quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A heresia dos que negam a existência do demónio e suas raízes no Concílio Vaticano II

Há pouco mais de uma semana, o leitor católico João G. M. Barbuto escreveu ao site Montfort indignado, muito justamente, com a declaração recente de um jesuíta segundo o qual “O Demónio não existe como um ente”. Perguntou-nos, então, após fazer algumas excelentes considerações e citações refutando o tal herege, se “há algum fundamento intelectual (certamente não o há de fé) para essa negativa da existência do diabo” e se temos “o texto do IV Concílio de Latrão na parte em que define como dogma a existência do diabo”. Tratemos primeiro da segunda pergunta, que é mais simples, para então passarmos à primeira, que exige mais longas explanações.

1. Prova de que negar a existência do demónio é heresia

Na oração a São Miguel Arcanjo, rezamos: “Sancte Michael Archangele, defende nos in proelio, contra nequitiam et insidias diaboli esto praesidium. Imperet illi Deus, supplices deprecamur: tuque, Princeps militiae coelestis, Satanam aliosque spiritus malignos, qui ad perditionem animarum pervagantur in mundo, divina virtute, in infernum detrude. Amen.”

[“São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate, sede nosso refúgio contra as maldades e as ciladas do demónio. Ordene-lhe Deus, instantemente o pedimos; e vós, Príncipe da Milícia Celeste, pelo poder Divino, precipitai ao inferno a Satanás e a todos os espíritos malignos, que vagam pelo mundo para perder as almas. Amém.”]

Tanto a Tradição e o Magistério, como se vê por esse exemplo tirado da liturgia, quanto a própria Escritura Sagrada não deixam dúvidas quanto à existência do demónio. Ora, negar que ele seja um ente, como o faz o tal jesuíta, é negar sua existência, pois, como ensina Régis Jolivet em seu Vocabulário de Filosofia (Rio de Janeiro: Agir, 1975), ente significa nada mais que “o existente, no plano ôntico” (op. cit. p. 79).

Para não deixar nenhuma margem a dúvidas de que tal negação constitui heresia, basta-nos citar o seguinte texto do Papa Paulo VI, comentado pelo, igualmente insuspeito de conservadorismo, padre J. M. Martins Terra, S.J.:

“Paulo VI afirma categoricamente: “Sabemos, portanto, que este ser mesquinho e perturbador [o diabo] existe realmente, e que ainda actua com astúcia traiçoeira; é o inimigo oculto que semeia erros e desgraças na história humana”.

O Papa Paulo VI afirma que é hereje (= está fora da doutrina revelada na Bíblia e da fé da Igreja) quem nega a sua [do diabo] existência: “Sai do âmbito do ensinamento bíblico e eclesiástico quem se recusa a reconhecer a existência desta realidade... ou a explica como uma pseudo-realidade, como uma personificação conceptual e fantástica das causas desconhecidas de nossas desgraças” (SEDOC, 5 Março 1973, 1037).

Não há dúvida alguma que Paulo VI espelha fielmente o Magistério ordinário, bimilenário da Igreja, quando pronuncia estas palavras. A existência do Diabo nunca foi negada por nenhum Papa, nenhum Concílio, nem nunca foi posta em dúvida por nenhum heresiarca. Sem dúvida alguma é uma verdade de Fide Divina et Catholica pelo Magistério Ordinário da Igreja. Logo é um dogma de fé.”

(J. E. Martins Terra, S.J. Existe o Diabo? Respondem os Teólogos. São Paulo: Loyola, 1975, p. 277-278. Negritos nossos, itálicos do original.)

Eis mais alguns, dentre os muitos documentos do Magistério que tratam disso, entre os quais incluímos a definição dogmática do IV Concílio de Latrão pedida pelo leitor:

Sínodo I de Braga, sob o Papa João III:

“Se alguém disser que o diabo não foi primeiro um anjo bom feito por Deus, e que sua natureza não foi obra de Deus, mas que emergiu das trevas e não tem nenhum autor de si, e que ele mesmo é o princípio e a substância do mal, como disseram Maniqueu e Prisciliano, seja anátema.” (DS 457)

Papa Inocêncio III, Carta Eius exemplo ao Arcebispo de Tarragona:

A confissão de fé prescrita aos valdenses. (...) Cremos que o diabo se fez mau não por natureza, mas por escolha.” (DS 797)

IV Concílio de Latrão (XII Concílio Ecumênico):

Definição contra os albigenses e os cátaros. Firmemente cremos e simplesmente confessamos que . . . o diabo e demais demónios, por Deus certamente foram criados bons por natureza; mas eles, por si mesmos, fizeram-se maus. O homem, porém, pecou por sugestão do diabo.” (DS 800)

João Paulo II:

“Como afirmava João Paulo II em 24 de maio de 1987, no santuário de São Miguel Arcanjo no monte Gargano, "o demônio continua vivo e ativo no mundo".” (Georges Huber. O diabo, hoje. São Paulo: Quadrante, 1999, p. 13).

