domingo, 2 de janeiro de 2011

Uma interessante carta inédita do Cardeal Ratzinger.

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Oferecemos nossa tradução de um interessante intercâmbio de cartas entre o Padre Matías Augé, liturgista italiano, e o Cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. O Padre Augé havia escrito ao Cardeal Ratzinger, em 1998, expondo-lhe uma série de críticas à conferência que o prelado havia pronunciado por ocasião do 10º aniversário do Motu Proprio “Ecclesia Dei”. Poucos meses depois, o Cardeal Ratzinger respondia à carta, defendendo os argumentos que havia exposto em sua conferência e apresentando sua visão da questão litúrgica. Um interessante intercâmbio, que podemos ler graças à gentileza do próprio Padre Augé, que publicou ambas as cartas em seu blog, as quais logo foram retomadas pelo blog Messainlatino.
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Carta do Padre Augé ao Cardenal Ratzinger
Roma, 16 de novembro de 1998
Eminência Reverendíssima,
Perdoe-me se me atrevo a escrever esta carta. Faço-o com simplicidade e também com grande sinceridade. Sou professor de liturgia no Pontifício Instituto Litúrgico de Santo Anselmo e na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Lateranense, assim como Consultor da Congregação para o Culto Divino. Li a conferência que o senhor pronunciou há pouco tempo por ocasião dos “Dix ans du Motu Proprio Ecclesia Dei” [Dez anos do Motu Proprio Ecclesia Dei]. Confesso que seu conteúdo me deixou profundamente perplexo. Impressionaram-me, particularmente, as respostas que o senhor dá às objeções feitas por aqueles que não aprovam “o apego à liturgia antiga”. E sobre estas quisera deter-me nesta carta que lhe envio.
A acusação de desobediência ao Vaticano II é rechaçada dizendo que o Concílio não reformou os livros litúrgicos, mas simplesmente ordenou sua revisão. Muito bem! E não se pode contradizer a afirmação. Mas o faço notar, no entanto, que tampouco o Concílio de Trento reformou os livros litúrgicos, havendo dado apenas princípios muito gerais a respeito. A reforma como tal, o Concílio pediu ao Papa, e Pio V e seus sucessores a levaram a cabo fielmente.
Logo, não consigo entender como os princípios do Concílio Vaticano II concernentes à reforma da Missa presentes na Sacrosanctum Concilium, nn. 47-58 (portanto, não só os nn. 34-35 citados pelo senhor) podem estar de acordo com a restauração da assim chamada missa tridentina. Ademais, se tomamos por boa a afirmação do Cardeal Newman pelo senhor recordada, isto é, que a Igreja nunca aboliu ou proibiu “formas litúrgicas ortodoxas”, então, me pergunto se, por exemplo, as notáveis mudanças introduzidas por Pio X no Saltério Romano ou por Pio XII na Semana Santa aboliram ou não os antigos ordenamentos tridentinos. Este princípio poderia induzir a alguns, por exemplo, na Espanha, a pensar que é permitido celebrar o antigo rito hispânico-visigodo, ortodoxo e recondicionado depois do Vaticano II. Falar do rito tridentino como diferente do Vaticano II não me parece exato, mas, antes, diria que é contrário à noção mesma do que se entende aqui por rito. Tanto o rito tridentino como o atual são um só rito: o rito romano, em duas diversas fases de sua história.
A segunda objeção que se faz é que o retorno da liturgia antiga corre o risco de romper a unidade da Igreja. Esta objeção é afrontada pelo senhor distinguindo entre o aspecto teológico e prático do problema. Posso compartilhar muitas das considerações que o senhor faz a respeito, exceto alguns dados historicamente insustentáveis, como, por exemplo, a afirmação de que até o Concílio de Trento existiam os ritos moçárabes de Toledo e outros, suspensos pelo Concílio. O rito moçárabe, de fato, havia sido suprimido já por Gregório VII com exclusão de Toledo, onde permanece em vigor. O rito ambrosiano, por sua vez, não foi nunca suprimido. O que não chego a compreender a respeito é que se esqueça o que Paulo VI afirma na Constituição Apostólica de 3 de abril de 1969, com a qual promulga o Novo Missal, e é isso: “… confiamos que este Missal será acolhido pelos fiéis como meio de testemunhar e afirmar a unidade de todos, e que por meio dele, em tantas variedades de línguas, subirá ao Pai celestial… uma só e idêntica oração”. Paulo VI quis, portanto, que o uso do Novo Missal fosse expressão da unidade da Igreja; e acrescenta posteriormente para concluir: “Queremos que o quanto estabelecemos e prescrevemos tenha força e eficácia agora e no futuro, não obstante, e fosse o caso, as Constituições e Ordenações Apostólicas de Nossos Predecessores e qualquer outra prescrição, inclusive as dignas de especial menção e com poder de derrogar a lei”.
