quarta-feira, 14 de julho de 2010

CARD.Joseph Ratzinger: O desenvolvimento orgânico da liturgia . Há quem defenda tenazmente a reforma e considere uma culpa intolerável que, em certas condições, tenha sido readmitida a celebração da santa Eucaristia segundo a última edição do Missal feita antes do Concílio, a de 1962. Por outro lado, há também os críticos ferozes da reforma litúrgica, os quais não apenas criticam sua aplicação prática, mas também suas bases conciliares. Eles só vêem salvação na total recusa da reforma. Entre esses dois grupos, os reformistas radicais e seus adversários intransigentes, freqüentemente se perde a voz daqueles que consideram a liturgia algo vivo, algo que cresce e se renova ao ser recebida e ao concretizar-se.

LITURGIA



Ao contrário do que pensam os reformistas radicais e seus adversários intransigentes, um desenvolvimento adequado da liturgia só é possível quando se dá atenção às leis internas que sustentam esse “organismo”
de Joseph Ratzinger

Missal ambrosiano (final do século XI, início do século XII), Milão, Biblioteca Ambrosiana
     Nas últimas décadas, a questão da correta celebração da liturgia tornou-se cada vez mais um dos pontos centrais da controvérsia em torno do Concílio Vaticano II, ou seja, de como o Concílio deveria ser avaliado e acolhido na vida da Igreja.
     Há quem defenda tenazmente a reforma e considere uma culpa intolerável que, em certas condições, tenha sido readmitida a celebração da santa Eucaristia segundo a última edição do Missal feita antes do Concílio, a de 1962. Ao mesmo tempo, porém, a liturgia é considerada como “semper reformanda”, de forma tal que, no fim das contas, cada “comunidade” faz sua liturgia “própria”, na qual exprime a si mesma. Um Liturgisches Kompendium (Compêndio litúrgico, ndr.) protestante (organizado por Christian Grethlein e Günter Ruddat, Göttingen, 2003) apresentou recentemente o culto como “projeto de reforma” (pp. 13-41), refletindo a maneira de pensar também de muitos liturgistas católicos.
     Por outro lado, há também os críticos ferozes da reforma litúrgica, os quais não apenas criticam sua aplicação prática, mas também suas bases conciliares. Eles só vêem salvação na total recusa da reforma.
     Entre esses dois grupos, os reformistas radicais e seus adversários intransigentes, freqüentemente se perde a voz daqueles que consideram a liturgia algo vivo, algo que cresce e se renova ao ser recebida e ao concretizar-se. Estes, além de tudo, com base na mesma lógica, insistem em que só se dá crescimento quando se preserva a identidade da liturgia, e sublinham que um desenvolvimento adequado só é possível quando se dá atenção às leis internas que sustentam esse “organismo”. Tal como um jardineiro acompanha uma planta durante seu crescimento, dando a devida atenção à suas energias vitais e à suas leis, da mesma forma a Igreja deveria acompanhar respeitosamente o caminho da liturgia através dos tempos, distinguindo o que ajuda e cura daquilo que violenta e destrói.
     Se as coisas caminham dessa forma, devemos tentar definir qual é a estrutura interna de um rito, e também quais são suas leis vitais, de forma a encontrar os caminhos adequados para preservar sua energia vital nas mudanças que ocorrem ao longo do tempo, para incrementá-la e renová-la.
     O livro de dom Alcuin Reid se insere nessa linha. Percorrendo a história do Rito Romano (missa e breviário) desde suas origens até a vigília do Concílio Vaticano II, ele busca estabelecer quais são os princípios de seu desenvolvimento litúrgico, haurindo, assim, da história, com seus altos e baixos, os critérios nos quais qualquer reforma deve se basear.
     O livro se divide em três partes. A primeira, muito breve, analisa a história da reforma do Rito Romano desde suas origens até o fim do século XIX. A segunda é dedicada ao movimento litúrgico até 1948. A terceira - de longe a mais extensa - trata da reforma litúrgica sob Pio XII, até a vigília do Concílio Vaticano II. Essa parte se revela muito útil, justamente porque essa fase da reforma litúrgica já não é muito lembrada, apesar de se encontrarem justamente nela - como também na história do movimento litúrgico, evidentemente - todas as questões acerca das formas corretas de realizar uma reforma, permitindo também adquirir critérios de juízo. A decisão do autor de deter-se no limiar do Concílio Vaticano II é muito sábia. Ele evita, assim, entrar na controvérsia ligada à interpretação e à recepção do Concílio, ilustrando o momento histórico e a estrutura das várias tendências, o que resulta determinante para a questão dos critérios da reforma.
