Apresentação do livro
O Concílio Vaticano Segundo – uma história nunca escrita
Caros amigos,
É para mim uma grande alegria estar aqui hoje convosco e poder falar de um tema com tamanha importância. O tema é o Concílio Vaticano Segundo, um evento que teve lugar há já cinqüenta anos – entre 1962 e 1965 – e que pertence hoje à história, mas também à atualidade.
O Vaticano Segundo foi, de fato, um evento “epocal”, um evento que abriu uma época na história da Igreja e do mundo. A verdade, porém, é que ainda não saímos dessa época. Sem o Vaticano Segundo, não conseguimos compreender o Papa Francisco; não conseguimos compreender a crise na Igreja atual. Porque é verdade que essa crise existe, ela está diante dos nossos olhos e é uma crise sem precedentes na história. É uma crise que a todos nós diz respeito, como homens e como cristãos; uma crise à qual não conseguimos escapar, com cujas conseqüências devemos lidar e cujas causas nos compete perceber. E as causas remontam precisamente ao Concílio Vaticano Segundo.
O meu livro O Concílio Vaticano Segundo – uma história nunca escrita quis ser um contributo para compreender a história de ontem, mas também para podermos compreender a crise religiosa de hoje. E compreender é a condição necessária para agir.
Nesta minha obra, pretendi reconstituir o que se passou em Roma durante os três anos que vão de 11 de Outubro de 1962 a 8 de Dezembro de 1965, quando 2500 Padres Conciliares se reuniram sob a orientação, primeiro de João Vinte e Três, e depois de Paulo Sexto, no Vigésimo Primeiro concílio da história da Igreja. Sublinho que se tratou do Vigésimo Primeiro concílio. Com efeito, o Vaticano Segundo não foi o primeiro nem o último concílio da história da Igreja; foi um ponto, um momento da longa história da Igreja. E esta história contou com vinte e um concílios ecumênicos. Alguns – Nicéia, Trento, Vaticano Primeiro – são inesquecíveis devido ao alcance teológico dos seus documentos; outros foram esquecidos, o que não significa que não tenham sido concílios autênticos e solenes. Um concílio entra para a história pela qualidade dos documentos que produziu. No século Dezesseis, houve dois: o Quinto Concílio de Latrão (1512-1517) e o Concílio de Trento (1545-1563). Toda a gente recorda o grande Concílio de Trento; ninguém recorda o Quinto Concílio de Latrão .
Mas o Vaticano Segundo foi um concílio diferente de todos os que o precederam.
A 25 de Janeiro de 1959, João XXIII anunciou a convocação de um concílio pastoral e não dogmático. No seu discurso de abertura explicava: «Uma coisa é o depósito ou as verdades da fé, outra coisa é o modo como são anunciadas, continuando porém a ser idênticos o seu significado e sentido profundos.»
Este elemento pastoral é uma característica surpreendente, dado que nos vinte concílios anteriores a forma fora sempre dogmática e normativa, sem que tal excluísse o elemento pastoral; nem Trento nem o Vaticano Primeiro tinham sido privados de dimensão pastoral. No Vaticano Segundo, porém, o elemento pastoral não era apenas um «fato», ou seja, a natural explicação do conteúdo dogmático do Concílio de uma forma adaptada aos tempos, como sempre se tinha feito; este «elemento pastoral» foi elevado a princípio alternativo do «elemento dogmático», subentendendo-se a prioridade do primeiro relativamente ao segundo.
A dimensão pastoral, em si mesma acidental e secundária relativamente à dimensão doutrinal, acabou por se tornar prioritária, introduzindo uma revolução na linguagem e na mentalidade.
O padre John O’Malley, da Georgetown University, definiu o Vaticano Segundo como «um evento lingüístico», fazendo notar que as profissões de fé e os cânones foram substituídos por um «gênero literário» a que chama «epidíctico», ou seja, discursivo. A Igreja despojou-se das suas vestes dogmáticas e revestiu -se de uma nova indumentária, pastoral e exortativa, já não obrigatória nem definitiva. Mas usar termos diferentes dos do passado significa levar a cabo uma transformação cultural mais profunda do que possa parecer: o modo como algo se apresenta, o estilo com que algo se exprime revela um modo de ser e de pensar; o estilo, escreve O’Malley, é a expressão última do significado.
