Quando tinha meus 20 anos de idade li pela primeira versão original italiana de “Iota Unum” do Prof. Romano Amerio. Naquela época o autor ainda estava com o nome lançado nas instâncias do esquecimento ou diríamos, num estado intermediário entre o respeito e o repúdio, entre o céu e o inferno. Uma vez que o L’osservatore Romano em 2010 colocou a obra no lugar merecido ou até mesmo “reabilitou” moralmente o autor, optamos por trazer trechos de sua obra onde ele analisa as mudanças da Igreja após o Concílio Vaticano II.
A versão que adotamos por traduzir não é mais a original em italiano, mas a espanhola. Romano Amerio foi perito no Vaticano II, teólogo e filósofo, e por compor a ala tradicionalista recebeu a alcunha espúria de “inimigo”, certamente pela incapacidade dos grandes meios de comunicação de refutarem suas teses quase ou até mesmo tomistas. Jamais nos seria espantoso ou imoral aceitar que suas linhas tivessem sido destruídas pelo uso da razão e da boa argumentação, mas uma vez que não foram, pelo contrário, quiseram aniquilar o homem para assim aniquilarem suas teses, o retorno de Amerio é mais do que bem-vindo, assim depois de morto talvez consigam ao menos refutá-lo com dignidade, deferindo ao morto o que não foi dado ao vivo: respeito.
Após a Imprensa Oficial da Santa Sé publicar matéria sobre o autor e promover um Congresso para expor sua obra, o livro que não era mais editado, voltou a compor o rol de leitura de muitos católicos europeus, e pela ainda inexistente versão portuguesa, queremos trazer suas linhas na tentativa de elevar o nível dos debates – muitos deles escandalosos pela inexatidão e até mesmo pela vangloria – de forma que seja conhecida a história do Concílio, que sem dúvida, foi marcante para o século XX e para a história do catolicismo. Este livro é uma testemunha ocular e não mera opinião.
O título “Iota Unum” é uma referência a São Mateus 5, 18. Desta forma o autor deixa entrever que as tentações, ou para usar um termo mais abalizado que o meu, a auto-demolição, pela qual passa a Igreja, está prenunciada na Revelação Divina, ou seja, “Em verdade vos digo: até que passem os Céus e a Terra, nem um só jota (iota unum) ou um só til da Lei passará sem que tudo se cumpra”. Para o professor Romano, tudo que ocorre hoje com a Igreja é cumprimento exato das profecias do Novo Testamento.
Inseri alguns comentários do corpo da tradução, para que o leitor ainda pouco acostumado com o tema possa entender a quem e a que se refere a passagem, e nenhuma intenção passa disso, senão meramente auxiliar a leitura. Inseri também subtítulos e reafirmamos: - o leitor que tiver acesso à obra completa ou dela puder tomar apontamentos, tem obrigação por dever de justiça, de formar sua opinião a partir da obra integral e não de minha tradução dos trechos, isso porque recuso usar da artimanha de pinçar trechos de obras e textos para legitimar idéias, como se o autor concordasse com os sofismas de quem usa seus escritos como meio de manipulação de opinião. Infelizmente este mal é uma desonestidade intelectual muito comum e difícil de ser aniquilada. A apresentação da obra de Romano feita pelo Bispo de Imperia, Dom Mario Oliveri, pode ser lida aqui.
O Resultado Paradoxal do Concílio e o Sínodo Romano – Capítulo III do Tomo I da Obra Iota Unum. Estudos Sobre as Transformações da Igreja no Século XX.
Por Romano Amerio
Tradução: Carlos Eduardo Maculan
O resultado paradoxal do Concílio Vaticano II a respeito de sua preparação se manifesta na comparação entre os documentos finais e os documentos iniciais (propedêuticos), e também nos três eixos principais: I – o fracasso das previsões feitas pelo Papa (João XXIII) e por quem preparou o Concílio; II – a inutilidade efetiva do Sínodo Romano sugerido por João XXIII como antecipação do Concílio e; III – a anulação, quase imediata, da Encíclica Veterum Sapientiae, que prefigurava a fisionomia cultural da Igreja Conciliar.