     No final de seu livro, o autor relaciona os princípios de uma correta reforma: ela deveria ser em igual medida aberta ao desenvolvimento e à continuidade da Tradição; deveria saber-se ligada a uma tradição litúrgica objetiva e fazer com que a continuidade subs­tancial seja salvaguardada.
     O autor, depois, concordando com o Catecismo da Igreja Católica, sublinha que “mesmo a suprema autoridade da Igreja não deve modificar a liturgia arbitrariamente, mas tão-somente em obediência à fé e com respeito religioso pelo mistério da liturgia” (nº 1125; no livro, na p. 258). Por fim, encontramos ainda, como outros critérios, a legitimidade das tradições litúrgicas locais e o interesse pela eficácia pastoral.
     Eu gostaria de sublinhar ainda mais, do meu ponto de vista pessoal, alguns dos critérios da renovação litúrgica já brevemente indicados. Começarei com os últimos critérios fundamentais. Parece-me muito importante que o Catecismo, ao mencionar os limites do poder da suprema autoridade da Igreja com relação à reforma, chame a atenção para aquela que é a essência do primado, tal como é sublinhado pelos Concílios Vaticanos I e II: o papa não é um monarca absoluto cuja vontade é lei, mas  o guardião da autêntica Tradição e, por isso, o primeiro a garantir a obediência. Ele não pode fazer o que quiser, e justamente por isso pode se opor àqueles que pretendem fazer tudo o que querem. A lei a que deve se ater não é a ação ad libitum, mas a obediência à fé. Por isso, diante da liturgia, tem a função de um jardineiro e não a de um técnico que constrói máquinas novas e joga as velhas fora. O “rito”, ou seja, a forma de celebração e de oração que amadurece na fé e na vida da Igreja, é forma condensada da Tradição viva, na qual a esfera do rito expressa o conjunto de sua fé e de sua oração, tornando assim experimentáveis, ao mesmo tempo, a comunhão entre as gerações e a comunhão com aqueles que rezam antes de nós e depois de nós. Assim, o rito é como um dom concedido à Igreja, uma forma viva de parádosis.
     É importante, nesse sentido, interpretar corretamente a “continuidade substancial”. O autor nos alerta expressamente contra o caminho errado ao qual poderíamos ser conduzidos por uma teologia sacramental neo-escolástica desligada da forma viva da liturgia. Partindo dessa teologia, poderíamos reduzir a “substância” à matéria e à forma do sacramento, e dizer: o pão e o vinho são a matéria do sacramento, as palavras da instituição são sua forma; só essas duas coisas são necessárias, todo o resto pode mudar. Nesse ponto, modernistas e tradicionalistas estão de acordo. Basta que haja a matéria e que sejam pronunciadas as palavras da instituição: todo o resto é “a gosto”. Infelizmente, muitos sacerdotes agem hoje com base nesse esquema; e até mesmo as teorias de muitos liturgistas, desafortunadamente, movem-se nessa direção. Eles querem superar o rito como algo rígido e constróem produtos de sua fantasia, considerada pastoral, em torno desse núcleo residual, que, assim, é relegado ao reino da magia ou completamente privado de seu significado.
O autor, concordando com o Catecismo da Igreja Católica, sublinha que “mesmo a suprema autoridade da Igreja não deve modificar a liturgia arbitrariamente, mas tão-somente em obediência à fé e com respeito religioso pelo mistério da liturgia”
     O movimento litúrgico buscou superar esse reducionismo, produto de uma teologia sacramental abstrata, e ensinar-nos a considerar a liturgia como o conjunto vivo da Tradição transformada em forma, que não pode ser rasgado em pequenos pedaços, mas deve ser visto e vivido em sua totalidade viva. Quem, como eu, na fase do movimento litúrgico que precedeu o Concílio Vaticano II, foi tocado por essa concepção só pode constatar com profunda dor a destruição daquilo que era caro a este movimento.