Pode-se acrescentar que a revolução na linguagem não consistiu apenas na alteração do significado das palavras, mas também na omissão de certos termos e conceitos. Haveria muitos exemplos para dar:
Afirmar que o inferno está vazio, coisa que o Concílio não fez, é certamente uma proposição temerária, se não mesmo herética; omitir, ou limitar ao máximo, as referências ao inferno, como fez o Concílio, não constitui uma proposição errônea, mas é uma omissão que abre caminho a um erro ainda mais grave que o do inferno vazio, a saber, a idéia de que o inferno não existe, porque não se fala dele e aquilo que é ignorado é como se não existisse.
A partir do momento em que assumo uma linguagem «simpática», para não assustar as pessoas, e decido deixar de falar no inferno, estou efetivamente a afastar a imagem do inferno e, portanto, a idéia de um castigo reservado àqueles que morrem em pecado mortal. Não estou a pronunciar uma heresia, porque não estou a dizer que o inferno não existe, mas a minha omissão, o meu silêncio sobre o inferno, provoca danos ainda maiores. Com efeito, se eu negasse abertamente o inferno, haveria certamente quem reagisse, reafirmando a ortodoxia; mas se não falo sobre ele, a heresia impõe-se de forma mais insidiosa.
No esquema De Ecclesia, o Concílio Vaticano Segundo tratava dos fins últimos do homem, mas nada dizia sobre o inferno. Numa intervenção que fez na aula conciliar, o patriarca latino de Jerusalém, Alberto Gori, considerou «surpreendente» e «inadmissível» esta omissão acerca da existência do inferno por parte da assembléia dos Padres; e salientou que era necessário falar sobre ele, não só porque se tratava de uma verdade indiscutida da Revelação cristã, mas também por razões pastorais, dessa pastoral a que o Concílio atribuía uma importância tão grande.
Nos anos do Concílio e nos anos que se lhe seguiram, foram muitos o teólogos, de Hans Küng a Karl Rahner, de Urs von Balthasar a Edward Schillebeeckx, que reduziram o inferno a uma representação mitológica ou que, admitindo embora a sua realidade, defenderam que ele está «vazio». A negação ou o redimensionamento do inferno era conseqüência de uma insistência, talvez excessiva, na misericórdia divina, que levava a esquecer por completo o papel da justiça divina. As conseqüências para a responsabilidade pessoal dos homens nos domínios da fé e da moral da Igreja viriam a ser desastrosas.
Mas há um exemplo de omissão que é, por assim dizer, macroscópico: o do comunismo. Sendo este a negação da ordem natural e social, pode ser definido como uma espécie de inferno na terra, como um castigo para as nações.
Os historiadores estão de acordo sobre este ponto: não houve em toda a história um século mais dramático e cruento do que a centúria de Novecentos, o século dos totalitarismos, das guerras mundiais, das Revoluções planetárias, dos genocídios e das perseguições religiosas. E entre todas, a mais difusa e sistemática foi a perseguição movida contra o cristianismo pelo comunismo. Assim, no século Vinte, o comunismo é a idéia criminosa por excelência.
Há uma pergunta que ainda hoje não tem resposta: por que foi que a solene assembléia dos Padres conciliares, reunidos em Roma para tratar das relações entre a Igreja e o mundo moderno, ignorou o fenômeno mais colossal e evidente da sua era, o imperialismo comunista?
Até ao Concílio Vaticano Segundo, o Magistério da Igreja Católica tinha se manifestado repetidamente contra o comunismo. Nos vota dos Padres conciliares chegados a Roma antes da celebração da reunião magna, o comunismo aparecia como o mais grave dos erros a condenar. Em 1961, o Muro de Berlim tinha rasgado a profunda ferida no coração da Europa. E em 1962, mesmo nas vésperas da abertura do Concílio, a crise dos mísseis em Cuba tinha confirmado os objetivos expansionistas e a capacidade de agressão do imperialismo comunista.
A assembléia conciliar teria sido o lugar por excelência para fazer ao comunismo um processo análogo ao que foi o de Nuremberga para o nacional-socialismo; não seria um processo de caráter penal, nem um processo ex post dos vencedores sobre os vencidos, como aconteceu em Nuremberga, mas um processo cultural e moral, ex ante, das vítimas no confronto com os perseguidores. Era o que já tinham começado a fazer os chamados dissidentes.
