sábado, 30 de maio de 2009

Entrevista com o cardeal Darío Castrillón



Em 7 de julho finalmente foi publicado o motu proprio Summorum pontificum, de Bento XVI, que, na prática, libera o uso do Missal Romano de 1962. O motu proprio, que entrará em vigor em 14 de setembro, estabelece que o Missal Romano promulgado por Paulo VI em 1970 é a expressão ordinária da lex orandi da Igreja Católica de rito latino. Assim, o Missal promulgado por São Pio V e publicado novamente pelo bem-aventurado João XXIII deve ser considerado uma forma extraordinária. Dessa forma, não se cria uma espécie de divisão na “lei da fé”, já que são “dois usos do único rito romano”. É lícito, portanto, celebrar a missa de acordo com a edição típica do Missal Romano de 1962. Para que isso aconteça, o motu proprio de Bento XVI indica novas regras, que substituem as estabelecidas pelos documentos anteriores, Quattuor abhinc annos, de 1984, e Ecclesia Dei, de 1988, por meio dos quais se concedia o indulto que permitia a celebração da chamada missa tridentina, mas só mediante prévia autorização do bispo local. A partir de 14 de setembro, nenhum pároco ou reitor poderá impedir que em sua igreja seja celebrada a missa de São Pio V, desde que os fiéis que a pedirem contem com um sacerdote disposto a fazê-lo, e que este seja idôneo e não impedido juridicamente. Mas não é só. O motu proprio estabelece também que o pároco possa permitir o uso do ritual mais antigo na administração dos sacramentos do batismo, da confissão, do matrimônio e da unção dos enfermos. Aos ordinários (bispos e superiores religiosos) concede-se também a faculdade de celebrar o sacramento da crisma nesse rito.
O documento é acompanhado de uma carta, endereçada aos bispos do mundo inteiro, na qual, entre outras coisas, Bento XVI frisa que “não há contradição alguma entre as duas edições do Missale Romanum”. E lembra que na “história da liturgia há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura”, sublinhando que o que para as gerações anteriores era santo “não pode de repente ser completamente proibido ou até considerado danoso”.
30Dias pediu ao cardeal Darío Castrillón Hoyos, colombiano, presidente da Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei” desde 2000 (e também ex-prefeito da Congregação para o Clero, que dirigiu de 1996 a 2006), que explicasse os conteúdos mais importantes do motu proprio Summorum pontificum.

