sábado, 5 de setembro de 2009

Papa Bento XVI e a liturgia - Parte I Importância e centralidade da liturgia





Prof. Davide Ventura

in Papa Bento XVI e a Liturgia

Leia antes: Nota prévia.

Que a liturgia seja um tema que está no coração do Papa Bento XVI é coisa amplamente demonstrada pela dimensão e pela frequência de suas intervenções nesta matéria nestes primeiros anos de seu pontificado.

Inúmeros já são os discursos, as alocuções, as catequeses dedicadas ao tema, que retorna com insistência também nos documentos “maiores”, das encíclicas ao recente motu proprio “Summorum Pontificum”.

Estas intervenções, ocorridas em épocas próximas a nós e “sob os refletores” do pontificado, são bastante conhecidas, embora não resultará inútil dedicar-lhes uma visão de conjunto. Menos conhecidas talvez sejam as muitas obras que o Papa escreveu sobre a liturgia antes de sua eleição, como teólogo – somadas a variadas entrevistas e discursos.

Todo este material manifesta uma total continuidade com o seu atual magistério, e se desenvolve com uma força de pensamento e uma profundidade de análise que deixa o leitor admirado.

Ademais, pela sua condição menos “rígida” do que a dos documentos magisteriais, em geral relativamente breves e focados em circunstâncias particulares, os escritos do então Cardeal Ratzinger são de grande ajuda para manifestar plenamente o pensamento na sua inspiração de fundo. Sem pretender substituir uma leitura das obras em questão (que, ao contrário, é fortemente recomendada), estas páginas visam a examinar algumas orientações fundamentais do pensamento litúrgico do Papa baseando-se em suas palavras, escritas ou pronunciadas, tanto antes quanto depois de sua eleição; e isto para ajudar a melhor nos orientarmos também nas controvérsias que tal ensinamento tem ocasionalmente suscitado – como sempre acontece quando o sal do Evangelho recusa-se obstinadamente a perder seu sabor.

Por que afinal um tal posto central para a liturgia? Não teriam razão aqueles ambientes eclesiais que tendem a relegá-la a um segundo plano, como se se tratasse de um simples elemento formal – uma questão de usos e de costumes, no fundo, pouco importante? Não para o Papa.

No livro-entrevista “Rapporto sulla fede”, assim se exprime o então cardeal: “Além dos modos diversos de conceber a liturgia há, como de costume, modos diversos de conceber a Igreja, enfim Deus e as relações do homem com Ele. O discurso litúrgico não é marginal: foi o próprio Concílio a recordar-nos que aqui nos encontramos no coração da fé cristã”.

O ponto não é banal: se o fim do homem é conhecer, amar e servir a Deus, então torna-se essencial o modo em que a gente se põe diante d’Ele para receber os dons sacramentais, para expiar as próprias faltas, para render graças pela salvação oferecida em Cristo. A vida cristã é uma relação pessoal com o Pai que chama para si os seus filhos; é portanto fundamentalmente diálogo. Este diálogo pode ser privado e individual; mas para ser realmente tal, tem de ser sustentado e quase imerso naquele perene canto de amor da Esposa para seu Esposo que é a liturgia pública da Igreja. E este canto tem ritmos e tonalidade bem próprios, que se tornam, eles próprios, conteúdo, e não meramente forma. “Lex orandi, lex credendi”, diziam os cristãos dos primeiros séculos: os modos e as formas do orar – entendido como orar público, litúrgico – determinam os conteúdos do crer. E, historicamente, é inegável que as mudanças ocorridas na “lex orandi” acompanham e assinalam invariavelmente mudanças paralelas das acentos e da compreensão dos conteúdos da fé.

Em outra obra, o então cardeal retoma o mesmo tema recordando a atitude, a seu ver, superficial com que por muitos foi acolhido o convite do Concílio Vaticano II a uma renovação da liturgia: “Poderia parecer a muitos que a preocupação por uma forma correta da liturgia fosse uma questão de pura praxe, uma procura pela forma de Missa mais adequada e acessível aos homens de nosso tempo. Neste ínterim, vê-se sempre mais claramente que na liturgia trata-se da nossa compreensão de Deus e do mundo, de nossa relação com Cristo, com a Igreja e com nós mesmos. Na relação com a liturgia se decide o destino da fé e da Igreja. Assim a questão litúrgica adquiriu hoje uma importância que antes não podíamos prever”. (J. Ratzinger, “Cantate al Signore um canto nuovo”, p. 9).