O Papa João, que havia idealizado o Concílio como um grande ato de renovação e de adequação funcional da Igreja, acreditava que também o havia preparado como tal, e aspirava poder concluí-lo em poucos meses, quiçá como o I Concílio de Latrão com o Papa Calixto II em 1123, quando trezentos bispos o concluíram em dezenove dias, ou como o II Concílio de Latrão com o Papa Inocêncio II em 1139, com mil bispos que o concluíram em dezessete dias.
No entanto, o Vaticano II se abriu em 11 de outubro de 1962 e se encerrou em 8 de dezembro de 1965, durando três anos de modo descontínuo. O fracasso das previsões tiveram origem em haver-se abortado um Concílio que havia sido preparado e na elaboração posterior de um Concílio distinto do primeiro, que gerou a si mesmo. (Nota do tradutor: o autor faz referência aos rumos que tomou o Vaticano II. Um é o Concílio que se idealizou pelo Sínodo Romano, outro é o Concílio que “gerou a si próprio”).
O Sínodo Romano convocado por João XXIII
O Sínodo Romano foi concebido e convocado por João XXIII como um ato solene e prévio à grande Assembléia Conciliar, o qual deveria ser a prefiguração e a realização antecipada do Concílio.
Assim declarou textualmente o Pontífice na Alocução ao Clero e aos Fiéis de Roma de 29 de junho de 1960. A todos o Papa revelou a importância do Sínodo e ainda mais anunciou que além da Diocese de Roma, o Sínodo se estendia a toda Igreja no Mundo. A importância do Sínodo foi comparável aos Sínodos Provinciais celebrados por São Carlos Borromeo antes do Concílio de Trento.
Renovava-se o antigo princípio que quer modelar toda a orbe católica sob o patronato da Igreja Romana. Na mente do Papa o Sínodo Romano estava destinado a ter um grandioso efeito exemplar que se depreendia do feito de que o Papa ordenou a tradução de todos os seus textos para todas as línguas principais do mundo. Os textos do Sínodo promulgados em 25, 26 e 27 de janeiro de 1960 manifestam um completo retorno às essências da Igreja.
O Sínodo decretava: I – restauração da vida religiosa; II – a disciplina do clero se estabelece no modelo tradicional, amadurecido no Concílio de Trento e fundado em princípios sempre professados e sempre praticados. O primeiro princípio é da peculiaridade da pessoa consagrada e habilitada sobrenaturalmente para exercer as operações de Cristo e, por conseguinte, separada dos leigos sem confusão alguma. O segundo princípio era a educação ascética e a vida sacrificada, que caracteriza o clero, embora os leigos possam levar uma vida ascese.
Deste modo o Sínodo prescrevia aos clérigos todo um estilo de conduta retamente diferenciado das maneiras seculares. Tal estilo exige I - o hábito eclesiástico (batina e hábitos regulares), II - a sobriedade nos alimentos, a abstinência de espetáculos públicos e a negação das coisas profanas. Reafirmava-se, igualmente, a originalidade da formação cultural do clero e se desenhava o sistema sancionado de forma soleníssima pelo Papa João XXIII no ano seguinte ao Sínodo através da Encíclica Veterum Sapentiae. O Papa ordenou, inclusive, que se reeditasse o Catecismo do Concílio de Trento, porém a ordem foi desobedecida. Somente em 1981, e por iniciativa totalmente privada, se publicou na Itália sua tradução, conforme consta do L’Osservatore Romano de 5 de julho de 1982.