Conheço as sutis distinções feitas por alguns juristas ou aqueles que se consideram tal. Creio, todavia, que se trata simplesmente de “sutilezas” que, enquanto tais, não merecem grande atenção. Seria possível citar diversos documentos nos quais se demonstra claramente a vontade de Paulo VI a respeito. Apenas recordo a carta que em 11 de outubro de 1975 o Cardeal Villo escrevia a Mons. Coffy, presidente da Comissão Episcopal Francesa de Liturgia e Pastoral Sacramental (Secretaria de Estado n. 287608), na qual dizia, entre outras coisas: “Par la Constitution Missale Romanum, le Pape prescrit, comme vous le savez, que le nouveau Missel doit remplacer l’ancien, nonobstant les Constitutions et Ordonnances apostoliques de ses prédécesseurs, y compris par conséquent toutes les dispostions figurant dans la Constitution Quo Primum et qui permettrait de conserver l’ancien missel […] Bref, comme dit la Constitution Missale Romanum, c’est dans le nouveau Missel romain et nulle part ailleurs que les catholiques de rite romain doivent chercher le signe et l’instrument de l’unité mutuelle de tous…”. (Pela Constituição Missale Romanum, o Papa prescreve, como sabeis, que o novo Missal deva substituir o antigo, não obstante as Constituições e Ordenações apostólicas de seus predecessores, e inclui, por conseguinte, todos as disposições que figuram na Constituição Quo Primum e que permitiriam conservar o antigo missal […] Resumidamente, como diz a Constituição Missale Romanum, é no novo Missal Romano e em nenhum outro lugar que os católicos  do rito romano devem procurar o sinal e o instrumento da unidade mútua de todos…”)
Eminência, como professor de liturgia, encontro-me ensinando coisas que me parecem diversas das que o senhor expressou na mencionada conferência. E creio que devo continuar por este caminho, em obediência ao magistério pontifício. Lamento também os excessos com que alguns, depois do Concílio, celebraram ou celebram ainda a liturgia reformada. Mas não consigo compreender por que alguns Eminentíssimos Cardeais, não apenas o senhor, creram ser oportuno colocar remédio nisso colocando “de fato” em discussão uma reforma aprovada, depois de tudo, pelo Sumo Pontífice Paulo VI, e abrindo cada vez mais as portas ao uso da antiga Missa de Pio V. Com humildade, mas também com parresia apostólica, sinto a necessidade de afirmar minha oposição a similares orientações. Preferi dizer abertamente o que muitos liturgistas e não liturgias, que nos sentimentos filhos obedientes da Igreja, dizemos nos corredores dos Ateneus romanos.
Seu devotíssimo em Cristo,
Matías Augé cmf
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Resposta do Cardeal Ratzinger ao Padre Augé
18 de fevereiro de 1999
Reverendíssimo Padre,
Li com atenção sua carta de 16 de novembro, na qual o senhor formulou algumas críticas à Conferência dada por mim no dia 24 de outubro de 1988, por ocasião do 10º aniversário do Motu Proprio Ecclesia Dei.
Compreendo que o senhor não compartilhe de minhas opiniões sobre a reforma litúrgica, sua aplicação e a crise que deriva de algumas tendências nela escondidas, como a dessacralização.
Parece-me, no entanto, que sua crítica não leva em consideração dois pontos:
1. É o Sumo Pontífice João Paulo II quem concedeu, com o Indulto de 1984, o uso da liturgia anterior à reforma paulina, sob certas condições; posteriormente, o mesmo Pontífice publicou, em 1988, o Motu Proprio Ecclesia Dei, que manifesta sua vontade de ir ao encontro dos fiéis que se sentem vinculados a certas formas da liturgia latina anterior, e, para tanto, pede aos bispos conceder “de modo amplo e generoso” o uso dos livros litúrgicos de 1962.