Num outro lugar ainda o mesmo conceito é expresso com drástica concisão: “Estou convencido de que a crise eclesial em que nos encontramos hoje depende em grande parte do colapso da liturgia” (J. Ratzinger, “La mia vita”, p. 112).

Mas no pensamento do Papa a importância da liturgia se estende também para além dos limites da Igreja, por constituir um elemento fundamental da vida e do ambiente humano: “O direito e a moral não estão unidos se não estiverem ancorados no centro litúrgico e não tirarem dele inspiração. [...] Somente se a relação com Deus é justa também as outras relações do homem – as dos homens entre si e do homem com as outras realidades criadas – podem funcionar”. (J. Ratzinger, “Introduzione allo spirito della liturgia”, p. 16.).

É um texto extremamente empenhativo, e serámos tentados a pô-lo em dúvida se as circunstâncias de nosso tempo não confirmassem tão clamorosamente sua validade.

Mas onde reside o fundamento desta influência do culto litúrgico sobre a vida humana em geral? O futuro Papa responde na sequência do texto citado: “A adoração, a justa modalidade do culto, da relação com Deus, é constitutiva para a justa existência humana no mundo, assim é exatamente porque ao longo da vida cotidiana faz-nos partícipes do modo de existir do ‘céu’, do mundo de Deus, deixando assim transparecer a luz do mundo divino no nosso mundo. [...] (O culto) prefigura uma vida mais definitiva e, deste modo, dá à vida presente a sua medida. Uma vida à qual falta esta antecipação, na qual o céu não é mais esboçado, torna-se pesada e vazia”.

Trata-se de uma visão de notável força: para o Papa a liturgia da Igreja torna-se o canal privilegiado do governo divino sobre a terra, e possui em si uma força demiúrgica que plasma no seu modelo os eventos mundanos, fazendo-se “medida” para a “vida presente”. A liturgia é o céu sobre a terra; esta por isso deve falar a língua do céu – este é o motivo pelo qual não se trata de procurar a forma “mais adequada e acessível aos homens de nosso tempo”, como mencionado acima.

Continua...

Papa Bento XVI e a liturgia - Parte II

O valor do missal antigo e o Motu Proprio “Summorum Pontificum”

Prof. Davide Ventura

in Papa Bento XVI e a Liturgia

Leia antes: Nota prévia; Parte I;

Pagamos de imediato o necessário tributo à atualidade, e entre as muitas questões abertas ligadas à liturgia detemo-nos sobre aquela que o magistério do Papa confrontou mais recentemente – e que suscitou as maiores reações também na opinião “laica”. É conhecido por muitos que em 1970 o Papa Paulo VI promulgou o novo missal elaborado nos anos precedentes pela comissão encarregada da realização da reforma litúrgica iniciada por impulso do Concílio Vaticano II. Tal missal continha, com efeito, substancias mudanças em relação àquele que até então estava em vigor, editado por João XXIII em 1962.

Este último não era senão a última revisão menor de um tipo litúrgico que remontava em continuidade à reforma efetuada pelo Concílio de Trento (o assim chamado Missal de Pio V). Por sua vez, Pio V havia no século XVI simplesmente revisto e reproposto um repertório de textos litúrgicos que se transmitira com mínimas mudanças durante toda Idade Média, remontava na sua substância a Gregório Magno (século VI), e continha partes que remontavam à mais remota antiguidade cristã.

E aqui se dá o problema: enquanto, como se viu, o missal romano conheceu até 1962 – ao longo de dezessete séculos de história – somente modificações graduais e não particularmente substanciais, bruscamente em 1970, foi introduzida uma forma litúrgica que se distanciava de modo significativo desta imemorável tradição.

Contextualmente à introdução do novo se teve na prática a proibição do uso do missal tradicional, coisa que provocou vivas reações em muitos ambientes, ao ponto de se tornar uma das maiores motivações por detrás do cisma promovido por Mons. Lefebvre.