A legislação litúrgica do Sínodo
Não menos significativa é a legislação litúrgica decretada pelo Sínodo: I – O uso solene do Latim; II – condenação formal e material da criatividade litúrgica que rebaixa o ato litúrgico enquanto ato solene da Igreja; III – a necessidade do batismo de crianças “quam primum”; IV – o sacrário deve estar disposto sobre o altar na forma tradicional; V – O uso do gregoriano, proibindo as novas invenções musicais; VI – a proibição geral de que se tenha lugar dentro do edifício santo toda espécie de profanação com espetáculos; VII – A proibição do acesso de mulheres ao presbitério; VIII – a proibição dos altares “de frente para o povo”, salvo nos casos previstos na lei canônica.
(Nota do tradutor: os altares “frente para o povo” nunca existiram na tradição, nos locais onde o altar está supostamente “de frente para o povo” segundo a disciplina tradicional, como na Basílica de São Pedro, na verdade não estão. Em São Pedro do Vaticano o altar está na verdade “Versus Deum”, ou seja, voltado para o Leste, o que gera engano no povo que acredita que na Basílica do Papa se celebra de frente para os fiéis. Nunca existiu na Santa Sé celebração que não fosse “Versus Deum”.)
É impossível não ver que tão firme reintegração da antiga disciplina desejada pelo Sínodo tenha sido contraditada pelo Concílio praticamente em todos os seus artigos. Deste feito, o Sínodo Romano, que deveria ser a prefiguração e a norma do Concílio – como desejou João XXIII – foi jogado em poucos anos no Érebo. Para se dar uma idéia de tal anulação, assinalo que não encontrei os textos do Sínodo em nenhuma Cúria Diocesana, tendo que consegui-los em bibliotecas civis.
O Paradoxismo do Concílio em relação a Veterum Sapeintiae
O uso da língua latina é conatural à Igreja e está estreitamente ligada às coisas da Igreja, inclusive na mentalidade popular. Constitui, ademais, um meio e um sinal primordial da continuidade histórica da Igreja. E posto que não há nada interno sem o externo, e o interno, surge, flutua, se eleva e se rebaixa conjuntamente com o externo, sempre esteve persuadida a Igreja de que a forma externa do latim deve conservar-se perpetuamente para conservar as características internas da Igreja. E tanto mais quando se trata de um fenômeno de linguagem, no qual a conjunção de forma e substância (ou seja, o interno e do externo) é de todo indissolúvel. Desta monta, a ruína da latinidade, conseqüente ao Vaticano II, foi acompanhada por muitos sintomas da auto-demolição da Igreja conforme lamentado por Paulo VI.
João XXIII pretendia com a Encíclica Veterum Sapientiae operar um retorno da Igreja sobre seus princípios, sendo que em sua mente este retorno é uma condição para a renovação da Igreja na peculiaridade própria do “articulus temporum”.
O Papa atribuiu ao documento uma importância especialíssima e as solenidades de que quis revestir sua promulgação – na Basílica de São Pedro, na presença do Colégio Cardinalício e de todo o clero romano – não se viu igual na história deste século. A importância da Veterum Sapientiae não se vê negada pelo esquecimento em que a fizeram cair imediatamente e nem por seu fracasso histórico. Sua importância deriva de sua perfeita consonância com a identidade histórica da Igreja.
A encíclica é fundamentalmente uma afirmação da continuidade e a Igreja que procede do mundo helênico e romano é sobre tudo porque as letras cristãs são, desde os primeiros tempos, letras gregas e letras latinas. Os incunábulos das Sagradas Escrituras são gregos, os símbolos da fé mais antigos são gregos e latinos, a Igreja de Roma da metade do século III é toda ela latina, os Concílios dos primeiros séculos não têm outro idioma que o grego.[1]
Se trata de uma continuidade interna da Igreja na qual se concatenam todas suas épocas. Porém, existe ademais, uma continuidade externa que atravessa a inteira cronologia da era cristã e recorre a sabedoria dos gentios. Não vamos falar, naturalmente, de um “São Sócrates” a quem amaldiçoava Erasmo, porém não poderemos preterir a doutrina, exposta pelos Padres Gregos e Latinos e recordada pelo Pontífice (João XXIII) com um texto de Tertuliano, segundo a qual, existe uma continuidade entre o mundo do pensamento no qual viveu a “antiga sabedoria” – precisamente veterum sapientiae – e o mundo de pensamento elaborado depois da Revelação do Verbo Encarnado.