Mas decorriam os anos Sessenta e surgiam três estrelas no horizonte: para além de João Vinte e Três, havia ainda Nikita Kruschev e John Fitzgerald Kennedy. Pairava sobre o mundo um novo espírito de otimismo; foi neste período que se delineou um novo clima de «degelo» entre realidades que o Magistério havia definido como antitéticas. Pedia-se agora à Igreja que se abrisse docilmente e sem resistências a esta sociedade moderna, agora caracterizada por um processo de descristianização, inverso ao que fora iniciado sob Constantino; e houve mesmo quem se referisse ao fim da Era “Constantiniana”, iniciada no longínquo século IV. Ora, nesta nova sociedade, o comunismo era a expressão máxima da modernidade. Por isso, muitos, mesmo entre os católicos, vinham agora alvitrar que, em vez de condenar o comunismo, era preferível dialogar com ele, acreditando que, assim fazendo, tanto ele como a Igreja poderiam mudar para melhor.
Sabemos hoje que, em Agosto de 1962 na cidade francesa de Metz, o cardeal Tisserant, em representação do Vaticano, selou um acordo com o novo arcebispo ortodoxo de Yaroslav, mons. Nicodemo – o qual, como ficou documentalmente provado após a abertura dos arquivos de Moscou, era um agente do KGB. Com base neste acordo, as autoridades eclesiásticas comprometeram-se a não falar do comunismo no Concílio: era esta a condição exigida pelo Kremlin para autorizar a participação de observadores do Patriarcado de Moscou no Concílio. No Arquivo Secreto do Vaticano, encontrei uma nota escrita por Paulo Sexto que confirma a existência deste acordo.
Outros documentos de especial interesse foram publicados por George Weigel no segundo volume da sua imponente biografia de João Paulo Segundo. Entre as amplas fontes consultadas por este autor contam -se os arquivos do KGB, do SluzbaBezpieczenstewa (SB) polaco e da Stasi da Alemanha de Leste. Weigel encontrou aí documentos que confirmam que os governos comunistas e os serviços secretos dos países de Leste tinham penetrado no Vaticano, chegando a infiltrar -se até aos mais altos níveis da hierarquia católica para promoverem os seus interesses.
Durante os anos do Concílio e do pós-Concílio, o Colégio Húngaro de Roma transformou-se numa filial dos serviços secretos de Budapeste; entre Sessenta e Cinco e Oitenta e Sete, todos os reitores deste Colégio foram agentes, treinados na área da desinformação e com competência para a instalação de sistemas de escuta. Por sua vez, e ainda segundo Weigel, o SB polaco fez o possível por influenciar e deformar a discussão do concílio em certos aspectos da teologia católica. Foi o caso do papel de Maria na história da salvação: o diretor do Quarto Departamento, o coronel Stanislaw Morawski, trabalhou com uma dúzia de colaboradores, todos eles peritos em mariologia; a intenção era preparar um texto destinado aos bispos do Concílio no qual se criticava a concepção «maximalista» da Santíssima Virgem, defendida pelo cardeal Wyszynski e por outros prelados.
Poucos foram os que se aperceberam desta agressão sistemática à Igreja. Um deles foi o prof. Plínio Corrêa de Oliveira, verdadeiro animador da resistência conservadora no Concílio: grande pensador e homem de ação, que conseguia perceber o que estava a passar-se graças à sua teologia contra-revolucionária da história.
Entre os vota chegados a Roma, há um que chama a atenção, pela amplitude do quadro que apresenta, pelos males que denuncia e pelas soluções que propõe: é o do bispo de Jacarezinho, Geraldo de Proença Sigaud, que em 1961 seria elevado por João XIII a arcebispo de Diamantina. Este texto de D. Geraldo Sigaud revela claramente a inspiração, e talvez mesmo a mão, de Plínio Corrêa de Oliveira – que em 1959 tinha publicado, no número 100 da revista Catolicismo, o seu texto de referência: Revolução e Contra-Revolução.