O documento publicado por Bento XVI em 7 de julho passado, com o título “Summorum Pontificum”, põe finalmente em ordem, definindo a situação jurídica, que se tornara ao menos ambígua, da liturgia tradicional em relação à reformada. Vale a pena, vista a histórica importância do documento, percorrer os seus conteúdos fundamentais. Em primeiro lugar o Papa declara que o precedente missal jamais fora ab-rogado. Não se trata por isto de uma “reintrodução”, mas sim do reconhecimento de uma perene validade que a introdução do novo missal de 1970 não diminuiu de fato. Ao contrário, depois de algumas observações históricas que louvam a antiguidade e a continuidade de uso durante toda a história da Igreja latina, o Papa define a relação entre os dois Missais com as seguintes palavras: “O Missal Romano promulgado por Paulo VI é a expressão ordinária da ‘lex orandi’ da Igreja Católica de rito latino. Todavia o Missal Romano promulgado por São Pio V e novamente editado pelo B. João XXIII deve ser considerado como expressão extraordinária da mesma ‘lex orandi’ e deve ser tido com a devida honra pelo seu uso venerável e antigo. Estas duas expressões da ‘lex orandi’ da Igreja não conduzirão de modo algum a uma divisão na ‘lex credendi’ da Igreja; são de fato dois usos do único rito romano. Por isto é lícito celebrar o Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano promulgado pelo B. João XXIII em 1962 e jamais ab-rogado, como forma extraordinária da Liturgia da Igreja”.

Depois desta afirmação capital, o Papa prossegue definindo que todo sacerdote possa usar o Missal tradicional nas suas Missas privadas, às quais podem associar-se de própria vontade também outros fiéis. Os institutos de vida consagrada são livres para celebrar, eventual ou mesmo habitualmente, com o velho missal. Grupos estáveis de fiéis no interior das paróquias podem, por sua vez, pedir ao pároco que celebre para eles com o missal de 1962. O pároco é convidado a “acolher com generosidade” a tais pedidos; uma vez que esteja pessoalmente impossibilitado (e – se supõe – que por motivos válidos e não pretextos), o pedido deve passar ao Bispo Diocesano.

“Ao Bispo solicita-se vivamente ouvir o desejo deles. Se ele não pode providenciar tal celebração, a coisa seja referida à Pontifícia Comissão ‘Ecclesia Dei’. O bispo que deseja satisfazer a tais pedidos dos fiéis leigos, mas por várias causas está impedido, pode confiar a questão à Pontifícia Comissão ‘Ecclesia Dei’, que lhe dará conselho e ajuda”. Se a situação o aconselha, o Bispo pode reagrupar os pedidos com a constituição de uma “paróquia pessoal”.

Compreende-se claramente a intenção do Papa: a Missa tradicional, estando ainda em vigor, constitui um direito dos fiéis; os seus pedidos (desde que não feitos para disseminar discórdia...) de aceder a esta forma litúrgica sejam ouvidos: a nível paroquial, onde possível, ou mesmo diocesano. De modo algum tal pedido pode ser simplesmente ignorado – a própria autoridade da Santa Sé, por meio da Pontifícia Comissão ‘Ecclesia Dei’, torna-se fiadora dele.

Depois se reconhece aos membros do clero, obrigados à recitação cotidiana do breviário, possam cumprir esta obrigação mediante o breviário publicado por João XXIII.

Extremamente rica de conteúdo é também a carta enviada pelo Papa a todos os bispos em concomitância com a publicação do Motu proprio. Nela diz-se que, no ato de publicação do novo missal de Paulo VI, havia quem pensasse que o uso da forma mais antiga desapareceria por si mesma. Isto porém não aconteceu, e a adesão ao uso antigo permaneceu exatamente “nos países em que o movimento litúrgico havia dado a muitas pessoas uma conspícua formação litúrgica e uma profunda, íntima, familiaridade com a forma anterior da Celebração litúrgica”. Não se trata por isto necessariamente, segundo o Papa, de uma forma de rebelião contra a autoridade da Igreja, mas que “... muitas pessoas, que aceitavam claramente o caráter vinculante do Concílio Vaticano II e que eram fiéis ao Papa e aos Bispos, também desejavam todavia re-encontrar a forma, que lhes é cara, da sagrada Liturgia”.

E não se trata somente de anciãos: “Aparece claramente que também pessoas jovens descobrem esta forma litúrgica, sentem-se atraídas por ela e a consideram uma forma, particularmente apropriada para eles, de encontro com o Mistério da Santíssima Eucaristia”.