Nota do tradutor: foi por reconhecer a sabedoria grega e latina, a tradição, os símbolos da fé e a forma lingüística da Igreja durante 20 séculos, que o Papa João XXIII quis dar o nome da encíclica mais solene do século XX de “Veterum Sapientiae” ou “Antiga Sabedoria”. Sabe-se que João XXIII reconheceu no texto a continuidade entre a história da Igreja e sua contemporaneidade. Todavia, de forma assustadora, a Veterum Sapientiae foi esquecida e não consta sequer do Enchiridion Symbolorum editado após o Concílio, ou seja, é um capítulo omitido do Denzinger-Hünermann. Para o Papa João, o mundo grego e latino é parte integrante da religião católica, e esta é uma verdade não só professada por ele, mas por todos os Papas que o precederam.
O pensamento cristão desvendou o conteúdo sobrenaturalmente revelado, porém, também aderiu ao conteúdo revelado naturalmente mediante a luz da razão criada.
Deste modo, o mundo clássico não é estranho à religião. Esta o tem como essência e uma esfera de verdade inalcançável mediante as luzes naturais e sobrepostas a elas, porém, inclui também a esfera de toda verdade humanamente alcançável.
A cultura cristã foi, portanto, preparada e esperada obedientemente (como diziam os medievos) pela sabedoria antiga, porque nenhuma verdade, nenhuma justiça, nenhuma beleza é alheia ao cristianismo. E por isso não lhe é oposta, senão, compatível com a sabedoria antiga e se vê apoiada sempre por ela: não somente, como sucede dizer, fazendo-lhe escrava e a utilizando funcionalmente, mas levando no colo a quem já existia, todavia, a santificou e a fez maior do que era.
O documento mais solenizado da história da Igreja
A Veterum Sapientiae prescreve que as ciências fundamentais, como a dogmática e a moral, sejam ensinadas nos seminários em latim e seguindo manuais igualmente em latim; que os professores que pareçam incapazes ou reticentes com a latinidade sejam afastados por tempo conveniente. Como coração dela, que era destinada a procurar uma reintegração geral do latim da Igreja, o Pontífice decretou a ereção de um Instituto Superior de Latinidade, que tinha a função de formar latinistas para toda a Igreja e confeccionarem um livro de léxicos do latim moderno.
A desintegração geral da latinidade posteriormente ao projeto preparatório do Concílio, onde, nesse projeto se pretendeu a geral reintegração, nos mostra um sufrágio adicional à tese do resultado paradoxal do Concílio.
Milhões de professores, que se encontravam na exata condição desejada pela Veterum Sapientiae sobre as disciplinas divinas, foram constrangidos de forma impiedosa e sem misericórdia a se demitirem de seus cargos. A reforma dos estudos eclesiásticos, segundo a mesma encíclica, foi hostilizada por muitos e vários motivos, sendo aniquilada em brevíssimo tempo.
O Papa João, que primeiramente a instava ser cumprida, ordenou que não se exigisse mais sua execução. Aqueles a quem deviam por dever de ofício fazê-la eficaz, cercaram o Papa já debilitado e a Veterum Sapientiae, cuja oportunidade e utilidade tão altamente se havia exaltado, foi de toda ab-rogada e não é citada em nenhum documento conciliar.
Em algumas biografias sobre João XXIII ela é silenciada de todo, como se não existisse ou nunca houvesse existido, enquanto que os mais progressistas a mencionam somente como um tremendo erro. Não há na história da Igreja um documento tão altamente solenizado e que de tão pronto foi lançado nas gemônias[2].