Tal como Corrêa de Oliveira, também D. Geraldo utilizavaos termos “Revolução” e “Contra-Revolução” com o sentido preciso com que, após a Revolução Francesa, tinham sido usados tanto pelo Magistério como por esse fecundo filão do pensamento católico que foi definido de contra-revolucionário
De acordo com o bispo de Jacarezinho, já em 1959 a situação da Igreja Católica era dramática, devido às infiltrações neo modernistas. “[…] Na minha modesta opinião, se o Concílio pretende obter efeitos salutares, deve começar por considerar o estado atual da Igreja que, à semelhança de Cristo, vive uma nova Sexta-Feira Santa, entregue aos seus inimigos sem defesa, como dizia Pio Doze aos jovens italianos. É necessário compreender o combate sem tréguas que se trava em todos os campos contra a Igreja, conhecer o inimigo, distinguir a estratégia e a tática da batalha, a sua lógica, detectar claramente a sua psicologia e a sua dinâmica, para interpretar com precisão cada um dos confrontos, organizar o contra-ataque e orientá-lo com segurança.”
Nesta ampla comunicação, D. Geraldo Sigaud augurava uma “ciência da Contra-Revolução” que ajudasse a Igreja a atalhar os erros internos e externos.
“A conspiração da Revolução é única e orgânica; e deve ser combatida de uma forma e com uma ação unitária e orgânica. […] Parece-me que deve ser criada uma estratégia católica e um centro de metódica batalha contra a revolução em todo o mundo, e que os católicos devem ser chamados a isto. É razoável que a Santa Sé dirija esta ‘ofensiva’. Os elementos do clero e do laicato que já foram provados na batalha contra-revolucionária devem constituir o “estado-maior” deste exército. Deve ser criada uma verdadeira ciência da guerra contra-revolucionária, tal como existe uma ciência da Revolução”.
A história é feita de minorias, e também no Concílio Vaticano Segundo se assistiu ao enfrentamento de duas minorias: uma conservadora e uma progressista. Entre elas havia essa massa baldeante que era o Terceiro Partido .Todavia, era o núcleo daquelas duas minorias quem detinha a ciência da Revolução e da Contra-Revolução.
A minoria progressista era formada por um grupo de bispos da Europa Central; por isso se dizia que o Reno vinha agora desaguar no Tibre. A figura chave deste alinhamento foi o Cardeal Suenens, que por muitos era tido como o chefe do progressismo europeu.
O cardeal Suenens era o jovem cardeal de Bruxelas que, no dia seguinte à sua elevação à púrpura, acorreu a Roma para sugerir a João Vinte e Três que desse uma orientação pastoral ao Concílio; mas sobretudo era o homem que, desde o início do Concílio, tinha estabelecido um pacto de ferro com D. Helder Câmara, bispo auxiliar do Rio e depois bispo vermelho do Recife. D. Hélder estabeleceu desde a primeira semana uma intensa cooperação com o Cardeal Suenens, que nas suas cartas privadas era indicado com o nome cifrado de “Padre Miguel”. “A nossa amizade nasceu logo nos primeiros dias do Concílio”, recorda o Cardeal Suenens, referindo-se a Dom Hélder;“Este homem desempenhou um papel fundamental nos bastidores, embora nunca tenha tomado a palavra durante as sessões conciliares!” A partir desta altura, o tandem Câmara-Suenens será um dos motores “ocultos” da assembléia conciliar.
Em carta ao Padre José Oscar Beozzo, o sacerdote belga François Houtart, professor na Universidade de Lovaina, mostrou detalhadamente a rede de contatos entre bispos e teólogos europeus e latino-americanos criada por Dom Hélder Câmara. “A rede que D.Hélder tinha estabelecido, e para cuja constituição eu contribuí, compreendia bispos, não só da América Latina, mas também de quase todos os países europeus, especialmente da Bélgica, dos Países Baixos,da França e da Alemanha, bem como de alguns países da Europa de Leste, em especial a Polônia, com Mons. Karol Wojtyla, e a Ásia, com Mons. Binh, arcebispo de Saigon, e Mons. Fernandes, arcebispo de Nova Deli.E compreendia igualmente um certo número de teólogos, como Schillebeeckx, Congar, De Lubac e Daniélou.” (Fim de citação)
Suenens foi o homem escolhido para orientar os quatro «moderadores» do Concílio: uma posição chave que ocupou durante três anos. Foi ele também que a Vinte e Nove de Outubro de 1964, colocou o problema do controlo da natalidade, proferindo em plena Basílica de São Pedro e em tom veemente, estas palavras: «Não repitamos o processo de Galileu!».