     Gostaria de comentar brevemente outras duas intuições que aparecem no livro de dom Alcuin Reid. O arqueologismo e o pragmatismo pastoral - este último, aliás, é muitas vezes um racionalismo pastoral - são ambos errados. Poderiam ser descritos como um par de gêmeos profanos. Os liturgistas da primeira geração eram, em sua maioria, historiadores, inclinados, conseqüentemente, ao arqueologismo. Queriam desenterrar as formas mais antigas, em sua pureza original; viam os livros litúrgicos em uso, com seus ritos, como expressão de proliferações históricas, fruto de mal-entendidos e ignorância do passado. Buscavam reconstruir a Liturgia Romana mais antiga e limpá-la de todos os acréscimos posteriores. Não era uma coisa totalmente errada; mas a reforma litúrgica é de certa forma algo diferente de uma escavação arqueológica, e nem todos os desdobramentos de algo vivo devem ter a lógica de um critério racionalista/historicista. Essa é também a razão pela qual - como o autor justamente observa -, não deve caber aos especialistas a última palavra na reforma litúrgica. Especialistas e pastores têm cada um o seu papel (tal como, na política, os técnicos e aqueles que são chamados a decidir representam dois níveis diferentes). Os conhecimentos dos estudiosos são importantes, mas não podem ser transformados imediatamente em decisões dos pastores, os quais têm a responsabilidade de ouvir os fiéis para identificar com inteligência, ao lado deles, aquilo que ajuda ou não a celebrar os sacramentos com fé hoje. Uma das fraquezas da primeira fase da reforma depois do Concílio foi que quase apenas os especialistas ti­nham voz no capítulo. Teria sido importante uma maior autonomia por parte dos pastores.
     Sendo que muitas vezes, obviamente, fica impossível elevar o conhecimento histórico à condição de nova norma litúrgica, foi muito fácil que esse “arqueologismo” se ligasse ao pragmatismo pastoral. Decidiu-se, em primeiro lugar, eliminar tudo o que não era reconhecido como original, e conseqüentemente como “subs­tancial”, para depois integrar à “escavação arqueológica” - quando ainda parecesse insuficiente - e “o ponto de vista pastoral”. Mas o que é “pastoral”? Os juízos intelectualistas dos professores sobre essas questões eram muitas vezes determinados por suas considerações racionais e não levavam em conta o que realmente sustenta a vida dos fiéis. De tal forma que hoje, depois da vasta racionalização da liturgia na primeira fase da reforma, está-se de novo em busca de formas de solenidade, de atmosferas “místicas” e de uma certa sacralidade. Mas, sendo que existem - necessariamente e de maneira cada vez mais evidente - juízos largamente divergentes sobre o que é pastoralmente eficaz, o aspecto “pastoral” tornou-se a passagem para a irrupção da “criatividade”, a qual dissolve a unidade da liturgia e nos põe com freqüência diante de uma banalidade deplorável. Não se quer dizer com isso que a liturgia eucarística, como também a liturgia da Palavra, não sejam muitas vezes celebradas, a partir da fé, de modo respeitoso e “belo”, no melhor sentido da palavra. Mas, dado que estamos buscando os critérios da reforma, devemos também mencionar os perigos que, infelizmente, nas últimas décadas, não se limitaram a ser apenas fantasias de tradicionalistas inimigos da reforma.
     Eu gostaria de me deter ainda no fato de que, no compêndio litúrgico citado acima, o culto foi apresentado como “projeto de reforma”, ou seja, como um canteiro de obras no qual a atividade é incessante. Semelhante, ainda que diferente em alguns pontos, é a sugestão dada por alguns liturgistas católicos de adaptar a reforma litúrgica à mutação antropológica da modernidade e construí-la de maneira antropocêntrica. Se a liturgia aparece antes de mais nada como o canteiro de obras da nossa atividade, isso significa que se esquece a coisa essencial: Deus, uma vez que na liturgia a questão não somos nós, mas Deus. O esquecimento de Deus é o perigo mais iminente do nosso tempo. A essa tendência, a liturgia deveria opor a presença de Deus. Mas o que acontece se o esquecimento de Deus entra até mesmo na liturgia, se, na liturgia, pensamos apenas em nós mesmos? Em qualquer reforma litúrgica e em qualquer celebração litúrgica, o primado de Deus deveria ocupar sempre o primeiríssimo lugar.
     Com isso, fui muito além do livro de dom Alcuin. Mas acredito que, de alguma forma, tenha ficado claro que esse livro, com a riqueza de suas observações, nos ensina critérios e nos convida a outras reflexões. Por isso, recomendo sua leitura.
fonte:30 DIAS