CARTA ENCÍCLICA DO PAPA PIO XII
MEDIATOR DEI
SOBRE A SAGRADA LITURGIA
Aos veneráveis irmãos Patriarcas, Primazes,
Arcebispos, Bispos e aos outros Ordinários locais
em paz e comunhão com a Sé Apostólica
III. A liturgia é regulada pela hierarquia eclesiástica
35. Para melhor compreender, ainda, a sagrada liturgia é necessário considerar outro seu carácter importante.
A Igreja é uma sociedade; exige, por isso, uma autoridade e hierarquia próprias. Se todos os membros do corpo místico participam dos mesmos bens e tendem aos mesmos uns, nem todos gozam do mesmo poder e são habilitados a cumprir as mesmas acções. O divino Redentor estabeleceu, com efeito, o seu reino sob fundamentos da ordem sagrada, que é reflexo da hierarquia celeste. (36). Somente aos apóstolos e àqueles que, depois deles, receberam dos seus sucessores a imposição das mãos, é conferido o poder sacerdotal em virtude do qual, como representam diante do povo que lhes foi confiado a pessoa de Jesus Cristo, assim representam o povo diante de Deus. Esse sacerdócio não vem transmitido nem por herança, nem por descendência carnal, nem resulta da emanação da comunidade cristã ou de delegação popular. Antes de representar o povo, perante Deus, o sacerdote representa o divino Redentor, e porque Jesus Cristo é a cabeça daquele corpo do qual os cristãos são membros, ele representa Deus junto do povo. O poder que lhe foi conferido não tem, pois, nada de humano em sua natureza; é sobrenatural e vem de Deus: "assim como o Pai me enviou, assim eu vos envio:..' ;(40) "quem vos ouve, a mim ouve..."; (41) "percorrendo todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura; quem crer e for batizado, será salvo".(42)
37. Por isso o sacerdócio externo e visível de Jesus Cristo se transmite na Igreja não de modo universal, genérico e indeterminado, mas é conferido a indivíduos eleitos, com a geração espiritual da ordem, um dos sete sacramentos, o qual não somente confere uma graça particular, própria deste estado e deste ofício, mas ainda um carácter indelével que configura os ministros sagrados a Jesus Cristo sacerdote, demonstrando-os capazes de cumprir aqueles actos legítimos de religião com os quais os homens são santificados e Deus é glorificado, segundo as exigências da economia sobrenatural.
38. Com efeito, como o lavacro do batismo distingue os cristãos e os separa dos outros que não foram lavados na água purificadora e não são membros de Cristo, assim o sacramento da ordem distingue os sacerdotes de todos os outros cristãos não consagrados, porque somente eles, por vocação sobrenatural, foram introduzidos no augusto ministério que os destina aos sagrados altares e os constituem instrumentos divinos por meio dos quais se participa da vida sobrenatural com o corpo místico de Jesus Cristo. Além disso, como já dissemos, somente estes são marcados com caráter indelével que os configura ao sacerdócio de Cristo e somente as suas mãos são consagradas "para que seja abençoado tudo o que abençoam e tudo o que consagram seja consagrado e santificado em nome de nosso Senhor Jesus Cristo".(43) Aos sacerdotes, pois, deve recorrer quem quer que deseje viver em Cristo, a fim de receber deles o conforto, o alimento da vida espiritual, o remédio salutar que o curará e o fortificará para que possa felizmente ressurgir da perdição e do abismo dos vícios; deles, enfim, receberá a bênção que consagra a família e por eles o último suspiro da vida mortal será dirigido ao ingresso na beatitude eterna.
39. Já que a sagrada liturgia é exercida sobretudo pelos sacerdotes em nome da Igreja, a sua organização, o seu regulamento e a sua forma não podem depender senão da autoridade da Igreja. Esta é não somente uma conseqüência da natureza mesma do culto cristão, mas é ainda confirmada pelo testemunho da história.
40. Esse direito inconcusso da hierarquia eclesiástica é provado ainda pelo fato de ter a sagrada liturgia estreita ligação com aqueles princípios doutrinários que a Igreja propõe como fazendo parte de verdades certíssimas, e por isso deve conformar-se aos ditames da fé católica proclamados pela autoridade do supremo magistério para proteger a integridade da religião revelada por Deus.
41. A esse propósito, veneráveis irmãos, fazemos questão de pôr em sua justa luz uma coisa que pensamos não ignorais, isto é, o erro daqueles que pretenderam que a sagrada liturgia fosse como uma experimentação do dogma, de modo que, se uma destas verdades tivesse, através dos ritos da sagrada liturgia, trazido frutos de piedade e de santidade, a Igreja deveria aprová-la, e repudiá-la em caso contrário. Donde o princípio: "a lei da oração é lei da fé".
42. Não é, porém, assim que ensina e manda a Igreja. O culto que ela rende a Deus é, como de modo breve e claro diz santo Agostinho, uma contínua profissão de fé católica, e um exercício da esperança e da caridade: "a Deus se deve honrar com a fé, a esperança e a caridade".(44) Na sagrada liturgia fazemos explícita profissão de fé não somente com a celebração dos divinos mistérios, com o cumprimento do sacrifício e a administração dos sacramentos, mas ainda recitando e cantando o Símbolo da fé, que é como o distintivo e a téssera dos cristãos, com a leitura de outros documentos e das sagradas letras escritas por inspiração do Espírito Santo. Toda a liturgia tem, pois, um conteúdo de fé católica enquanto atesta publicamente a fé da Igreja.
43. Por esse motivo, sempre que se tratou de definir um dogma, os sumos pontífices e os concílios, abeberando-se das chamadas "fontes teológicas", não raramente tiraram argumentos também dessa sagrada disciplina, como fez, por exemplo, o nosso predecessor de imortal memória Pio IX quando definiu a imaculada conceição de Maria virgem. Do mesmo modo, a Igreja e os santos padres, quando se discutia uma verdade controversa ou posta em dúvida, não deixaram de pedir luz também aos ritos veneráveis transmitidos pela antiguidade. Assim se tornou conhecida e venerada a sentença: "A lei da oração estabeleça a lei da fé".(45) A liturgia, portanto, não determina nem constitui em sentido absoluto e por virtude própria a fé católica, mas antes, sendo ainda uma profissão da verdade celeste, profissão dependente do supremo magistério da Igreja, pode fornecer argumentos e testemunhos de não pouco valor para esclarecer um ponto particular da doutrina cristã. Se queremos distinguir e determinar, de modo geral e absoluto, as relações que intercorrem entre fé e liturgia, podemos afirmar com razão que "a lei da fé deve estabelecer a lei da oração". O mesmo deve dizer-se ainda quando se trata das outras virtudes teológicas: "na... fé, na esperança e na caridade oramos sempre com desejo contínuo"(46).