Concílio Vaticano II — Revelações que não podem ser
ignoradas
“Uma árvore boa não pode dar maus frutos; nem uma árvore má,
bons frutos” (Mt 7, 18). Quais os “frutos” produzidos pelo Vaticano II?
Qual a causa e a quem atribuir a responsabilidade pela decadência religiosa nos
dias atuais?
Conhecido dos leitores de
Catolicismo, o historiador e jornalista italiano
Roberto de Mattei, nascido em 1948, é um dos mais destacados líderes católicos
contemporâneos. É professor de História da Igreja e do Cristianismo na
Universidade Europeia de Roma, na qual é o coordenador da Escola de
Ciências Históricas. Entre 2004 e 2011 foi por duas vezes vice-presidente do
principal organismo estatal italiano de apoio às ciências, o Conselho
Nacional de Pesquisa. Membro do Conselho de Administração do Instituto
Histórico para a Idade Moderna e Contemporânea e da Sociedade
Geográfica Italiana, ele colabora com o Comitê Pontifício de Ciências
Históricas. Foi agraciado com a insígnia da Ordem da Santa Sé de São
Gregório, o Grande, em reconhecimento pelos seus serviços prestados à
Igreja.
Em 2010, Roberto de Mattei publicou o livro O
Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita, o qual lhe
valeu o mais prestigioso prêmio italiano para livros históricos: o Acqui
Storia/2011. Recentemente traduzido para o português, e difundido no Brasil
pela Petrus Livraria, pode ser adquirido por meio do site: http://www.livrariapetrus.com.br.
Nesta entrevista concedida a
Catolicismo, o Prof. de Mattei explica que seu
trabalho oferece “uma contribuição que não é a do teólogo, mas do
historiador”, cuja tarefa é, com base em documentos de arquivos, diários,
cartas e testemunhos daqueles que foram os protagonistas, “compreender a
essência de um evento, procurando rastrear as causas e as consequências nas
ideias e nas tendências profundas de uma época”. Neste caso, o período do
Concílio Vaticano II.
No 50° aniversário da abertura do Concílio, o balanço é
francamente negativo. Para de Mattei, a última assembleia conciliar,
independente da avaliação teológica de seus documentos, constituiu um evento
catastrófico para a Igreja.
* * *
Catolicismo — Muitas
pessoas imaginam não existir um debate sobre o Concílio Vaticano II, que seria
uma espécie de “dogma” aceito por todos. Qual é a situação em Roma? Quem o
questiona e com que autoridade?
Prof. de
Mattei — Após o já famoso discurso de Bento XVI à Cúria
Romana, em 22 de dezembro de 2005, iniciou-se, de modo especial na Itália, um
debate animado, histórico e teológico sobre o Concílio Vaticano II. Posso
confirmar isso, por exemplo, devido à notícia, já publicada em blog, de
que o Cardeal Walter Brandmüller, presidente emérito do Pontifício Comitê de
Ciências Históricas, promoveu alguns seminários sobre o Vaticano II, realizados
em Roma e no norte da Itália. Estas conversações ocorreram “a portas fechadas”
entre estudiosos de diferentes tendências, e têm sido para o Vaticano uma boa
oportunidade para remover o véu da “intocabilidade” que impede qualquer
discussão séria e aprofundamento do tema. O Vaticano II não é mais um
“superdogma”, mas um evento histórico submetido à avaliação histórica e
teológica completa.
Catolicismo — Existe
na História da Igreja algum outro exemplo de concílio que tenha sido apenas
pastoral? Se existiu, quais foram as suas consequências?
Prof. de
Mattei — Na História da Igreja foram realizados 21
concílios por ela reconhecidos como ecumênicos ou gerais. A partir do Concílio
de Nicéia, cada concílio tem sido objeto de debate histórico. No entanto, ao
contrário dos concílios anteriores, o Concílio Vaticano II representa um novo
problema para os historiadores. Os concílios cumprem, sob a autoridade do Papa e
juntamente com este, um Magistério solene em matéria de fé e moral, e se colocam
como os juízes supremos e legisladores em matéria de lei e de disciplina da
Igreja. O Concílio Vaticano II não aprovou leis e nem sequer deliberou de forma
definitiva sobre questões de fé e moral, mas se declarou “pastoral”. Na alocução
com a qual abriu o Vaticano II, em 11 de outubro de 1962, a qual é como sua
“Carta Magna”, João XXIII explicou que o concílio havia sido convocado não para
condenar erros ou fazer novos dogmas, mas propor, com a linguagem adaptada aos
novos tempos, o ensinamento perene da Igreja.