Na primeira sessão do Concílio, enquanto o partido anti-romano cerrava fileiras em torno de linhas estratégicas definidas com grande precisão, os conservadores não estavam ligados entre si nem tinham estratégias, à exceção de um grupo inspirado por Plínio Corrêa de Oliveira, que se auto-definia como o“Pequeno Comitê” . Foi deste grupo que nasceu, entre a segunda e a terceira sessão, o Coetus Internationalis Patrum.
Logo no mês de outubro, Plínio Corrêa de Oliveira instalou em Roma um secretariado composto por catorze pessoas que, seguindo ativamente os trabalhos da assembléia, proporcionava um serviço eficaz aos dois bispos que lhe eram mais próximos: D. Geraldo de Proença Sigaud e D. Antônio de Castro Mayer, bispo de Campos. Com o apoio organizativo e as sugestões estratégicas do Prof. Corrêa de Oliveira, os dois bispos brasileiros estabeleceram uma intensa série de contatos com os ambientes conservadores romanos.
Em agosto de 1963, Plínio Corrêa de Oliveira publicava um estudo – com o título “A liberdade da Igreja no Estado comunista” – no qual se interrogava sobre a licitude da “coexistência pacífica” entre a Igreja e os regimes comunistas. Nele mostrava que os católicos não podiam aceitar um modus vivendi com o comunismo que implicasse a renúncia à defesa dos seus direitos naturais, em especial o direito à propriedade privada, sancionado por dois mandamentos, mas negado pelo comunismo. O ensaio, traduzido em diversas línguas, foi distribuído a todos os Padres Conciliares e aos jornalistas de todo o mundo presentes em Roma, suscitando um eco que se fez ouvir do outro lado da Cortina de Ferro.
À distribuição do ensaio, vieram juntar-se duas importantes iniciativas sugeridas pelo pensador brasileiro. Na vigília da segunda sessão, Dom Geraldo Sigaud e Dom Antônio Mayer promoveram uma petição, assinada por mais de duzentos Padres. Nela os signatários pediam que o Santo Padre fizesse elaborar um esquema que se propusesse expor os erros do comunismo e do socialismo e os riscos de que a mentalidade católica se tornasse maleável a tais erros.
A segunda iniciativa foi posta em prática por D. Geraldo Sigaud. A Três de fevereiro de 1964, entregou pessoalmente a Paulo Sexto uma outra petição, esta subscrita por 510 prelados de 78 países. Implorava-se que o Pontífice, em união com todos os bispos, consagrasse o mundo, e explicitamente a Rússia, ao Imaculado Coração de Maria.
As duas iniciativas estavam naturalmente relacionadas e eram ambas escaldantes.
As petições promovidas pelos dois bispos brasileiros e o livro do Prof. Corrêa de Oliveira constituíam, como este último fazia notar na revista Catolicismo, um todo coerente e orgânico: “três episódios de inconfundível importância na luta contemporânea contra o maior adversário do Santo Padre,da Igreja Católica e da Cristandade.”
Mais tarde, a 9 de Outubro de 1965, surgiria a petição que já visava diretamente a condenação do comunismo. O documento foi apresentado por 454 Padres Conciliares oriundos de 86 países diferentes, mas nem sequer foi transmitida às Comissões que estavam trabalhando no esquema, o que provocou um enorme escândalo .
O Cardeal Oddi recordava assim este episódio: “O Monsenhor Glorieux, francês, fez desaparecer na sua gaveta esta petição. Um fato desconcertante. Uma sessão reunida para falar dos problemas da Igreja no mundo contemporâneo e não teve a coragem para condenar o comunismo. Ele que, à época, era o grande adversário da fé. Seremos julgados pela história, estou certo disso.”
A constituição Gaudium et Spes, o décimo sexto e último documento promulgado pelo Concílio, que pretendia ser uma definição completamente nova das relações entre a Igreja e o mundo, não incluiu qualquer forma de condenação do comunismo. O silêncio sobre o comunismo veio a ser uma retumbante omissão desta histórica assembléia.