“Não se deve ter medo de chamar pelo seu nome o primeiro artífice do mal: o Maligno. A táctica que aplicou e aplica consiste em não se revelar, para que o mal difundido por ele desde a origem se desenvolva por acção do próprio homem” (João Paulo II, Mensagem de 31 de Março de 1985, apud G. Huber, op. cit., p. 54).

Até mesmo o Concílio Vaticano II menciona, a seu modo, a existência do demônio:

“Deus decidiu entrar na história humana de um modo novo e definitivo, enviando o seu Filho na nossa carne, a fim de por Ele arrancar os homens ao poder das trevas e de Satanás (cfr. Col 1, 13; At 10, 38) e nEle reconciliar consigo o mundo” (Ad gentes, n. 3).

2. Causas dessa heresia

As causas da descrença no demónio e, consequentemente, de sua maior liberdade de acção no mundo actual devem-se, em grande parte, à apostasia de grande parte do clero depois do Concílio Vaticano II.

Em primeiro lugar, é preciso apontar a influência da exegese modernista.

O maior expoente dessa corrente herética, nas últimas décadas, foi o protestante R. Bultmann, teórico da chamada “desmitização” (a negação de todos os milagres, de todo o sobrenatural e preternatural) dos Evangelhos, a qual, levada às últimas consequências por seus discípulos, passou a adoptar o nome significativo de “teologia da morte de Deus”. Como demonstra o já citado exegeta jesuíta J. E. Martins Terra:

“Os discípulos de Bultmann, sobretudo os teólogos da "Teologia da morte de Deus" foram menos hipócritas, mais coerentes e puseram a nu toda a verdade. [Para eles] Não foram somente os anjos e demónios que morreram, mas sim o próprio Deus. De fato toda essa literatura que versa sobre a impossibilidade de anjos e demónios é bastante ambígua. Basta, porém, trocar a palavra anjo e demónio pela palavra Deus e ela perderá toda a sua equivocidade, mostrando toda a sua significação e adquirindo uma densidade profundamente filosófica.”

(J. E. Martins Terra, S.J. Existe o Diabo? Respondem os Teólogos. São Paulo: Loyola, 1975, p. 196)

Como um absurdo desses pôde se infiltrar no clero católico? A resposta se encontra na Constituição Dei Verbum, do Concílio Vaticano II. Após um discurso célebre do cardeal modernista Koenig, durante a aula conciliar, negando a inerrância da Bíblia e sendo apoiado por outros cardeais hereges como Frings e Liénart, a Dei Verbum acabou por omitir sistematicamente toda menção a essa doutrina católica da inerrância, por meio de um acréscimo malicioso de seus redactores: nessa constituição, ao se falar da Sagrada Escritura, nunca se fala em verdade pura e simples, ou seja, em verdade como “adequação da inteligência ao real”, mas sempre se acrescenta tratar-se de “verdade para a nossa salvação”, isto é, não mais ausência de erro “em qualquer matéria religiosa ou profana”, como dizia o esquema pré-conciliar, em consonância com a doutrina católica, mas apenas “verdade salvífica”, como algo que, se por um lado não pode nos desviar do recto caminho, por outro lado não implica que o Espírito Santo não tenha permitido erros em outras matérias. Sutil? Com certeza, mas foi o suficiente para abrir a brecha a todo tipo de “desmitização”, como se vê pelo que se ensina e publica hoje, entre os católicos, sobre exegese.

Quem melhor analisou – e, pasmém, favoravelmente! – as várias mudanças de redacção da Dei Verbum, no que toca à noção de verdade, foi o famoso exegeta Ignace de la Potterie, S.J., no estudo “A Verdade da Sagrada Escritura Conforme a Doutrina do Concílio (Cap. III da Dei Verbum)”, publicado em VV.AA. A Bíblia na Igreja Depois da “Dei Verbum”, São Paulo: Paulinas, 1971, pp. 77-111. Aliás, é curioso que, diante desse seu apoio à heresia, o próprio Potterie venha a lamentar, noutra de suas conferências, como a exegese modernista triunfou após o Concílio:

“en DV 24, se recuerda que la Sagrada Escritura debe ser "como el alma de la Teología". Desgraciadamente no es explicado ni por el Concilio, ni por la Congregación [para la Educación Católica], cual tipo de exegesis puede ser hoy verdaderamente "el alma de la Teología". Es obvio que para esta tarea no puede bastar la exegesis exclusivamente histórico-critica. La situación actual lo demuestra casi dramáticamente.”

(P. Ignace de la Potterie, S.J. “Los Padres de la Iglesia y las Escrituras. Una relación muy fructífera.” .)