A dimensão pastoral, em si mesma acidental e secundária em
relação à doutrinária, tornou-se de fato uma prioridade, operando uma revolução
no estilo, na linguagem, na mentalidade. O padre John W. O’Malley explicou bem
como as profissões de fé e os cânones foram substituídos por um “gênero
literário” que ele chama de “epidíctico”1 ou discursivo. Mas essa
escolha de exprimir-se em termos diferentes dos do passado significa fazer uma
transformação cultural mais profunda de quanto possa parecer. O estilo escolhido
por alguém ao se expressar revela de fato seu modo profundo de ser e de pensar:
“a boca fala da abundância o coração” (Mt 12, 34), o estilo é a
expressão máxima do significado.
Catolicismo — A
abstenção por parte do Vaticano II em condenar o comunismo insere-se nessa
transformação da linguagem?
Prof. de
Mattei — Até o Concílio Vaticano II, o ensino da Igreja
Católica havia se pronunciado diversas vezes contra o comunismo com palavras
claras de condenação. Por ocasião da chegada dos Padres Conciliares a Roma,
antes da celebração da assembleia, o comunismo parecia ser o erro mais grave a
ser condenado. No entanto, estava-se nos anos sessenta, quando um novo espírito
de otimismo pairava no mundo. É neste período que se delineou um novo clima de
“degelo” em relação a realidades já definidas pelo Magistério como
antitéticas.
A influência da primeira encíclica do Papa João XXIII, Pacem
in Terris, revelou-se determinante. Ela deu a impressão de querer eliminar
a posição da Igreja em seu confronto com o comunismo, removendo, de fato, cada
condenação, ainda que de modo apenas verbal. Foi durante esse período que nasceu
a Ostpolitik — a política de abertura do Vaticano em relação aos países
comunistas do Leste — que teve seu homem-símbolo no então Mons. Agostino
Casaroli.
No concílio ocorreu um choque entre duas minorias: uma que pedia
a condenação do comunismo, e outra que exigia uma atitude “dialogante” e aberta
quanto ao mundo moderno, da qual o comunismo era a expressão. Uma petição de
condenação do comunismo, apresentada em 9 de outubro de 1965 por 454 Padres
conciliares, de 86 países, não foi sequer enviada para a comissão que estava
elaborando o respectivo esquema, causando enorme escândalo.
A Constituição Gaudium et Spes, que foi o décimo sexto e
último documento promulgado pelo Concílio Vaticano II, pretendia ser uma
definição inteiramente nova da relação entre a Igreja e o mundo. Nela não
figurava qualquer forma de condenação do comunismo. O silêncio do concílio sobre
o comunismo era de fato uma omissão impressionante por parte daquela histórica
assembleia. Hoje, devemos perguntar quem foram profetas: aqueles que no concílio
denunciaram a brutal opressão exercida pelo comunismo, pedindo a sua solene
condenação, ou aqueles que acreditavam, como os arquitetos da
Ostpolitik, que em relação ao comunismo dever-se-ia obter um acordo, um
compromisso, porque o comunismo interpretava a ânsia de justiça da humanidade e
sobreviveria um ou dois séculos, melhorando o mundo?
A assembleia conciliar era o lugar por excelência para se iniciar
um julgamento do comunismo, análogo ao que Nuremberg foi para o
nacional-socialismo: não um julgamento de caráter penal, e nem de ex
post vencedores contra vencidos, como ocorreu em Nuremberg, mas um
julgamento moral e cultural, ex ante, das vítimas em confronto com os
seus perseguidores, como haviam começado a realizar os chamados dissidentes.
“Todas as vezes que se reuniu um Concílio Ecumênico — afirmou em uma
aula conciliar o cardeal Antonio Bacci — ele sempre resolveu os grandes
problemas que se agitavam naquele tempo e condenou os erros de então. Creio que
o silêncio sobre este ponto seria uma lacuna imperdoável, até mesmo um pecado
coletivo. [...] Esta é a grande heresia teórica e prática dos nossos tempos; e
se o concílio não se ocupar dela, poderá parecer um concílio
fracassado!”.
Catolicismo — Quais
são as contribuições da historiografia contemporânea para deslindar este
problema?
Prof. de
Mattei — Hoje sabemos que em agosto de 1962, na cidade
francesa de Metz, foi celebrado um acordo secreto entre o cardeal Tisserant,
representante do Vaticano, e o novo arcebispo ortodoxo de Yaroslav, Mons.