Eminência, qual é o sentido desse motu proprio que libera o uso do chamado Missal de São Pio V?
DARÍO CASTRILLÓN HOYOS: Quando, após o Concílio Vaticano II, ocorreram mudanças na liturgia, grupos consistentes de fiéis leigos e também de eclesiásticos se sentiram incomodados, porque tinham uma forte ligação com a liturgia que já vigorava havia séculos. Penso nos sacerdotes que durante cinqüenta anos haviam celebrado a chamada missa de São Pio V e que, de uma hora para outra, viram-se obrigados a celebrar uma outra; penso nos fiéis que estavam acostumados com o velho rito havia gerações; penso ainda nas crianças, como os coroinhas, que de repente ficaram embaraçadas ao servirem à missa com o Novus ordo. Houve um mal-estar em vários níveis. Para alguns, o problema era também de natureza teológica, pois consideravam que o rito antigo expressava o sentido do sacrifício melhor do que o rito que era introduzido. Outros, até por razões culturais, lembravam com saudade o gregoriano e as grandes polifonias, que eram uma riqueza da Igreja latina. Para agravar isso tudo, as pessoas que se sentiam incomodadas atribuíam as mudanças ao Concílio, quando, na realidade, o Concílio por si mesmo não havia nem pedido nem estabelecido os detalhes dessas mudanças. A missa que os padres conciliares celebravam era a missa de São Pio V. O Concílio não havia pedido a criação de um novo rito, mas um uso mais amplo da língua vernácula e uma maior participação dos fiéis.
Concordo, era esse o ar que se respirava há quarenta anos. Mas a geração que manifestou aquele mal-estar não está mais presente. E não é só isso: o clero e o povo também se acostumaram ao Novus ordo, e, na esmagadora maioria dos casos, se sentiram muito bem com ele...
CASTRILLÓN HOYOS: Isso é verdade para a esmagadora maioria, por mais que muitas dessas pessoas nem saibam o que se eliminou com o abandono do rito antigo. Mas nem todas se acostumaram com o novo rito. Curiosamente, nas novas gerações, tanto de clérigos quanto de leigos, parece florescer também um interesse e uma estima pelo rito anterior. E são sacerdotes e simples fiéis que muitas vezes não têm nada a ver com os chamados lefebvrianos. Esses são fatos da vida da Igreja, aos quais os pastores não podem continuar surdos. Foi por isso que Bento XVI, que é um grande teólogo, com uma profunda sensibilidade litúrgica, decidiu promulgar o motu proprio.
Mas já não havia um indulto?
CASTRILLÓN HOYOS: Sim, já havia um indulto, mas João Paulo II mesmo entendeu que o indulto não tinha sido suficiente. Primeiro, porque alguns sacerdotes e bispos relutavam em aplicá-lo. Mas, sobretudo, porque os fiéis que desejam celebrar com o rito antigo não devem ser considerados de segunda categoria. São fiéis aos quais se deve reconhecer o direito de assistir a uma missa que alimentou o povo cristão por séculos, que alimentou a sensibilidade de santos como São Filipe Néri, Dom Bosco, Santa Teresinha do Menino Jesus, o bem-aventurado João XXIII e o próprio servo de Deus João Paulo II, que, como eu já disse, entendeu o problema do indulto e, portanto, já tinha em mente ampliar o uso do Missal de 1962. Devo dizer que, nos encontros com os cardeais e com os chefes dos organismos vaticanos nos quais se discutiu sobre essa medida, as resistências foram realmente mínimas. O papa Bento XVI, que acompanhou o processo desde o início, deu este passo importante que seu grande predecessor já havia imaginado. É uma medida petrina tomada por amor a um grande tesouro litúrgico, como a missa de São Pio V, e também pelo amor de um pastor por um considerável grupo de fiéis.
Mas não faltaram resistências, até de expoentes do episcopado...
CASTRILLÓN HOYOS: Resistências que, na minha opinião, derivam de dois erros. A primeira avaliação errada é dizer que se trata de um retorno ao passado. Não é isso. Mesmo porque nada se tira do Novus ordo, que continua a ser o modo ordinário de celebrar o único rito romano; o que se dá é a liberdade, a quem quiser, de celebrar a missa de São Pio V como forma extraordinária.
Esse é o primeiro erro daqueles que se opuseram ao motu proprio. E o segundo?
CASTRILLÓN HOYOS: Achar que ele diminui o poder episcopal. Isso não é verdade. O Papa não mudou o Código de Direito Canônico. O bispo é o moderador da liturgia em sua diocese. Mas a Sé Apostólica tem a competência de ordenar a liturgia sagrada da Igreja universal. E um bispo deve agir em harmonia com a Sé Apostólica e garantir os direitos de cada fiel, inclusive o direito de participar da missa de São Pio V, como forma extraordinária do rito.