_________________________
Notas do tradutor:
[1] Incunábulos na bibliologia são os primeiros livros traduzidos.
[2] Gemônias são as escadarias das antigas prisões romanas que levavam ao subsolo e nas quais eram expostos os cadáveres dos mortos.
A versão que adotamos por traduzir não é mais a original em italiano, mas a espanhola. Romano Amerio foi perito no Vaticano II, teólogo e filósofo, e por compor a ala tradicionalista recebeu a alcunha espúria de “inimigo”, certamente pela incapacidade dos grandes meios de comunicação de refutarem suas teses quase ou até mesmo tomistas. Jamais nos seria espantoso ou imoral aceitar que suas linhas tivessem sido destruídas pelo uso da razão e da boa argumentação, mas uma vez que não foram, pelo contrário, quiseram aniquilar o homem para assim aniquilarem suas teses, o retorno de Amerio é mais do que bem-vindo, assim depois de morto talvez consigam ao menos refutá-lo com dignidade, deferindo ao morto o que não foi dado ao vivo: respeito.
Após a Imprensa Oficial da Santa Sé publicar matéria sobre o autor e promover um Congresso para expor sua obra, o livro que não era mais editado, voltou a compor o rol de leitura de muitos católicos europeus, e pela ainda inexistente versão portuguesa, queremos trazer suas linhas na tentativa de elevar o nível dos debates – muitos deles escandalosos pela inexatidão e até mesmo pela vangloria – de forma que seja conhecida a história do Concílio, que sem dúvida, foi marcante para o século XX e para a história do catolicismo. Este livro é uma testemunha ocular e não mera opinião.
O título “Iota Unum” é uma referência a São Mateus 5, 18. Desta forma o autor deixa entrever que as tentações, ou para usar um termo mais abalizado que o meu, a auto-demolição, pela qual passa a Igreja, está prenunciada na Revelação Divina, ou seja, “Em verdade vos digo: até que passem os Céus e a Terra, nem um só jota (iota unum) ou um só til da Lei passará sem que tudo se cumpra”. Para o professor Romano, tudo que ocorre hoje com a Igreja é cumprimento exato das profecias do Novo Testamento.
Inseri alguns comentários do corpo da tradução, para que o leitor ainda pouco acostumado com o tema possa entender a quem e a que se refere a passagem, e nenhuma intenção passa disso, senão meramente auxiliar a leitura. Inseri também subtítulos e reafirmamos: - o leitor que tiver acesso à obra completa ou dela puder tomar apontamentos, tem obrigação por dever de justiça, de formar sua opinião a partir da obra integral e não de minha tradução dos trechos, isso porque recuso usar da artimanha de pinçar trechos de obras e textos para legitimar idéias, como se o autor concordasse com os sofismas de quem usa seus escritos como meio de manipulação de opinião. Infelizmente este mal é uma desonestidade intelectual muito comum e difícil de ser aniquilada. A apresentação da obra de Romano feita pelo Bispo de Imperia, Dom Mario Oliveri, pode ser lida aqui.
O Resultado Paradoxal do Concílio e o Sínodo Romano – Capítulo III do Tomo I da Obra Iota Unum. Estudos Sobre as Transformações da Igreja no Século XX.
Por Romano Amerio
Tradução: Carlos Eduardo Maculan
O resultado paradoxal do Concílio Vaticano II a respeito de sua preparação se manifesta na comparação entre os documentos finais e os documentos iniciais (propedêuticos), e também nos três eixos principais: I – o fracasso das previsões feitas pelo Papa (João XXIII) e por quem preparou o Concílio; II – a inutilidade efetiva do Sínodo Romano sugerido por João XXIII como antecipação do Concílio e; III – a anulação, quase imediata, da Encíclica Veterum Sapientiae, que prefigurava a fisionomia cultural da Igreja Conciliar.