Referindo-se a este mesmo silêncio, escrevia D. Hélder Câmara em novembro de 1965: “O Concílio Vaticano Segundo disse muitíssimo, tanto com as suas palavras como com os seus silêncios.” Por sua vez, Plínio Corrêa de Oliveira, que se tinha batido na frente oposta, recorda: “Sob a presidência, primeiro de João XXIII e depois de Paulo VI, reuniu-se o Concílio Ecumênico mais numeroso da história da Igreja, onde se esperava que fossem tratadas todas as questões mais importantes da atualidade relativas à causa católica. Entre elas não podia faltar — de maneira alguma! — a atitude da Igreja em face do seu maior adversário de então, um adversário tão completamente oposto à sua doutrina, tão poderoso, tão brutal, tão insidioso, que a Igreja nunca tinha deparado com outro assim na sua história quase bimilenar.”
Podemos hoje perguntar-nos quem eram os verdadeiros profetas do Concílio: aqueles que – como os artífices da Ostpolitik – afirmavam que era necessário chegar a um acordo, a um compromisso com o comunismo, porque, pensando que o comunismo iria durar um ou dois séculos, achavam que ele interpretava as ânsias de justiça da humanidade e que iria ser ele a melhorar o mundo, ou antes aqueles que, fiéis à doutrina da Igreja e sem ilusões, denunciavam a brutal opressão do comunismo, reclamando uma sua solene condenação.
O que eu faço neste livro é ser a voz dos vencidos do Concílio, que é a voz da Tradição e que hoje se revela como uma voz profética.
Plínio Corrêa de Oliveira foi um dos poucos a conseguir entrever o alcance revolucionário do Concílio Vaticano Segundo.
Hoje em dia, toda a gente se apercebe do alcance revolucionário do Maio de Sessenta e Oito, que foi uma revolução cultural mais profunda e incisiva que uma revolução política. Contudo, antes de Sessenta e Oito houve Sessenta e Dois, ou melhor, o triênio Sessenta e Dois – Sessenta e Cinco, os anos do Concílio; e o fato é que o Vaticano Segundo foi também uma revolução na cultura, na mentalidade e na linguagem, uma revolução que modificou profundamente a história dos anos seguintes – como se comprovou depois no próprio Maio de Sessenta e Oito.
Quero sublinhar que, quando falo de revolução, não me refiro à doutrina contida nos dezesseis documentos conciliares. Refiro-me ao evento histórico, um evento que alterou a linguagem da Igreja, no sentido mais amplo do termo. Foi esta a revolução pastoral do Vaticano Segundo: não foi uma revolução no conteúdo, mas na forma pela qual este conteúdo foi expresso. A avaliação do conteúdo e do grau de autoridade que cada documento possa ter, essa já será uma indagação e distinção que, tendo em conta o depósito da fé e as verdades definitivamente propostas no passado, competirá à teologia ou a um eventual pronunciamento infalível do magistério, desde que assuma caráter dogmático.
Dizer isto não significa negar aos documentos o valor que eles têm; significa que, de fato, no plano histórico, os documentos não são tudo. Ninguém conhece as constituições da Revolução Francesa, e no entanto houve nada menos que quatro após a Declaração dos Direitos do Homem; ninguém sabe o que nelas está escrito, mas toda a gente sabe o que foi a guilhotina. A guilhotina tem um significado superior ao das constituições revolucionárias e explica muito melhor do que elas o que foi a Revolução Francesa.
Hoje, ainda não saímos da Revolução Francesa. Diria ainda mais, me parece que a essência do Vaticano Segundo está precisamente na tentativa de conciliar a Igreja com o mundo moderno nascido da Revolução Francesa. Um mundo que a Igreja sempre havia combatido, e que hoje deixou de combater.
A herança mais pesada que o Concílio nos deixou é precisamente, na minha opinião, a perda do espírito militante da Igreja.
Quando, a 12 de Outubro de 1963, mons. Frani, o bispo croata de Split, propôs que no esquema De Ecclesia, ao novo título de Igreja «peregrinante» se continuasse a juntar a denominação tradicional «militante», a proposta foi recusada: a imagem que a Igreja devia oferecer ao mundo já não era a idéia de luta, de condenação e de controvérsia, mas sim de diálogo, de paz, de colaboração ecumênica e fraterna com todos os homens. A minoria progressista conseguiu, não tanto uma alteração da doutrina da Igreja, quanto uma substituição da imagem hierárquica da Esposa de Cristo pela imagem de uma assembléia democrática, dialogante e inserida, ou melhor, absorvida pela história.