Nicodemo, o qual, como ficou documentado após a abertura dos arquivos de Moscou,
era um agente da KGB. Com base nesse acordo, as autoridades eclesiásticas se
comprometeram em não falar do comunismo no concílio. Esta foi a condição imposta
pelo Kremlin para permitir a participação dos observadores do Patriarcado de
Moscou no Concílio Vaticano II. No Arquivo Secreto do Vaticano encontrei uma
nota, do punho de Paulo VI, confirmando a existência desse acordo. Outros
documentos de particular interesse foram publicados por George Weigel no segundo
volume, que acaba de vir a lume, de sua imponente biografia de João Paulo II.
Com efeito, Weigel consultou fontes como os arquivos da KGB, do Sluzba
Bezpieczenstewa (SB) polonês e da Stasi da Alemanha Oriental, as quais
proporcionaram documentos que confirmam como os governos comunistas e os
serviços secretos dos países orientais penetraram no Vaticano para favorecer os
seus interesses e se infiltrarem nos mais altos escalões da hierarquia católica.
Em Roma, nos anos do concílio e do pós-concílio, o Colégio Húngaro tornou-se uma
filial dos serviços secretos de Budapeste. Segundo Weigel, entre 1965 e 1987,
todos os reitores do Colégio deviam ser agentes adestrados e capazes, com
competência tanto em operações de desinformação quanto na instalação de
bugs. Por sua vez, o SB polonês possuía um colaborador eclesiástico bem
colocado, cujo nome de código era JANKOWSKI, ou seja, Michele Czajkowski, um
estudioso bíblico empenhado no diálogo entre hebreus e católicos. O SB, de
acordo com Weigel, procurou até distorcer as discussões do concílio sobre pontos
específicos da teologia católica, como o papel de Maria na história da salvação.
O diretor de seu IV Departamento, coronel Stanislaw Morawski, trabalhou com uma
dúzia de colaboradores, todos especialistas em Mariologia, a fim de preparar um
lembrete para os padres conciliares, no qual se criticava o conceito
“maximalista” do Cardeal Wyzynski, arcebispo de Varsóvia, e de outros altos
prelados.
Catolicismo — O Sr.
descreveu a existência de uma luta no concílio entre duas minorias, uma
progressista e outra conservadora. Qual foi a razão da derrota dos
conservadores?
Prof. de
Mattei — A meu ver, a causa principal da derrota dos
conservadores, e a raiz da fraqueza da Igreja contemporânea, reside na perda
daquela visão teológica característica do pensamento cristão, que interpreta a
História como uma luta incessante até o fim dos tempos, entre as duas cidades
agostinianas: a de Deus e a de Satanás. Quando, em 12 de outubro de 1963, Mons.
Franiæ, bispo croata de Spalato, propôs que no esquema De Ecclesia, ao
novo título de Igreja “peregrina” fosse acrescentada a denominação tradicional
de “militante”, sua proposta foi rejeitada. A imagem que a Igreja ofereceu de si
ao mundo não foi a da luta, da condenação ou da controvérsia, mas do diálogo, da
paz, da colaboração ecumênica e fraterna com todos os homens. A minoria
progressista obteve não tanto uma mudança da doutrina da Igreja quanto uma
substituição da imagem hierárquica e militante da Esposa de Cristo, através da
imagem de uma assembleia democrática, dialogante e inserida na História. Na
realidade, a Igreja que sofre no Purgatório e triunfa no Paraíso, aqui na Terra
combate em nome de Cristo e, por isso, é chamada “militante”. A redescoberta
desse espírito parece-me ser uma das urgências da Igreja em nosso tempo.
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Catolicismo — Em que
situação se encontra o debate na Itália sobre a “hermenêutica da continuidade”
versus “hermenêutica da ruptura”? Quem são atualmente os maiores defensores de
cada uma dessas posições?
Prof. de
Mattei — A “hermenêutica da descontinuidade” apresenta sua
máxima expressão na chamada “Escola de Bolonha”, que sob a direção dos
professores Giuseppe Alberigo e Alberto Melloni produziu cinco volumes da
história do Concílio Vaticano II. Contra esta história tendenciosa não basta
afirmar — como as autoridades eclesiásticas se têm limitado a fazer até agora —
que os documentos do concílio devem ser lidos em continuidade e não em ruptura
com a Tradição. Quando Paulo Sarpi escreveu em 1619 uma história heterodoxa do
Concílio de Trento, as fórmulas dogmáticas de Trento não lhe foram contrapostas,
mas foi-lhe oposta uma história diferente, a célebre “História do Concílio de
Trento”, escrita pelo Cardeal Pietro Sforza Pallavicino (1656-1657) por ordem do
Papa Inocêncio X: a história, de fato, se combate com a história, não com a
teologia.