O Papa João, que havia idealizado o Concílio como um grande ato de renovação e de adequação funcional da Igreja, acreditava que também o havia preparado como tal, e aspirava poder concluí-lo em poucos meses, quiçá como o I Concílio de Latrão com o Papa Calixto II em 1123, quando trezentos bispos o concluíram em dezenove dias, ou como o II Concílio de Latrão com o Papa Inocêncio II em 1139, com mil bispos que o concluíram em dezessete dias.
No entanto, o Vaticano II se abriu em 11 de outubro de 1962 e se encerrou em 8 de dezembro de 1965, durando três anos de modo descontínuo. O fracasso das previsões tiveram origem em haver-se abortado um Concílio que havia sido preparado e na elaboração posterior de um Concílio distinto do primeiro, que gerou a si mesmo. (Nota do tradutor: o autor faz referência aos rumos que tomou o Vaticano II. Um é o Concílio que se idealizou pelo Sínodo Romano, outro é o Concílio que “gerou a si próprio”).
O Sínodo Romano convocado por João XXIII
O Sínodo Romano foi concebido e convocado por João XXIII como um ato solene e prévio à grande Assembléia Conciliar, o qual deveria ser a prefiguração e a realização antecipada do Concílio.
Assim declarou textualmente o Pontífice na Alocução ao Clero e aos Fiéis de Roma de 29 de junho de 1960. A todos o Papa revelou a importância do Sínodo e ainda mais anunciou que além da Diocese de Roma, o Sínodo se estendia a toda Igreja no Mundo. A importância do Sínodo foi comparável aos Sínodos Provinciais celebrados por São Carlos Borromeo antes do Concílio de Trento.
Renovava-se o antigo princípio que quer modelar toda a orbe católica sob o patronato da Igreja Romana. Na mente do Papa o Sínodo Romano estava destinado a ter um grandioso efeito exemplar que se depreendia do feito de que o Papa ordenou a tradução de todos os seus textos para todas as línguas principais do mundo. Os textos do Sínodo promulgados em 25, 26 e 27 de janeiro de 1960 manifestam um completo retorno às essências da Igreja.
O Sínodo decretava: I – restauração da vida religiosa; II – a disciplina do clero se estabelece no modelo tradicional, amadurecido no Concílio de Trento e fundado em princípios sempre professados e sempre praticados. O primeiro princípio é da peculiaridade da pessoa consagrada e habilitada sobrenaturalmente para exercer as operações de Cristo e, por conseguinte, separada dos leigos sem confusão alguma. O segundo princípio era a educação ascética e a vida sacrificada, que caracteriza o clero, embora os leigos possam levar uma vida ascese.
Deste modo o Sínodo prescrevia aos clérigos todo um estilo de conduta retamente diferenciado das maneiras seculares. Tal estilo exige I - o hábito eclesiástico (batina e hábitos regulares), II - a sobriedade nos alimentos, a abstinência de espetáculos públicos e a negação das coisas profanas. Reafirmava-se, igualmente, a originalidade da formação cultural do clero e se desenhava o sistema sancionado de forma soleníssima pelo Papa João XXIII no ano seguinte ao Sínodo através da Encíclica Veterum Sapentiae. O Papa ordenou, inclusive, que se reeditasse o Catecismo do Concílio de Trento, porém a ordem foi desobedecida. Somente em 1981, e por iniciativa totalmente privada, se publicou na Itália sua tradução, conforme consta do L’Osservatore Romano de 5 de julho de 1982.
A legislação litúrgica do Sínodo
Não menos significativa é a legislação litúrgica decretada pelo Sínodo: I – O uso solene do Latim; II – condenação formal e material da criatividade litúrgica que rebaixa o ato litúrgico enquanto ato solene da Igreja; III – a necessidade do batismo de crianças “quam primum”; IV – o sacrário deve estar disposto sobre o altar na forma tradicional; V – O uso do gregoriano, proibindo as novas invenções musicais; VI – a proibição geral de que se tenha lugar dentro do edifício santo toda espécie de profanação com espetáculos; VII – A proibição do acesso de mulheres ao presbitério; VIII – a proibição dos altares “de frente para o povo”, salvo nos casos previstos na lei canônica.
