seria, propriamente, a Missa do Concílio. O que o senhor pensa a respeito?
João XXIII nunca partilhou da ideia de uma reforma litúrgica que era defendida, em vez, por uma minoria de teólogos e liturgistas progressistas. Pouco antes de abrir o Concílio, em 22 de fevereiro de 1962, o Papa Roncalli publicou uma Constituição Apostólica, a Veterum Sapientia, na qual confirmava a liturgia tradicional e enfatizava a importância do uso do latim, “língua viva da Igreja”, recomendando que as mais importantes disciplinas eclesiásticas deveriam ser ensinadas em língua latina (n. 5) e que os aspirantes ao sacerdócio, antes de empreender os seus estudos eclesiásticos, deveriam ser “instruídos na língua latina com sumo cuidado e com método racional, por mestres extremamente capazes, por um conveniente período de tempo” (n. 3).
Por sua obra, De Mattei recebeu o prêmio 'Acqui Storia', o mais prestigioso reconhecimento da Europa dedicado à História.
Por sua obra, De Mattei recebeu o prêmio ‘Acqui Storia’, o mais prestigioso reconhecimento da Europa dedicado à História.
O Vaticano II, embora admitindo uma certa introdução do vernáculo, insistiu sobre o papel do latim, estabelecendo, em seu n. 36 da Constituição Sacrosanctum Concilium, de 4 de dezembro de 1963: “Deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos, salvo o direito particular”. O Concílio solicitou também aos seminaristas “adquirir o conhecimento da língua latina, com que possam compreender e utilizar as fontes de numerosas ciências e os documentos da Igreja”. Embora estabelecendo limites, os padres conciliares propuseram, no entanto, a possibilidade de um uso mais amplo do vernáculo. O artigo 54 da Sacrosanctum Concilium, com efeito, acrescenta: “Se algures parecer oportuno um uso mais amplo do vernáculo na missa, observe-se o que fica determinado no art. 40 desta Constituição”. O artigo 40 dá orientações quanto ao papel das Conferências Episcopais e da Sé Apostólica sobre tal matéria tão delicada. O Concílio, embora recomendando o uso do latim, abriu, portanto, uma brecha.
Por que o Novus Ordo de Paulo VI, que entrou em vigor em todo o mundo em 03 de abril de 1969, foi apresentado como uma conseqüência do Concílio Vaticano II, que não havia previsto nenhuma reforma litúrgica? Trata-se, a meu ver, de uma aplicação, por Paulo VI, do “princípio de pastoralidade” do Vaticano II, segundo o qual o “aggiornamento” não deveria tocar a doutrina, mas o modo de expressá-la. A dimensão pastoral, por si acidental e secundária em relação à doutrina, tornou-se, de fato, prioritária, operando uma profunda revolução na linguagem e na mentalidade. Segundo o Padre John O’Malley, o Vaticano II foi, sobretudo, um “evento lingüístico”. A novidade lingüística segundo os progressistas era, na realidade, doutrinal, porque para eles o modo com que se fala e se age é doutrina que se faz praxe. A reforma litúrgica apresentou, portanto, uma nova lex orandi que comportava uma nova lex credendi. Sob este aspecto, a reforma litúrgica se mostra como uma coerente realização, na prática, do princípio de pastoralidade do Vaticano II.
Que personagens lusófonos tiveram atuação de destaque no Concílio? Qual o seu grau de influência durante o evento conciliar?
O episcopado português, como em geral os episcopados latinos, distinguiu-se no Concílio pelo seu apego à Tradição da Igreja. Mas deve-se recordar especialmente os protagonistas da resistência ao progressismo, reunidos no Coetus Internationalis Patrum. Dentre eles, destaco as figuras de Dom Geraldo de Proença Sigaud, Dom Antônio de Castro Mayer e Professor Plínio Corrêa de Oliveira, particularmente em relação ao pedido de condenação do comunismo que foi ilegalmente deixado de lado pelas comissões conciliares.
O senhor faria uma analogia entre a situação de calamidade surgida após o Vaticano II e algum outro período da história da Igreja? Com os olhos voltados ao passado, é possível antever uma solução futura para a crise pela qual passamos?
A história nunca é “nova”. Bento XVI comparou o nosso tempo ao da decadência e queda do Império Romano do Ocidente. Esta época foi caracterizada não só pelas invasões bárbaras, mas também por uma trágica crise dentro da Igreja, que foi o arianismo. A leitura da obra do Beato Newman sobre Os arianos do século IV me parece esclarecedora para compreender a época atual.
Saindo da esfera do historiador para um questionamento ao fiel Roberto de Mattei: como o senhor vê o surgimento de tantos jovens interessados na Missa Tradicional e a difusão desta após o motu proprio Summorum Pontificum?
Eu acredito que há ao menos duas razões de caráter natural que explicam esse fenômeno tão animador: a primeira é a mudança de clima psicológico que se deu na Igreja com o pontificado de Bento XVI e, em especial, com o seu Motu Proprio Summorum Pontificum de 2007. A segunda é o papel da internet, que permitiu que tanto se expressassem e se unissem, principalmente os jovens, que de outra forma teriam permanecido isolados e sem voz. Mas há, claro, uma razão mais profunda, de ordem sobrenatural: a indubitável existência de novas graças que superabundam a Igreja discente, em um período histórico em que abunda, infelizmente, a deserção dos Pastores.
Por fim, Professor, haverá uma apresentação de seu livro no Brasil?
Seria uma enorme satisfação uma apresentação do meu livro no Brasil e eu ficaria contente em participar, mas me parece que ainda não está na agenda.