Se esta liturgia, tão antiga e venerável, jamais fora juridicamente ab-rogada, de onde nasce sua quase total desaparição, especialmente considerando que já o Papa João Paulo II havia publicado durante o seu pontificado atos que pediam aos bispos tomarem providências a fim de que os pedidos legítimos para celebrar segundo tal forma fossem mais largamente acolhidos?

Mais que de Roma, o problema surgiu entre os episcopados nacionais, “sobretudo porque frequentemente os Bispos, nestes casos, temiam que a autoridade do Concílio fosse posta em dúvida”.

Assim, enquanto os documentos de João Paulo II haviam deixado aos bispos uma larga margem aplicativa, Bento XVI conclui que “surgiu uma necessidade de um regulamento jurídico mais claro que, no tempo do Motu Proprio de 1988 não era previsível; estas Normas visam ainda a liberar os Bispos do dever de sempre de novo avaliar como fazer para responder às diversas situações”.

“Roma locuta, causa soluta” diziam os antigos: Roma falou, a causa está resolvida. Hoje, infelizmente, isto está longe de ser um fato previsível; mas que Roma tenha falado claramente, isto ninguém poderá por em dúvida.

Papa Bento XVI e a liturgia - Parte III

A aplicação da reforma litúrgica

Prof. Davide Ventura

in Papa Bento XVI e a Liturgia

Leia antes: Nota prévia; Parte I; Parte II;

O Vaticano II recordou em muitos documentos a necessidade de uma renovação litúrgica, que acolhesse as melhores aquisições do movimento litúrgico que souberam nas décadas precedentes investigar os tesouros históricos da Igreja, para encontrar um modo de restituir a seu esplendor original formas rituais que o tempo havia coberto com um véu de poeira. Se depois, como observa o Papa no documento citado, as próprias pessoas de “conspícua formação litúrgica” decidiram não seguir as formas litúrgicas oriundas da desejada renovação litúrgica, é sinal de que alguma coisa não funcionou.

Ouçamos novamente o Papa na citada carta de acompanhamento ao Motu proprio: “Isto acontece, antes de mais nada, porque em muitos lugares não se celebrava de modo fiel às prescrições do novo missal, este inclusive era compreendido como uma autorização e até como uma obrigação à criatividade, a qual conduziu frequentemente a deformações da Liturgia no limite do suportável. Falo por experiência, porque também eu vivi aquele período com todas as suas expectativas e confusões. E vi o quão profundamente foram feridas, pelas deformações arbitrárias da Liturgia, pessoas que eram totalmente radicadas na fé da Igreja”.

O Papa Bento fala pois de “deformações arbitrárias”; trata-se, segundo esta análise, de aplicações erradas ocorridas mais tarde, e não do missal de Paulo VI em si. A respeito deste último, muitas repetidas vezes nos seus discursos, o Papa admoesta aqueles que o consideram uma deformação da tradição eclesial e expressão de uma teologia heterodoxa.

Não por acaso prefere não falar de dois ritos, mas de “duas formas de um mesmo rito”: forma extraordinária, o antigo missal; forma ordinária, o novo; e “não há qualquer contradição entre uma e outra edição do Missal Romano”.

A mesma coisa o então Cardeal Ratzinger havia declarado mais extensamente em um discurso de 24 de outubro de 1998: “Pode-se dizer isto: que frequentemente é ampliada a liberdade que o novo Ordo Missae deixa à criatividade, e que a diferença entre as liturgias que se celebram segundo os novos livros, como de fato são postas em prática e celebradas nos diversos lugares, é com frequência maior do que aquela que existe entre a antiga e a nova liturgia, quando uma e outra são celebradas em conformidade com as prescrições dos livros litúrgicos. O cristão médio, privado de uma cultura litúrgica especializada, tem dificuldade de distinguir entre uma Missa cantada em latim segundo o velho missal e uma cantada em latim segundo o novo. A diferença entre uma celebração litúrgica que se atém fielmente ao missal de Paulo VI e a realidade das celebrações em língua corrente, com todas as possíveis liberdades de participação e de criatividade, tal diferença sim é que pode ser enorme!”.

