Este passado Sábado, dia 1 de Junho, a fronteira entre o passado, o presente e o eterno tornou-se bastante menos clara. Numa pacata e sonolenta vila da beira litoral portuguesa realizou-se algo que muitos julgariam uma memória de um já distante passado, doutra época que nada tem a ver como os dias de hoje. Nesta solarenga manhã celebrou-se um Baptismo solene segundo o rito romano tradicional.
Ao chegarmos à igreja, toda ela parecia estar ainda a dormir. Os locais procediam à limpeza da mesma, organizando o altar actual para a Missa na forma ordinária do rito romano, aparentemente oblívios para o que se iria realizar naquele local. Chegado o sacerdote, eu e mais alguns convidados procedemos aos preparativos. Para a consternação do sacristão, transferimos o altar actual para um lugar onde não estorvaria para a celebração da Missa segundo o usus antiquior.
O altar-mor, há tantas décadas adormecido, relegado ao esquecimento, talvez apenas como um enfeito da igreja, ou relíquia de tempos idos, viu-se sacudido do seu sono profundo. Limpou-se lhe o pó; as velas foram recolocadas e acesas; a iluminação própria do altar-mor foi ligada; os panos e sacras foram colocados sobre o altar; veio o cálice com o véu e a patena. Após esta “renovação”, digna de um programa televisivo, o altar-mor parecia reviver novamente. A talha dourada resplandecia com a luz das velas, e este altar que estava morto e agora regressara à vida, parecia transmitir uma nova vida a todo o templo, ao recuperar a sua posição de honra.
Parecia estar tudo preparado para a celebração do Baptismo e da Santa Missa, mas surgiu um imprevisto – não tínhamos água baptismal suficiente. O que à partida parecia um grande inconveniente, o Senhor transformou numa grande graça e momento de catequese. Não tendo mais nenhum ritual para benzer a água baptismal à mão, o sacerdote teve de recorrer ao ritual que se encontra no missal, o da Vigília Pascal. De certo modo, pode-se dizer que ficámos com outro sinal sensível – um sinal litúrgico – da ligação deste Mistério que se iria realizar ao grande Mistério da nossa Fé, o Mistério Pascal, que tão solenemente é celebrado na Semana Santa.
Após cantarmos a Ladainha dos Santos, o sacerdote invocou o auxílio de
Deus para que o seu “humilde ministério seja levado a efeito por virtude
do [Seu] poder.” Depois, em tom de prefácio, continuou com a bênção.
Recomendo vivamente a todos que estudem esta bênção, que a meditem. É
realmente muito bela e tem muito para saborear. Começa com os tipos de
baptismo presentes no Antigo Testamento; compara a pia baptismal a um
seio fecundo, donde nascemos regenerados pelo poder do Espírito Santo.
Várias vezes o sacerdote toca na água e faz nela o sinal da Cruz, e a
deita na direcção dos quatro pontos cardeais, lembrando a fonte que
manava do Paraíso. Refere também os prodígios realizados pela água no
Novo Testamento, e o fim glorioso que lhe é confiado por Jesus, ao
enviar os Seus a ir pelo mundo para baptizar. O sacerdote também sopra
três vezes sobre a água e depois mergulha por três vezes o Círio Pascal
nela. No final do rito é derramado Óleo dos Catecumenos e o Santo
Crisma.
É nestas alturas que salta à atenção o quão “ecuménico” é o rito
tradicional, ponto em que D. Cassian Fulsom OSB, abade do mosteiro de
Nórcia, tanto têm insistido. Ao ver este rito, vi uma série de paralelos
com o ritual Oriental para a bênção da água baptismal. Aí se vê o
quanto temos em comum liturgicamente com as Igrejas Orientais separadas.
Uma vez que toda a sã doutrina parte do culto “correcto”, que melhor
ponte de aproximação com os que não estão em comunhão connosco que pelas
nossas liturgias milenares?Finda a bênção da água baptismal, procedemos para o exterior da igreja, para começar o rito baptismal. Nesta altura começamos a penetrar ainda mais no kairos, deixando o chronos cada vez mais para trás. Para quem não conhece o rito antigo, a maior parte do que vem antes do Baptismo propriamente dito parecerá estranho, arcano, desconexo do Sacramento. No baptismo de crianças segundo o usus antiquior vemos condensados todos os estádios do antigo catecumenado que se realizavam ao longo da Quaresma. Todas as imposições das mãos, todos os exorcismos, todas as exsuflações, o “éfeta”, que se davam ao longo de várias semanas, aqui estão presentes duma só vez. Aqui estamos novamente com S. Cirílo de Jerusalém. As suas homilias catequéticas não são apenas palavras numa página, ou memórias de um passado distante, mas são uma realidade concreta. Estamos a repetir os mesmos gestos, as mesmas palavras, com tantas outras gerações que nos antecederam na Fé. Temos a noção de que participamos em algo que nos ultrapassa, que ultrapassa os séculos, que ultrapassa esta existência terrena.