Quanto às novidades doutrinárias, alguns estudiosos expressaram
críticas e dúvidas sobre o Concílio Vaticano II e seus documentos a partir de
uma perspectiva conservadora. Entre essas obras, devemos lembrar Iota
Unum, de Romano Amerio (Lindau, Torino 2000); os estudos teológicos de
Mons. Brunero Gherardini (O Concílio Vaticano II, um discurso a ser
feito, Casa Mariana, Frigento 2009; Um Concílio falho, Lindau,
Torino 2011; Vaticano II, à raiz de um equívoco, Lindau, Torino, 2012);
e ainda a conferência organizada em dezembro de 2010 pelos Franciscanos da
Imaculada (Concílio Vaticano II. Um Concílio Pastoral. Análise
histórico-filosófico-teológica) sob a responsabilidade do padre Serafino
Lanzetta, autor de um novo recente volume (Iuxta modum, Ignatius Press,
San 2012). Para não mencionar a “Súplica” ao Santo Padre, promovida em 2011 pelo
Prof. Paulo Pasqualucci e outros estudiosos.
Catolicismo — Qual é
a sua posição?
Prof. de
Mattei — Associando-me a pedidos de esclarecimento desses
estudiosos, ofereço de minha parte uma contribuição que não é a do teólogo, mas
do historiador. Não entro, portanto, na discussão sobre a hermenêutica da
continuidade/descontinuidade dos documentos. O que descrevo em meu estudo são os
fatos, o que reconstruo é o contexto histórico no qual os documentos do concílio
viram a luz. Para o historiador da Igreja, a dimensão histórica não pode,
todavia, ser separada da teológica. Trata-se de dois planos distintos, mas
conexos e interdependentes, como o são a alma e o corpo no organismo humano. E
se os fatos históricos colocam problemas teológicos, o historiador não pode
ignorá-los, mas deve trazê-los à luz, movido pelo amor à Igreja e não pelo
desejo de denegri-la. Da mesma forma, no plano teológico, todos os batizados têm
o direito de levantar questões e fazer perguntas à legítima autoridade
eclesiástica, embora ninguém tenha o direito de substituir-se ao Magistério
supremo da Igreja para resolver definitivamente os pontos controversos.
O problema da relação entre a crise da fé e o Concílio Vaticano
II exige uma resposta não somente no plano hermenêutico, mas também, se não
sobretudo, no plano histórico. Qualquer que seja o juízo sobre os documentos do
concílio, o problema de fundo não é o de interpretá-lo, mas de compreender a
natureza de um evento histórico que marcou o século XX e o nosso. Para desatar o
nó das relações entre o Vaticano II e a crise do nosso tempo, antes de fazer o
trabalho de hermenêutica dos textos, devemos fazer o trabalho de avaliação
histórica dos fatos. Só depois da reconstrução histórica, não antes, é que
intervém o teólogo ou o Pastor, para formular seu juízo... A missão do
historiador é compreender a essência de um evento, procurando rastrear suas
causas e consequências nas ideias e nas tendências profundas de uma época: neste
caso, o período do Concílio Vaticano II.
Catolicismo — Muitos
sustentam que a crise contemporânea da fé não reside no Concílio Vaticano II,
mas numa interpretação abusiva de seus documentos...
Prof. de
Mattei — Diz-se que os documentos do concílio foram
mitificados e postos “fora de seu contexto”. Mas se isso aconteceu, a
responsabilidade recai apenas sobre os arquitetos do mito e descontextualização,
ou também sobre as autoridades que poderiam ter impedido este trabalho e não o
fizeram? Por que a hermenêutica má não foi suprimida? De quais dioceses,
paróquias, seminários, cátedras pontifícias, a má hermenêutica ela foi removida?
Paulo VI chamou de “falsa e abusiva” uma certa interpretação do concílio, mas se
alguém foi removido, discriminado, perseguido, foram os que se mantiveram fiéis
à Tradição. E não refiro nem a Mons. Lefèbvre nem a Mons. Castro Mayer. Penso,
por exemplo, em Mons. Antonio Piolanti, talvez o maior teólogo italiano do
século XX, que foi removido de seu cargo de Reitor da Pontifícia Universidade
Lateranense. A púrpura que lhe negaram foi concedida ao padre Yves Congar, OP,
que atacava violentamente a eclesiologia ultramontana de Latrão.
