Até o Vaticano II, para esclarecer este ponto, o teólogo tinha a seu dispor uma elaboração bastante precisa do conceito de Tradição, da qual ele poderia extrair um argumento para avaliar adequadamente seu julgamento.
Já fiz alusão a esta elaboração na primeira parte do presente capítulo, considerando a Tradição a partir de vários pontos de vista, e qualificando-a de acordo com suas funções em apostólica, divino-apostólica, humano-apostólica, inerente, declarativa e constitutiva.
Agora, o Vaticano II, que fez uma exceção para a Tradição Apostólica – embora sem nunca apresentá-la com o significado doravante considerado como “tradicional” desta qualificação – sistematicamente ignorou todas as outras. Por outro lado, encontramos no Concílio uma qualificação diferente: Tradição viva, que discutirei posteriormente.
Somos confrontados com uma maneira de expressar que, ao procurar simplificar a mensagem, acaba tornando-a mais complicada por conta de uma linguagem muito genérica, seu emprego anfibológico e sua falta de especificidade. E não estou falando sobre o fato de que “viva” possa abrir as portas a todos os tipos de inovações que poderiam surgir ou germinar da velha planta.
[…]
Faço uma última observação acerca da assim chamada Tradição viva da Igreja. Aparentemente, é uma expressão irrepreensível, embora seja, de fato, ambígua. É irrepreensível porque a Igreja é uma realidade viva e a Tradição é sua própria vida. É ambígua porque permite a introdução de qualquer novidade na Igreja, mesmo as mais contra-indicadas, como expressão de sua vida.
Dei Verbum fala do Evangelho vivo¸ do Magistério vivo e da Tradição viva. Já esta enorme gama de usos não advoga em favor da univocidade do conceito.
No número 7, por exemplo, é dito que “para que o Evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na Igreja, os Apóstolos deixaram os Bispos como seus sucessores”.
No número 8, lemos que: “ o Espírito Santo – por quem ressoa a voz viva do Evangelho na Igreja e, pela Igreja, no mundo, introduz os crentes na verdade plena”.
Em seguida, encontramos no número 10 a seguinte afirmação: “o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo (destaques meus) da Igreja”.
Pouco depois, no número 12, é recomendado como um dever que “não menos atenção se deve dar, na investigação do reto sentido dos textos sagrados, ao contexto e à unidade de toda a Escritura”, “tendo em conta a Tradição viva (destaques meus) de toda a Igreja”.
De todas estas afirmações nós vagamente percebemos uma certa analogia no uso do adjetivo “vivo”, mas seguramente não o seu verdadeiro significado, nem a razão de seu uso.
O que garante a vitalidade do Evangelho – sabemos bem – é o Evangelho: através dele ressoa a Palavra do Deus vivo, que é a própria Pessoa de Deus falando, e, portanto, a expressão de Sua própria vida. Que há também um Magistério é uma verdade de nossa fé, no sentido de que qualquer um na encargo do Magistério continua, graças à sucessão apostólica, a transmissão ininterrupta dos ensinamentos de Cristo e de Seus Apóstolos.
De fato, esta sucessão faz o ensinamento de Cristo e de Seus Apóstolos alcançar a Igreja em todo período de tempo, porque é um elemento vivo e vital da própria existência da Igreja. Por outro lado, o conceito de “Tradição viva” é mais nebuloso.
O texto conciliar não obriga a se ater apenas a ele, mas também à analogia da fé, i.e., o elo que liga numa recíproca interdependência cada uma das verdades reveladas e as torna uma unidade inseparável.
O objetivo desta dupla obrigação tende a transpassar os limites da palavra escrita, esta palavra vinda da Palavra viva, que constitui o início da Tradição eclesiástica.
Mas por que se diz viva? O Concílio não o diz, ou ao menos não com a clareza necessária. Provavelmente por causa da unidade – ao menos substancial (portanto, a continuidade) – entre o primeiro estágio da Tradição que é apostólico, os estágios seguintes, a começar com aquele que foi imediatamente pós-apostólico, descendo aos outros, relacionados com os grandes períodos históricos da Igreja, e finalmente até o presente estágio.
É provavelmente isso o que significa. Mas o silêncio sobre esta continuidade, infelizmente, também implica na ausência de qualquer certeza sobre a questão. “Vivo” podia certamente indicar uma ligação entre os vários estágios e evitar mais ou menos rupturas sérias, assim garantindo a continuidade viva e vital da Tradição. Mas o texto permanece calado sobre o assunto. Meramente afirma que a Tradição é viva.