Enquanto no rito actual tende a haver maior enfoque sobre a entrada da criança na comunidade cristã, no rito tradicional a ênfase está sobre a transformação que o Baptismo opera no neófito. Também outra realidade que transparece particularmente no rito tradicional é a da representação. Enquanto que actualmente o rito dirige-se directamente aos padrinhos, no rito tradicional o sacerdote dirige-se directamente à criança. Aqui se ganha outra visão da responsabilidade dos padrinhos, e neste aspecto de representação se vislumbra também como o sacerdote representa toda a congregação/assembleia durante a Santa Missa.
Os vários exorcismos alertam-nos para a realidade do mundo preternatural, de “Satanás e dos espíritos malignos que vagueiam pelo mundo para a perdição das almas”. Não são uma superstição, um medievalismo, ou sinal de obscurantismo. Estes exorcismos, para além de operarem sobre o exorcizado, têm como função secundária relembrar aos fiéis presentes o que a Igreja sempre ensinou, e os Santos Padres repetiram ao longo dos séculos – que a vida espiritual é uma luta.
A criança foi introduzida na igreja com a estola violeta do sacerdote sobre a sua cabeça, até chegarmos às portas do baptistério, que se encontravam fechadas. Após a Tradição (entrega) do Símbolo dos Apóstolos e do Pai Nosso, feita pela congregação em união com o sacerdote, unidos a Jesus Cristo pela vida da graça – o “totus Christus” – o sacerdote mudou de paramentos violetas para brancos, e as portas do baptistério foram abertas enquanto se ouvia no Salmo 100 “Entrai pelas Suas portas em acção de graças”. Os padrinhos confirmaram a Fé da criança e responderam afirmativamente quanto ao desejo de ser baptizada. O sacerdote depois pegou na criança e imergiu-a três vezes dentro da pia enquanto dizia a fórmula baptismal. Desceu às águas baptismais uma criança para morrer para a Morte; ressurgiu dos abismos com Cristo, para viver para a Vida. A oliveira brava foi enxertada na oliveira santa. Já não era apenas uma criança que saía das águas regeneradoras, mas um tabernáculo vivo. O que vislumbrariam naquele momento os anjos e os santos presentes que escaparia aos nossos olhos mortais? Teríamos a verdadeira noção de que o Deus Trino veio habitar naquele momento nesta pequena e frágil criança; que estávamos a presenciar uma espécie de nova Belém?
Foi ungida com óleo, foi-lhe entregue a veste branca de linho, e por fim a vela acesa no Círio Pascal. Saímos depois do baptistério ouvindo o coro cantar a antífona “Omnes qui in Christo” com parte do Salmo 105, que nos recordava que o nosso Deus é o de Abraão, Jacob e Isaac, e que é fiel às suas promessas, seguindo depois para a Missa.
Já a Missa foi uma Missa Cantada. O resto daquele santo templo, apesar de já estar num estado decrépito, pareceu recordar quando o “Dominus vobiscum” ressoava dentro das suas paredes. Ainda estávamos no kairos. O fumo do incenso enchia o ar; o canto milenar ressoava. Já não estávamos no aqui e agora. Estávamos novamente no Calvário, mas ao mesmo tempo já nas Bodas do Cordeiro. Connosco estavam as miríades de santos e todos os coros celestes. O Corpo Místico, juntamente com a sua Cabeça – o totus Christus – oferecia e oferecia-se à Trindade. O altar-mor mais uma vez recebeu o Autor da Vida, o Logos Divino, cumprindo a nobre função para a qual foi construído – foi palco de encontro do Céu e da Terra. Soou finalmente o “Ite Missa est”, e, logo após o Salve Regina, o envio em silêncio.
Voltando uns dias mais tarde, encontrava tudo de regresso ao “normal”. O altar “normal” novamente no seu lugar; o altar-mor às escuras. Aquele santo templo parecia ter novamente adormecido, voltado ao seu anterior estado de letargia. Sonhará, quiçá, com aquelas 3 horas em que voltara a viver “ad majorem Dei gloriam”.
Durante quase três horas aquela pequena vila foi palco de algo de verdadeiramente extraordinário. Terá aquela criança algum dia noção daquilo aconteceu naquele dia, em que foi feita filha de Deus do mesmo modo que tantas outras gerações durante séculos antes dela? Terão algum dia as demais crianças portuguesas o mesmo “privilégio” – que não o é, mas sim um direito de todos? O Senhor o sabe, e tudo a Seu tempo.
Naquele dia, onde estavam os velhos nostálgicos e saudosistas, de quem dizem que são os únicos a quem interessa o usus antiquior? Onde estavam os bafientos que cheiram a naftalina? Apenas cheirei o suave odor de incenso, fragrância agradável a Deus e sinal das nossas orações. Entre os que participaram, em especial nos rostos jovens, não vi saudosistas por um passado que nunca conheceram, mas fiéis participando conscientemente no único acto de importância neste mundo. Vi-os receber nesse dia uma irmã no seio da grande família de co-herdeiros com Cristo, e vi-os celebrar com alegria, transportando depois com eles esse anuncio para os quatro cantos do país para onde regressariam.
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