2. Uma parcela não pequena de fiéis católicos, sobretudo de língua francesa, inglesa e alemã, permanecem fortemente vinculados à liturgia antiga, e o Sumo Pontífice não quer repetir com eles o que já havia ocorrido em 1970, onde se impôs a nova liturgia de maneira extremamente brusca, com o espaço de tempo de apenas 6 meses, enquanto o prestigioso Instituto litúrgico de Tréveris, de fato, para tal questão que toca de maneira tão viva o nervo da fé, justamente havia pensado num tempo de 10 anos, se não me engano.
Portanto, são estes dois pontos — isto é, a autoridade do Sumo Pontífice reinante e sua atitude pastoral e respeitosa para com os fiéis tradicionalistas — que deveriam ser levados em consideração.
Permita-me, então, acrescentar algumas respostas a suas críticas sobre minha intervenção.
1. Quanto ao Concílio de Trento, nunca disse que este havia reformado os livros litúrgicos. Pelo contrário, sempre sublinhei que a reforma pós-tridentina, colocando-se plenamente na continuidade da história da liturgia, não quis abolir outras liturgias latinas ortodoxas (cujos textos existiam há mais de 200 anos) e tampouco impor uma uniformidade litúrgica.
Quando disse que também os fiéis que fazem uso do Indulto de 1984 devem seguir os ordenamentos do Concílio, queria mostrar que as decisões fundamentais do Vaticano II são o ponto de encontro de todas as tendências litúrgicas e que, portanto, são também a ponte de reconciliação no âmbito litúrgico. Os ouvintes presentes, na realidade, compreenderam minhas palavras como um convite à abertura ao Concílio, ao encontro com a reforma litúrgica. Penso que quem defende a necessidade e o valor da reforma deveria estar plenamente de acordo com este modo de aproximar os “tradicionalistas” do Concílio.
2. A citação de Newman quer significar que a autoridade da Igreja nunca aboliu em sua história, com um mandado jurídico, uma liturgia ortodoxa. Verificou-se, por sua vez, o fenômeno de uma liturgia que desaparece, e então pertence à história, não ao presente.
3. Não gostaria de entrar em todos os detalhes de sua carta, ainda que não fosse difícil responder a suas diversas críticas a meus argumentos. No entanto, considero muito importante o que diz respeito à unidade do Rito Romano. Esta unidade não está ameaçada hoje pelas pequenas comunidades que fazem uso do Indulto e são, com freqüência, tratados como leprosos, como pessoas que fazem algo indecoroso, mais ainda, imoral; não, a unidade do Rito Romano está ameaçada pela criatividade litúrgica selvagem, com freqüência animada por liturgistas (por exemplo, na Alemanha se faz a propaganda do projeto “Missal 2000″, dizendo que o Missal de Paulo VI estaria já superado). Repito o que disse em minha intervenção: que a diferença entre o Missal de 1962 e a Missa fielmente celebrada segundo o Missal de Paulo VI é muito menor que a diferença entre as diversas aplicações denominadas “criativas” do Missal de Paulo VI. Nesta situação, a presença do Missal precedente pode converter-se em um baluarte contra as alterações da liturgia lamentavelmente freqüentes, e ser, deste modo, um apoio da reforma autêntica. Opor-se ao uso do Indulto de 1984 (1988) em nome da unidade do Rito Romano é, segundo minha experiência, uma atitude muito distante da realidade. Por outro lado, lamento um pouco que o senhor não tenha percebido, em minha intervenção, o convite dirigido aos “tradicionalistas” a se abrirem ao Concílio, a vir ao encontro da reconciliação, na esperança de superar, com o tempo, a brecha entre os dois Missais.
Todavia, agradeço por sua parresia, que me permitiu discutir francamente sobre uma realidade que nos resulta igualmente importante.
Com sentimentos de gratidão pelo trabalho que o senhor desenvolve na formação dos futuros sacerdotes, saúdo-o,
Seu no Senhor,
+ Joseph Card. Ratzinger