Esta afirmação, clara e reiterada, que a diferença entre o velho e o novo “Ordo Missae” não é substancial, e que se trata antes de duas formas do mesmo rito, pode agradar ou não – se trata, em todo caso, do parecer do Papa, expresso de modo bastante formal em atos de elevado valor magisterial. Prestemos, portanto, a tal parecer o religioso obséquio que ele requer, e passemos a examinar quais sejam as deformações “ao limite do suportável” de que se fala, alertados pelas mesmas palavras do Papa que “... resta ver até que ponto cada etapa da reforma litúrgica posterior ao Concílio tenha sido um verdadeiro melhoramento ou, ao invés, banalizações; até que ponto tenhamos sido pastoralmente sábios ou, ao contrário, néscios”. (J. Ratzinger, “Rapporto sulla fede”, pp. 123-124).

A liturgia não é produto humano

Na “mira” do Papa, seja antes ou depois de sua eleição, está em primeiro lugar o conceito de “criatividade litúrgica”: Parecia muito frequentemente, nestes últimos decênios, que cada comunidade, cada sacerdote, fossem chamados a “inventar” as formas do culto segundo a própria sensibilidade. Em uma entrevista de 5 de setembro de 2003, o então cardeal declara: “Em geral, considero que a reforma litúrgica não tenha sido bem aplicada, porque se tratava de uma ideia geral. Hoje a liturgia é uma coisa da comunidade. A comunidade representa a si mesma, e com a criatividade dos padres ou de outros grupos, são criadas as suas liturgias particulares. Trata-se mais da presença de suas experiências e ideias pessoais, que do encontro com a Presença do Senhor na Igreja; e com esta criatividade e esta auto-apresentação da comunidade está desaparecendo a essência da liturgia. Com a essência da liturgia nós podemos superar as nossas próprias experiências e receber aquilo que não deriva delas, mas que é um dom de Deus. Assim penso que devamos restaurar não tanto certas cerimônias, mas a ideia essencial da liturgia – compreender que na liturgia não representamos a nós mesmos, mas recebemos a graça da presença do Senhor na Igreja do céu e da terra. E me parece que a universalidade da liturgia seja essencial”.

As últimas linhas são fundamentais: no pensamento constante do Papa, a liturgia é dada do alto. E com certeza, este dom passa através de mediações humanas (aquilo que constitui a Igreja como comunidade profética), mas permanece sendo mais que um produto humano; e visto o seu caráter de culto público, é e deve ser universal.

No livro “Introduzione allo spirito della liturgia”, p. 17-18, achamos expresso de modo muito forte o mesmo conceito. Falando do nascimento do culto do povo de Deus no Sinai, mas pensando no hoje, o Cardeal Ratzinger escreve: “O homem não pode ‘fazer’ para si mesmo o próprio culto; ele captura apenas o vazio, se Deus não se mostra. Quando Moisés diz ao faraó – ‘nós não sabemos com que coisa servir ao Senhor’ (Ex 10,26) – nas suas palavras, emerge de fato um dos princípios basilares de todas as liturgias. [...] A verdadeira liturgia pressupõe que Deus responda e mostre como nós podemos adorá-lo. Isto implica alguma forma de instituição. Ela não pode se originar de nossa fantasia, de nossa criatividade, pois desta forma seria apenas um grito na escuridão ou uma simples autoconfirmação”.

Este caráter não arbitrário do culto emerge, por contraste, de modo dramático no episódio do bezerro de ouro. “Este culto, guiado pelo sumo sacerdote Aarão, não devia na realidade servir a um ídolo pagão. A apostasia é mais sutil. [...] Não consegue manter a fidelidade ao Deus invisível, distante e misterioso. Fá-lo descer ao seu próprio nível, reduzindo-o a categorias de visibilidade e compreensibilidade. De tal maneira o culto não é mais um subir para ele, mas um rebaixamento de Deus a nossas dimensões. [...] O homem se serve de Deus segundo a própria necessidade e assim se põe na realidade sobre ele. [...] Este culto torna-se assim uma festa que a comunidade se faz para si; celebrando-a, a comunidade nada faz senão confirmar-se a si mesma. Da adoração de Deus se passa a um círculo que gira em torno de si mesmo. [...] A estória do bezerro de ouro é um aviso contra o culto realizado segundo a propria medida e à procura de si mesmo. [...] Mas no final resta apenas a frustração, o sentido de vazio. Não há mais aquela experiência de libertação que há ali onde acontece um verdadeiro encontro com o Deus vivente”.

A estas linhas impressionantes pode-se objetar (como de fato objetou-se de muitas partes): mas a compreensibilidade da liturgia não é um valor positivo? Se ela é “sinal”, o sinal não deve necessariamente ser decifrável pelo seu destinatário humano?