Agora, não é suficiente declará-la viva para que ela realmente seja. A comunicação vital entre suas várias fases não deve apenas ser proclamada, deve primeiramente e antes de tudo ser provada, e de tal maneira que a prova coincida com a continuidade – ao mesmo substancial – de seus conteúdos com os das fases precedentes.
A Tradição é viva não quando se torna integrada a alguma novidade, mas quando descobrimos nela, ou deduzimos dela, algum novo aspecto que anteriormente escapava da atenção; ou quando alguma nova compreensão de seus conteúdos originais enriquece a vida presente da Igreja.
Esta vida não progride por solavancos ou saltos desconectados uns dos outros, mas pela linha principal do “quod semper, quod ubique, quod ab omnibus creditum est,” que o Vaticano I, seguindo os passos de Trento, expressou ao referir-se ao significado “quem tenuit ac tenet sancta Mater Ecclesia” (DS 1507 and 3007).
O “sempre”, o “em todo lugar” e o “por todos” não estão relacionados com uma identidade de palavras e portanto da afirmação como um todo, mas verdadeiramente com o significado que a Igreja, por meio de seu Magistério solene e ordinário, sempre sustentou, e ainda sustenta agora em suas declarações teológicas e dogmáticas.
O princípio da “Tradição viva” não foi objeto de qualquer discussão. Todavia, é suscetível de abrir o caminho a uma falsificação do depósito sagrado das verdades contidas na Tradição.
Numa atmosfera como esta que prevaleceu durante e depois do Vaticano II, quando apenas o que era novo parecia ser verdade, e quando esta novidade se apresentava sob os traços da cultura imanentista e fundamentalmente ateísta de nosso tempo, a doutrina de sempre não constituía mais que um vasto cemitério.
A Tradição permaneceu mortalmente ferida e agoniza ainda hoje (ao menos que já esteja morta) por causa das posições tomadas que eram radicalmente irreconciliáveis com seu passado. Então, não é suficiente defini-la como viva, se já não há mais nada de vivo nela.
A verdade é (e isso é grave) que falamos de Tradição viva apenas para endossar toda inovação apresentada como desenvolvimento natural das verdades oficialmente transmitidas e recebidas, mesmo que a inovação não tenha nada em comum com tais verdades e esteja bem longe de ser um novo germe do velho tronco.
Em verdade, a Tradição é viva apenas na medida em que é e continua a ser a mesma Tradição apostólica, que se reapresenta – inalterada – na e através da Tradição eclesiástica.
A primeira, antes, carrega consigo um significado passivo: é o que foi transmitido, igual a si mesma, inclusive em sua transmissão, porque o depósito deve ser mantido inalterado.
A última, pelo contrário, mostra um significado mais ativo enquanto órgão oficial que assegura a transmissão fiel do depósito e encontra, em seu fim, a justificativa para o adjetivo “vivo”.
Portanto, um dado que não tivesse suas raízes nos conteúdos transmitidos não seria um dado da Tradição viva, mesmo no caso – em si mesmo e per se – absurdo, em que este dado fosse oficialmente proposto.
Um exemplo grosseiro: nunca será possível que a teologia transcedental de Rahner seja declarada um elemento da Tradição viva, porque ela é, na realidade, sua tumba.
Algumas coisas no Concílio, e muitas coisas na era pós-concílio contribuíram para cavar esta sepultura.
A legitimidade do adjetivo “vivo” com respeito ao progresso no conhecimento que podemos ter da Tradição é inquestionável, como já dissemos. Neste caso, pertence ao campo do “progresso dogmático”.
Na verdade, o dever do Magistério da Igreja não é apenas reapresentar a Tradição Apostólica, mas também estudá-la a fundo, analisá-la, explicá-la.
O caráter vivo da Tradição é, portanto, manifestado não por avaliar o conteúdo apostólico em comparação com o nível e com os conteúdos da cultura desse ou daquele período histórico, mas pelo fato de que ele inicia uma transição de uma implícita para uma explícita afirmação dos conteúdos.
Em todo caso, a atual chamado para a Tradição viva pode ser resumido como um verdadeiro perigo para a fé de cada cristão e de cada comunidade cristã como um todo.
Monsenhor Brunero Gherardini – Concilio Ecumenico Vaticano II: Un discorso da fare.
Excertos do capítulo 5 – “Tradição no Concílio Vaticano II”. Fonte: DICI