(Nota do tradutor: os altares “frente para o povo” nunca existiram na tradição, nos locais onde o altar está supostamente “de frente para o povo” segundo a disciplina tradicional, como na Basílica de São Pedro, na verdade não estão. Em São Pedro do Vaticano o altar está na verdade “Versus Deum”, ou seja, voltado para o Leste, o que gera engano no povo que acredita que na Basílica do Papa se celebra de frente para os fiéis. Nunca existiu na Santa Sé celebração que não fosse “Versus Deum”.)
É impossível não ver que tão firme reintegração da antiga disciplina desejada pelo Sínodo tenha sido contraditada pelo Concílio praticamente em todos os seus artigos. Deste feito, o Sínodo Romano, que deveria ser a prefiguração e a norma do Concílio – como desejou João XXIII – foi jogado em poucos anos no Érebo. Para se dar uma idéia de tal anulação, assinalo que não encontrei os textos do Sínodo em nenhuma Cúria Diocesana, tendo que consegui-los em bibliotecas civis.
O Paradoxismo do Concílio em relação a Veterum Sapeintiae
O uso da língua latina é conatural à Igreja e está estreitamente ligada às coisas da Igreja, inclusive na mentalidade popular. Constitui, ademais, um meio e um sinal primordial da continuidade histórica da Igreja. E posto que não há nada interno sem o externo, e o interno, surge, flutua, se eleva e se rebaixa conjuntamente com o externo, sempre esteve persuadida a Igreja de que a forma externa do latim deve conservar-se perpetuamente para conservar as características internas da Igreja. E tanto mais quando se trata de um fenômeno de linguagem, no qual a conjunção de forma e substância (ou seja, o interno e do externo) é de todo indissolúvel. Desta monta, a ruína da latinidade, conseqüente ao Vaticano II, foi acompanhada por muitos sintomas da auto-demolição da Igreja conforme lamentado por Paulo VI.
João XXIII pretendia com a Encíclica Veterum Sapientiae operar um retorno da Igreja sobre seus princípios, sendo que em sua mente este retorno é uma condição para a renovação da Igreja na peculiaridade própria do “articulus temporum”.
O Papa atribuiu ao documento uma importância especialíssima e as solenidades de que quis revestir sua promulgação – na Basílica de São Pedro, na presença do Colégio Cardinalício e de todo o clero romano – não se viu igual na história deste século. A importância da Veterum Sapientiae não se vê negada pelo esquecimento em que a fizeram cair imediatamente e nem por seu fracasso histórico. Sua importância deriva de sua perfeita consonância com a identidade histórica da Igreja.
A encíclica é fundamentalmente uma afirmação da continuidade e a Igreja que procede do mundo helênico e romano é sobre tudo porque as letras cristãs são, desde os primeiros tempos, letras gregas e letras latinas. Os incunábulos das Sagradas Escrituras são gregos, os símbolos da fé mais antigos são gregos e latinos, a Igreja de Roma da metade do século III é toda ela latina, os Concílios dos primeiros séculos não têm outro idioma que o grego.[1]
Se trata de uma continuidade interna da Igreja na qual se concatenam todas suas épocas. Porém, existe ademais, uma continuidade externa que atravessa a inteira cronologia da era cristã e recorre a sabedoria dos gentios. Não vamos falar, naturalmente, de um “São Sócrates” a quem amaldiçoava Erasmo, porém não poderemos preterir a doutrina, exposta pelos Padres Gregos e Latinos e recordada pelo Pontífice (João XXIII) com um texto de Tertuliano, segundo a qual, existe uma continuidade entre o mundo do pensamento no qual viveu a “antiga sabedoria” – precisamente veterum sapientiae – e o mundo de pensamento elaborado depois da Revelação do Verbo Encarnado.