O Novo Catecismo vem sendo apresentado como uma
ferramenta para a correção da hermenêutica má. Mas a 20 anos de sua promulgação,
a má interpretação continua a crescer sem cessar. Não se percebe que, se a
preocupação é a de salvar as autoridades eclesiásticas supremas de qualquer
responsabilidade quanto aos males do pós-concílio, esta abordagem do problema
agrava o mal que se quer evitar. Se de fato fosse verdade que o concílio foi
traído por maus intérpretes de seus documentos, como negar a responsabilidade
daquelas autoridades eclesiásticas que viram explodir o mal da má hermenêutica e
não o reprimiram? Se má era a hermenêutica, e ainda o é, se indevidamente se
atribuíram aos documentos do concílio coisas diferentes de quanto estava nele
estabelecido, de quem é a responsabilidade? É apenas dos progressistas, ou
também daqueles que deixaram esse progressismo desenvolver-se na Igreja, sem
intervir para condená-lo e suprimi-lo?
Se nas raízes da crise da fé não está o evento conciliar, mas
apenas uma má interpretação dos seus documentos, qual é o juízo que se deverá
fazer do evento, considerado no seu desenvolvimento concreto, nas ideias e na
psicologia de seus protagonistas, no contexto histórico que o cercou, na
mitologia desenvolvida em torno dele? O Concílio Vaticano II não foi apenas
interpretado, mas vivido pela teologia progressista como uma virada na História
da Igreja. Podem-se negar a existência dessa virada e as mudanças radicais
ocorridas dentro da Igreja na época pós-conciliar? O fato objetivo é que, apesar
de abusiva, a hermenêutica da descontinuidade prevaleceu sobre a hermenêutica da
continuidade já durante o concílio, caracterizando-o na sua essência.
Catolicismo — Qual é
então a justa regra hermenêutica?
Prof. de
Mattei — A primeira regra hermenêutica é aquela que dá o
próprio Nosso Senhor no Evangelho, quando diz que a árvore será reconhecida
pelos seus frutos (Mt 7, 17-20). Hoje, os mosteiros estão abandonados, as
vocações religiosas entraram em colapso, a frequência à missa e aos sacramentos
despencou; bibliotecas, editoras, jornais e universidades católicas difundem
erros a mancheias; o catecismo ortodoxo não é mais ensinado; párocos e até
bispos se rebelam contra o Santo Padre; os fiéis católicos de todo o mundo estão
mergulhados na confusão religiosa e moral e o próprio Bento XVI, durante a
homilia de Pentecostes, falou da “Babel” na qual vivemos. Se tudo isto não tem
sua causa em um certo “espírito do Concílio” que permeou a Igreja Católica nos
últimos 50 anos, de onde vem a sua origem? E se estes são os maus frutos, não do
concílio, mas de sua má interpretação, quais são os bons frutos da justa
interpretação do concílio? Não quero negar a existência de muitas coisas boas na
Igreja contemporânea. Estou convencido de que, com a ajuda da graça, já vemos as
sementes de um renascimento. Mas é preciso demonstrar que esses bons e santos
frutos têm suas raízes no espírito do concílio, e não antes na seiva da
Tradição, que já existia antes do concílio e que ainda hoje continua a fluir nas
fibras do Corpo Místico de Cristo, alimentando-o e santificando-o.
Catolicismo — Por
fim, que apreciação se pode fazer como historiador deste concílio?
Prof. de
Mattei — Independentemente de uma avaliação teológica de
seus documentos, o Concílio Vaticano II constituiu, a meu ver, um evento
catastrófico para a Igreja. A questão da falta de condenação do comunismo, que
mencionei, é suficiente para demonstrar isso. Concordo com o julgamento feito
por Plinio Corrêa de Oliveira no apêndice italiano de sua obra-prima
Revolução e Contra-Revolução, denunciando “o silêncio enigmático,
desconcertante e espantoso, apocalipticamente trágico, observado pelo Concílio
Vaticano II a respeito do comunismo”.
Movido somente pelo amor à Igreja, e não pelo desejo de
denegri-la, faço minhas as palavras do grande pensador católico brasileiro:
“É penoso dizê-lo. Mas a evidência dos fatos aponta, neste sentido, o
Concílio Vaticano II como uma das maiores calamidades, se não a maior, da
História da Igreja. A partir dele penetrou na Igreja, em proporções impensáveis,
a ‘fumaça de Satanás’, que se vai dilatando dia a dia mais, com a terrível força
de expansão dos gases. Para escândalo de incontáveis almas, o Corpo Místico de
Cristo entrou no sinistro processo da como que
autodemolição”.2
_____________
Notas : 1. Em literatura, diz-se de um gênero de discurso (oratória, poesia, etc.) em louvor ou em detrimento de alguém ou de alguma coisa (Dicionário da Língua Portuguesa — www.infopedia.pt 2. Plinio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução, São Paulo, Artpress, 2009, p. 135. |
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