No livro “Il sale della terra”, p. 199, o Cardeal Ratzinger responde: “Na nossa reforma litúrgica há a tendência, a meu ver equivocada, a adaptar completamente a liturgia ao mundo moderno. Esta deveria, pois, tornar-se ainda mais breve e dela deveria ser afastado tudo aquilo que se considera incompreensível; e ainda ao final, ela deveria ser traduzida numa língua ainda mais simples, mais ‘plana’. Deste modo, porém, a essência da liturgia e a própria celebração litúrgica é completamente mal compreendida. Porque nela não se compreende apenas de modo racional, assim como se compreende uma conferência, mas sim de modo complexo, participando com todos os sentidos e deixando-se compenetrar por uma celebração que não é inventada por uma comissão de peritos, mas que nos chega da profundidade dos milênios e, em definitivo, da eternidade.

É a condenação do racionalismo teológico, no fundo a mesma que já no século XVI a Igreja havia feito a Lutero: Deus, razão absoluta, está acima de nossa razão limitada. E a liturgia, com os seus símbolos sutis, é exatamente uam das modalidades suprarracionais com que Deus se comunica ao homem.

Em seguida ao abuso da “criatividade”, “perdeu-se o ‘proprium’ litúrgico que não deriva daquilo que nós fazemos, mas do fato de que aqui acontece Algo que todos nós juntos não podemos fazer. Na liturgia opera uma força, um poder que nem mesmo a Igreja toda inteira pode se conferir: aquilo que ali se manifesta é o absolutamente Outro que, através da comunidade (que não é, pois, patroa mas serva, mero instrumento) chega até nós” (do livro-entrevista “Rapporto sulla fede”).

Continua o mesmo texto: “Para o católico, a liturgia é a Pátria comum, é a fonte mesma da sua identidade: também por isto deve ser ‘pré-determinada’, ‘imperturbável’, porque através do rito se manifesta a Santidade de Deus. E ao invés, a revolta contra aquela que foi chamada ‘a velha rigidez rubricista’, acusada de tolher a ‘criatividade’, envolveu também a liturgia no vórtice do ‘faça-por-si’, banalizando-a porque a fez conforme à nossa medíocre medida”.

Papa Bento XVI e a liturgia - Parte IV

O desenvolvimento orgânico da liturgia

Prof. Davide Ventura

in Papa Bento XVI e a Liturgia

Leia antes: Nota prévia; Parte I; Parte II; Parte III;;

Este caráter ultramundano da liturgia lhe determina duas características aparentemente em contraste entre si. De uma parte, como acabámos de ver, ela é ‘pré-determinada’ e ‘imperturbável’, subtraída, portanto, aos arbítrios da comunidade ou do celebrante. De outra parte, ela não é fixa em sentido absoluto. Como todas as formas da Igreja, ela acompanha o homem no seu curso histórico; e como mudam as condições históricas e culturais do homem, também ela pode mudar, e de fato mudou. Mas o faz de modo ‘orgânico’. O termo é do Concílio Vaticano II, que o introduz normativamente no ponto 23 da constituição “Sacrosanctum Concilium”: “Não se introduzam inovações senão quando o requeira uma verdadeira e certa utilidade da Igreja, e com o cuidado de que as novas formas se originem organicamente, de alguma maneira, daquelas já existentes”.

Este termo significa que a liturgia cresce e se modifica como o fazem os organismos vitais, isto é, lentamente, sem lacerações, e em virtude não de forças externas mas de um impulso vital interno (neste caso representado pelo Espírito Santo). Assim como acontece nas Igrejas orientais, e como sempre aconteceu no Ocidente até tempos recentes, as mudanças podem surgir, mas devem ser interpretadas no sentido da continuidade com o existente; e o juízo sobre elas não deve estar submetido apenas à Hierarquia: é também o uso e a aceitação dos fiéis que, nos séculos, determina o acolhimento de uma modificação ou a supressão de uma outra.