Apesar disso, houve quem afirmasse que, com esse motu proprio, Ratzinger “zomba do Concílio” e “dá uma bofetada” em seus antecessores Paulo VI e João Paulo II...
CASTRILLÓN HOYOS: Bento XVI segue o Concílio, que não aboliu a missa de São Pio V nem pediu que o fizessem. E segue o Concílio, que recomendou ouvir a voz e os desejos legítimos dos fiéis leigos. Quem afirma essas coisas deveria ver as milhares de cartas que chegaram a Roma para pedir a liberdade de assistir a missa a que cada um se sente mais ligado. E o Papa não se contrapõe a seus antecessores, que são amplamente citados tanto no motu proprio quanto na carta que a acompanha. Em alguns casos, o papa Montini concedeu de imediato a possibilidade de celebrar a missa de São Pio V. João Paulo II, como eu já disse, queria preparar um motu proprio semelhante ao que hoje foi publicado.
Chegou-se a temer também que uma pequena minoria de fiéis pudesse impor a missa de São Pio V a toda a paróquia?
CASTRILLÓN HOYOS: Quem disse isso obviamente não leu o motu proprio. É claro que nenhum pároco será obrigado a celebrar a missa de São Pio V. Só que, se um grupo de fiéis, tendo um sacerdote disponível para fazê-lo, pedir que essa missa seja celebrada, o pároco ou o reitor da igreja não poderá se opor. Obviamente, se houver dificuldades, caberá ao bispo fazer que tudo transcorra num clima de respeito e, eu diria, de bom senso, em harmonia com o Pastor universal.
Mas não existe o risco de que, com a introdução de duas formas no rito latino, a ordinária e a extraordinária, possa haver uma confusão litúrgica nas paróquias e nas dioceses?
CASTRILLÓN HOYOS: Se as coisas forem feitas com bom senso, simplesmente, não se correrá esse risco. Além do mais, já há dioceses em que se celebram missas em vários ritos, uma vez que existem comunidades de fiéis latinos, greco-latinos ucranianos ou rutenos, maronitas, melquitas, siro-católicos, caldeus, etc. Penso, por exemplo, em algumas dioceses dos Estados Unidos, como Pittsburgh, que vivem essa legítima variedade litúrgica como uma riqueza, não como uma tragédia. E existem também paróquias que acolhem ritos diferentes do latino, entre outras as de comunidades ortodoxas ou pré-calcedonianas, sem que isso suscite escândalo. Não vejo, portanto, o risco de haver confusões. Contanto, é claro, que tudo se desenvolva com ordem e respeito mútuo.
Há ainda quem considere que esse motu proprio atente contra o caráter unitário do rito, que seria um desejo dos padres conciliares...
CASTRILLÓN HOYOS: Admitindo em primeiro lugar que o rito romano continua a ser único, mesmo podendo ser celebrado de duas formas, tomo a liberdade de recordar que nunca houve um rito único para todos na Igreja latina. Hoje, por exemplo, existem todos os ritos das Igrejas orientais em comunhão com Roma. E mesmo no rito latino existem outros ritos além do romano, como o ambrosiano ou o moçárabe. A própria missa de São Pio V, quando foi aprovada, não anulou todos os ritos anteriores, mas apenas aqueles que não contavam com pelo menos dois séculos de antiguidade...
E a missa de São Pio V? Ela nunca foi abolida no Novus ordo?
CASTRILLÓN HOYOS: O Concílio Vaticano II não a aboliu, nem depois nunca houve nenhuma medida efetiva que estabelecesse sua abolição. Portanto, formalmente, a missa de São Pio V nunca foi abolida. De certa forma, é surpreendente que aqueles que se dizem intérpretes autênticos do Vaticano II dêem a ele uma interpretação, no campo litúrgico, tão restritiva e pouco respeitadora da liberdade dos fiéis, fazendo que esse Concílio, além de tudo, pareça mais coercitivo ainda que o Concílio de Trento.
No motu proprio não se estabelece um número mínimo de fiéis necessários para que se peça a celebração da missa de São Pio V. Mas há algum tempo vazou uma notícia de que se pensava num mínimo de trinta fiéis...
CASTRILLÓN HOYOS: Essa é a prova cabal de como se divulgaram muitas pseudonotícias sobre o motu proprio semeadas por pessoas que nem haviam lido os esboços ou que, por interesses próprias, queriam influenciar sua elaboração. Eu acompanhei todo o processo até a redação final e, que eu me lembre, em nenhum esboço jamais apareceu qualquer limite mínimo de fiéis, nem de trinta, nem de vinte, nem de cem.

Por que se optou por apresentar o texto do motu proprio antecipadamente a alguns eclesiásticos, em 27 de junho?
CASTRILLÓN HOYOS: O Papa não podia chamar todos os bispos do mundo, por isso convocou alguns prelados, por diferentes motivos particularmente interessados na questão, que representassem todos os continentes. Apresentou o texto a eles, dando-lhes a possibilidade de fazerem observações. Todos os participantes puderam falar.
À luz desse encontro, houve alguma variação no texto do motu proprio que havia sido aprontado?
CASTRILLÓN HOYOS: Foram solicitadas e introduzidas pequenas variações lexicais, não mais que isso.
Que perspectivas o motu proprio pode abrir em relação aos lefebvrianos?
CASTRILLÓN HOYOS: Os seguidores de dom Lefebvre sempre pediram que todo sacerdote pudesse celebrar a missa de São Pio V. Hoje, essa faculdade é oficial e formalmente reconhecida. Por outro lado, o Papa frisa que a missa que nós todos oficiamos todos os dias, a do Novus ordo, continua a ser a forma ordinária de celebrar o único rito romano. E, assim, sublinha que não se pode negar nem o valor nem muito menos a validade do Novus ordo. Isso deve ser claro.
O motu proprio aumentará a responsabilidade de “Ecclesia Dei”?
CASTRILLÓN HOYOS: Esta Comissão foi fundada para reunir os leigos e os eclesiásticos que abandonaram o movimento lefebvriano depois das consagrações episcopais ilegítimas. De fato, ela depois trabalhou também por um diálogo com a própria Fraternidade de São Pio X, na perspectiva de uma plena comunhão. Hoje, o motu proprio se dirige a todos os fiéis ligados à missa de São Pio V, e não apenas aos de proveniência, por assim dizer, lefebvriana. E isso obviamente pressupõe para nós um trabalho muito mais amplo.
fonte:30 giorni