Nota do tradutor: foi por reconhecer a sabedoria grega e latina, a tradição, os símbolos da fé e a forma lingüística da Igreja durante 20 séculos, que o Papa João XXIII quis dar o nome da encíclica mais solene do século XX de “Veterum Sapientiae” ou “Antiga Sabedoria”. Sabe-se que João XXIII reconheceu no texto a continuidade entre a história da Igreja e sua contemporaneidade. Todavia, de forma assustadora, a Veterum Sapientiae foi esquecida e não consta sequer do Enchiridion Symbolorum editado após o Concílio, ou seja, é um capítulo omitido do Denzinger-Hünermann. Para o Papa João, o mundo grego e latino é parte integrante da religião católica, e esta é uma verdade não só professada por ele, mas por todos os Papas que o precederam.
O pensamento cristão desvendou o conteúdo sobrenaturalmente revelado, porém, também aderiu ao conteúdo revelado naturalmente mediante a luz da razão criada.
Deste modo, o mundo clássico não é estranho à religião. Esta o tem como essência e uma esfera de verdade inalcançável mediante as luzes naturais e sobrepostas a elas, porém, inclui também a esfera de toda verdade humanamente alcançável.
A cultura cristã foi, portanto, preparada e esperada obedientemente (como diziam os medievos) pela sabedoria antiga, porque nenhuma verdade, nenhuma justiça, nenhuma beleza é alheia ao cristianismo. E por isso não lhe é oposta, senão, compatível com a sabedoria antiga e se vê apoiada sempre por ela: não somente, como sucede dizer, fazendo-lhe escrava e a utilizando funcionalmente, mas levando no colo a quem já existia, todavia, a santificou e a fez maior do que era.
O documento mais solenizado da história da Igreja
A Veterum Sapientiae prescreve que as ciências fundamentais, como a dogmática e a moral, sejam ensinadas nos seminários em latim e seguindo manuais igualmente em latim; que os professores que pareçam incapazes ou reticentes com a latinidade sejam afastados por tempo conveniente. Como coração dela, que era destinada a procurar uma reintegração geral do latim da Igreja, o Pontífice decretou a ereção de um Instituto Superior de Latinidade, que tinha a função de formar latinistas para toda a Igreja e confeccionarem um livro de léxicos do latim moderno.
A desintegração geral da latinidade posteriormente ao projeto preparatório do Concílio, onde, nesse projeto se pretendeu a geral reintegração, nos mostra um sufrágio adicional à tese do resultado paradoxal do Concílio.
Milhões de professores, que se encontravam na exata condição desejada pela Veterum Sapientiae sobre as disciplinas divinas, foram constrangidos de forma impiedosa e sem misericórdia a se demitirem de seus cargos. A reforma dos estudos eclesiásticos, segundo a mesma encíclica, foi hostilizada por muitos e vários motivos, sendo aniquilada em brevíssimo tempo.
O Papa João, que primeiramente a instava ser cumprida, ordenou que não se exigisse mais sua execução. Aqueles a quem deviam por dever de ofício fazê-la eficaz, cercaram o Papa já debilitado e a Veterum Sapientiae, cuja oportunidade e utilidade tão altamente se havia exaltado, foi de toda ab-rogada e não é citada em nenhum documento conciliar.
Em algumas biografias sobre João XXIII ela é silenciada de todo, como se não existisse ou nunca houvesse existido, enquanto que os mais progressistas a mencionam somente como um tremendo erro. Não há na história da Igreja um documento tão altamente solenizado e que de tão pronto foi lançado nas gemônias[2].
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Notas do tradutor:
[1] Incunábulos na bibliologia são os primeiros livros traduzidos.
[2] Gemônias são as escadarias das antigas prisões romanas que levavam ao subsolo e nas quais eram expostos os cadáveres dos mortos.
fonte:o atanasiano pela liturgia