O critério da “organicidade” da mudança é para Bento XVI o único e verdadeiro critério de legitimidade litúrgica. “A liturgia não é comparável a um aparelho técnico, a alguma coisa que se faz, mas a uma planta, a alguma coisa de orgânico, que cresce e cujas leis de crescimento determinam as possibilidades de um ulterior desenvolvimento” (“Introduzione allo spirito della liturgia”, p. 161). Na sequência do mesmo texto, o Papa se põe o problema do papel do próprio papado na definição do desenvolvimento litúrgico. O pontífice observa, “sempre mais claramente reinvindicou também a legislação litúrgica”. Mas “quanto mais fortemente se impunha este primado, tanto mais emergia a questão da extensão e dos limites de tal autoridade que, certamente, jamais foi enquanto tal objeto de reflexão. Depois do Concílio Vaticano II teve-se a impressão de que o Papa pudesse fazer qualquer coisa em matéria litúrgica, sobretudo se agia em nome de um concílio ecumênico. Aconteceu assim que a ideia de liturgia como algo que nos precede e que não pode ser ‘feita’ ao próprio arbítrio se tenha perdido amplamente na consciência difusa do Ocidente. Na verdade, porém, o Concílio Vaticano I não pretendeu, de jeito algum, definir o papa como um monarca absoluto, mas ao contrário, como a garantia da obediência à palavra transmitida: o seu poder está ligado à tradição da fé e isto vale também no campo da liturgia. Ela não é ‘feita’ por funcionários. Também o papa pode ser unicamente humilde servidor do seu justo desenvolvimento e da sua permanente integridade e identidade”.

Esta surpreendente reflexão prossegue comparando a experiência do Oriente cristão com a do Ocidente, concluindo que “... o caminho percorrido pelo Ocidente, com a sua especificidade e o espaço deixado à liberdade e à história, não pode ser de nenhum modo condenado em bloco. Mas se se abandonam as intuições fundamentais do Oriente, que são as intuições fundamentais da Igreja antiga, se chegaria na verdade à dissolução dos fundamentos da identidade cristã. A autoridade do papa não é ilimitada; ela está a serviço da santa tradição”.

Seja-nos permitido observar que estas linhas fundamentais, se levadas a sérios por ambas as partes seriam provavelmente suficientes para a superação do fosso criado entre a Igreja Romana e as ortodoxas.

Destes princípios fundamentais, o Papa Bento XVI tira as conclusões lógicas: a liturgia tradicional, mesmo depois da introdução do novo missal, jamais foi ab-rogada, enquanto não passível de ab-rogação.

“No curso de sua história, a Igreja jamais aboliu ou proibiu formas ortodoxas de liturgia, porque isto seria estranho ao próprio espírito da Igreja” (da conferência “A dieci anni del Motu proprio Ecclesia Dei”, 24 de outubro de 1998). O mesmo conceito é retomado, como vimos, também no recente Motu proprio “Summorum Pontificum”.

Mas, para além das também importantes formas jurídicas, é a própria atitude em relação à liturgia tradicional que provoca a dor do Papa: “Para uma reta tomada de consciência em matéria litúrgica é importante que haja menos atitude de suficiência para a forma litúrgica em vigor até 1970. Quem hoje sustenta a continuação desta liturgia ou participa diretamente em celebrações desta natureza, é colocado no Index; há sempre pouca tolerância a este respeito. Na história jamais ocorreu nada do gênero; assim é o inteiro passado da Igreja a ser desprezado. Como se pode confiar no seu presente se as coisas estão assim? Nem mesmo entendo, para ser franco, porque tanta timidez, da parte de muitos colegas bispos, no tocante a esta intolerância, que parece ser um tributo obrigatório ao espírito dos tempos, e que parece ser contrário, sem um motivo compreensível, ao processo de necessária reconciliação no interior da Igreja”. (“Dio e il mondo. Una conversazione con Peter Seewald”, p. 380).

Mas o texto mais significativo para um juízo de valor histórico da ruptura de continuidade ocorrida em 1970 encontrasse na “La mia vita: ricordi, 1927-1977”, p. 110. No ato da publicação do novo missal, disse o então cardeal, “fiquei atordoado com a proibição do missal antigo, a partir do momento em que uma coisa semelhante jamais se verificara em toda a história da liturgia. Deu-se a impressão que isto fosse completamente normal”.