Na realidade, a Igreja que sofre no Purgatório e a que triunfa no Paraíso é a mesma que combate em nome de Cristo na Terra; por isso, esta é chamada de “Igreja”, mas por isso também ela é «militante»; a recuperação deste espírito, parece-me ser uma urgência para a Igreja do nosso tempo.
A alegria da luta é uma característica do combatente católico do século Vinte e Um; um combatente que olha para o futuro sem esquecer o passado; e que nos momentos difíceis recorre ao Magistério vivo da Tradição, que ilumina os nossos passos como iluminou os passos de Atanásio, invicto campeão da fé durante a terrível crise ariana do século Quarto. Atanásio deixou-se levar principalmente pelo seu sensus fidei. Este sensus fidei, como nos recorda o beato Newman, durante os setenta anos da crise ariana, foi mantido mais pelos simples fiéis que pelos bispos. Estes, à exceção de alguns, como Atanásio, Eusébio de Vercelli ou Hilário de Poitiers, de fato, não testemunharam a fé ortodoxa.
O Batismo e o Crisma infundem em nós o “sensus fidei”. O Crisma nos dá, além do mais, uma graça toda especial para nos assistir na militância pública em defesa de Cristo, da sua verdade e da Igreja. Depois, é a nós que compete cooperar com a graça nesse combate.Mas ambos os sacramentos nos dão o senso comum dos fiéis, a adesão às verdades de fé por instinto sobrenatural, antes mesmo de o ser através dum raciocínio teológico. Por isso, ninguém pode nos tirar a palavra quando o que está em jogo é o bem da Igreja. Mesmo que se desse, Deus não o queira, uma defecção do Vigário de Cristo, ainda assim, jamais o Espírito Santo, por um momento que fosse, cessaria de assistir a sua Igreja. Dentro dela, uma porção de Pastores e fiéis, por mais exígua que essa possa ser, sempre continuará conservando e transmitindo a verdadeira fé. Para estes, o modelo é a Santíssima Virgem, que sozinha manteve a fé naquele sábado que precedeu a Ressurreição. Desde então, o seu coração tem sido o escaninho onde se guarda a Tradição da Igreja.
A vida da Igreja jamais foi tranqüila. Em si mesma, a Igreja Católica é ontologicamente santa e imaculada,mas ao longo da história teve de lutar sem cessar para conservar a pureza da sua doutrina e dos seus costumes contra inimigos externos e internos que a foram agredindo.
Também hoje temos necessidade de protetores da Tradição; entre os seus possíveis patronos, gostaria de recordar Santa Teresa, a Grande, aquela Santa Teresa que dizia que daria a vida pela mais pequena cerimônia da Igreja. Quantas vidas teria dado, quanto sangue teria derramado Santa Teresa perante a devastação dos altares, o desmoronamento dos ritos, o clima de fúria iconoclasta e de ódio à tradição que nos rodeia!
A Santa de Ávila escreveu palavras que podem nos reconfortar hoje, nestes dias difíceis da nossa vida e da nossa história: «Nada te perturbe, nada te espante, quem a Deus tem, nada lhe falta; tudo passa, só Deus não muda» Palavras que são um manifesto da Tradição.
A Tradição não é apenas a regula fidei da Igreja, é também o fundamento da sociedade e o critério de juízo sobre a história desta mesma sociedade.
Pois bem, esta frase de santa Teresa – «só Deus não muda» – significa que só aquilo que reflete a lei natural e divina vive e merece viver na história; aquilo que é anti-natural, aquilo que se afasta da ordem divina, está destinado a cair e a se corromper.
Não se pode sujeitar a verdade divina e imutável aos fatos ou aos eventos, por mais avassaladores e “epocais” que estes sejam; é a verdade a dever julgar os fatos e a história. A história, por seu lado, serve para nos recordar que o que aconteceu ontem pode se repetir hoje, e que, ontem como hoje, e amanhã, nos tempos de crise e de dificuldades há sempre uma, e só uma, regra da fé, o critério para discernir entre o que é católico e o que não o é: a fidelidade à Tradição, que é a fidelidade às Verdades entregues por Cristo à sua Igreja com estas palavras: “O céu e a terra passarão, as minhas palavras, porém, não passarão” (Mt. 24, 35).