O autor prossegue recordando uma possível objeção: também Pio V, exatamente quatro séculos antes, com a introdução de seu missal havia proibido o uso de textos precedentes. Mas se tratava de uma circunstância completamente diversa: a difusão da reforma protestante se havia insinuado em muitos rituais, aproveitando-se do pluralismo litúrgico que havia caracterizado a Igreja medieval, “tanto que os limites entre o que era ainda católico e o que não o era mais, frequentemente eram de difícil definição”. Nesta situação de emergência, na impossibilidade de controlar uma por uma todas as inúmeras variantes locais, Pio V impôs a adoção do Missal Romano, seguramente ortodoxo, a todas as Igrejas locais cujos rituais não podiam ostentar uma antiguidade de ao menos dois séculos. Variados usos litúrgicos, como o mozarábico na Espanha e o ambrosiano em Milão, permaneceram intactos lado a lado do romano. Alguns ritos ortodoxos acabaram seguramente vítimas desta prescrição, mas não intencionalmente: a intenção do papa foi a de supor que qualquer ritual nascido depois de 1370 corria forte risco de desvio da ortodoxia, e foi por base nesta pressuposição que eles foram abolidos.

“Não se pode, pois, falar de uma proibição relativa aos missais precedentes e até aquele momento regularmente aprovados”, prossegue o texto. “Agora, ao invés, a promulgação da proibição do missal que se desenvolvera no curso dos séculos, desde o tempo dos sacramentais da Igreja antiga, comportou uma ruptura na história da liturgia, cujas consequências só podiam ser trágicas. Como já ocorrera muitas vezes anteriormente, era perfeitamente razoável e plenamente em linha com as disposições do Concílio que se chegasse a uma revisão do missal, sobretudo em consideração à introdução das línguas nacionais. Mas naquele momento acontece algo mais: fez-se em pedaços o edifício antigo e se construiu um outro, ainda que com o material do qual era feito o edifício antigo e utilizando os projetos precedentes. Não há dúvidas de que este novo missal comporte em muitas partes autênticos melhoramentos e um real enriquecimento, mas o fato de que ele tenha sido apresentado como um edifício novo, contraposto àquele que se formara ao longo da história, que se vetasse este último e se fizesse a liturgia parecer, de algum modo, não mais como um processo vital, mas como um produto de erudição especializada e de competência jurídica, comportou para nós danos extremamente graves. Deste modo, de fato, desenvolveu-se a impressão de que a liturgia seja “feita”, que não seja alguma coisa que exista antes de nós, algo de “doado”, mas que dependa de nossas decisões. Segue, por conseguinte, que não se reconheça esta capacidade de decisão somente aos especialistas ou a uma autoridade central, mas que, em definitivo, cada ‘comunidade’ queira dar-se uma própria liturgia. Mas quando a liturgia é algo que cada um faz para si então já não mais nos dá o que é sua verdadeira qualidade: o encontro com o mistério, que não é um produto nosso, mas a nossa origem e a fonte de nossa vida”.

Percebe-se neste longo texto que o ponto fundamental não é, como se disse, a natureza do novo ritual, em si perfeitamente ortodoxo, mas sim a supressão (mediante abuso de autoridade) do tradicional, coisa que regou uma artificial contraposição entre um “velho” a ser eliminado urgentemente e um “novo” produzido à escrivaninha por uma comissão de peritos.

Existe outra objeção: para alguns, a essência da reforma litúrgica seria determinada não tanto pela ruptura da tradição, mas ao contrário, pela tentativa de reconduzir o rito a uma sua “primitiva pureza”, livrando-o dos acréscimos acumulados nos séculos.

No capítulo nono do citado “Rapporto sulla fede”, o então Cardeal Ratzinger responde a tal “arqueologismo romântico de certos professores de liturgia, segundo os quais tudo aquilo que foi feito depois de Gregório Magno deveria ser eliminado como uma incrustação, um sinal de decadência. Como critério da renovação litúrgica não puseram a questão: ‘Como deve ser hoje?’, mas outra: ‘Como era então?’. Esquece-se que a Igreja é viva, que a sua liturgia não pode ser petrificada naquilo que se fazia na cidade de Roma antes da Idade Média. Na realidade, a Igreja medieval (ou também, em certos casos, a Igreja barroca) chegou a um aprofundamento litúrgico que precisa ser avaliado antes de ser eliminado. Devemos respeitar também aqui a lei católica do sempre melhor e mais profundo conhecimento do patrimônio que nos foi confiado. O puro arcaísmo não serve, assim como não serve a pura modernização”.

Continua...

Fonte: Papa Ratzinger Blog

Tradução: OBLATVS