Além dessa porta aberta a todo tipo de aberração doutrinal, outra causa importante do esquecimento do diabo foi a supressão da oração a São Miguel Arcanjo do final da missa, a qual fora incluída por Leão XIII, após ter uma revelação individual de que o clero seria entregue ao demónio no século XX, profecia esta que vemos realizar-se hoje diante de nossos olhos. Sobre isso, lamenta-se Georges Huber, em seu livro sobre demonologia:

“A oração a São Miguel foi suprimida na última reforma litúrgica. Há quem pense que, sendo tão apropriada para conservar entre os fiéis e os sacerdotes a fé na presença activa dos anjos bons e dos anjos maus, essa oração mereceria ser reintroduzida, ou na liturgia das horas ou na oração dos fiéis na Santa Missa. Como afirmava João Paulo II em 24 de Maio de 1987, no santuário de São Miguel Arcanjo no monte Gargano, "o demónio continua vivo e activo no mundo". As hostilidades não cessaram, os exércitos de Satanás não se desmobilizaram. Portanto, a oração continua a ser necessária.”

(Georges Huber. O diabo, hoje. São Paulo: Quadrante, 1999, p. 13).

A propósito, não apenas na Nova Missa há, por toda parte, essa omissão incrível; inclusive na Missa Tridentina tal como é celebrada pelos Padres de Campos aqui em São Paulo, nas poucas vezes que tive de vê-la, não foram rezadas as chamadas “Orações ao Pé do Altar”, no fim da missa, isto é, três Ave-Maria, um Salve-Rainha, a oração a São Miguel e, por fim, a jaculatória “Cor Iesu Sacratissimo, miserere nobis” três vezes, acrescentada por São Pio X.

Essa omissão incrível da reforma litúrgica deve-se, antes de mais nada, à rejeição das profecias aprovadas pelas autoridades eclesiásticas – não só a do Papa Leão XIII, mas também as de São João Bosco e de Nossa Senhora em Fátima e La Salette – por parte dos chamados “conservadores”, que agem como o avestruz, ao negarem que o objecto de tais profecias seja o Segundo Concílio do Vaticano, como já está mais do que claro a quem tiver olhos para ver.

Mais do que isso, tal despreocupação com a acção diabólica deve-se ainda ao abandono da visão conspiratória da história pelo Vaticano II, que, sobretudo na Gaudium et Spes, buscou conciliar a Igreja com a Revolução, indo contra a teologia católica da história, tal como foi exposta pelos Santos Padres e Doutores e pelos Papas pré-conciliares. Como notou, logo depois do Concílio, Joseph Comblin, um dos teólogos neomodernistas que, mais tarde, ainda iria além, aderindo aos delírios comunistas mais extremos da teologia da libertação:

“Foi depois da Segunda Guerra Mundial que os católicos começaram a tentar compreender o que acontecia fora (sic). Até então, sua visão do mundo exterior achava-se dominada por esquemas apocalípticos de que encontramos uma amostra significativa na encíclica Divini Redemptoris. Essa encíclica foi inteiramente desclassificada pela constituição Gaudium et Spes mas, até ao Concílio, ela exprimia a interpretação oficial da história moderna e contemporânea.

(José Comblin, Mitos e Realidades da Secularização, São Paulo: Editora Herder, 1970, p. 146, negrito nosso).

Para verificar como isso é verdadeiro, basta contrastar o jargão filomaçônico da Gaudium et Spes, com seu progressismo de sabor teilhardista/maritainiano, com a Humanum Genus, de Leão XIII, da qual só é preciso citar a primeira frase, para que a diferença salte aos olhos:

“Desde quando, pela inveja do demónio, miseravelmente se separou de Deus, a quem era devedor do seu chamado à existência e dos dons sobrenaturais, o género humano dividiu-se em dois campos inimigos, que não cessam de combater, um pela verdade e pela virtude, o outro por tudo o que é contrário à virtude e à verdade.” (Leão XIII, Humanum Genus, Sobre a Maçonaria).

Outra causa correlata do actual cepticismo quanto à existência do príncipe deste mundo – cepticismo este que se espalha, paradoxalmente, num momento da história em que o demónio tem um controle do mundo tal como não possuía há milénios – foi o naturalismo dos textos do Concílio, que, nas centenas de páginas de seus prolixos documentos, só para citar um exemplo sintomático, não menciona nenhuma vez a palavra “inferno”!

Finalmente, é preciso constatar que, com a deserção em massa dos padres e religiosos após o término do Vaticano II, houve, para salvar as aparências, um relaxamento considerável das exigências doutrinais e morais para a admissão nos seminários, o que acarretou o aumento inaudito de casos de homossexualismo (e, portanto, também pedofilia) no clero actual. (Cf. a interessantíssima resenha do livro Goodbye, Good Men: How Liberals Brought Corruption to the Catholic Church, de Michael S. Rose, por Paulo Sérgio R. Pedrosa, no site Montfort: http://www.montfort.org.br/veritas/goodbye.html).

E, como se sabe, a inversão sexual está intimamente relacionada com a inversão metafísica e religiosa, ou seja, homossexualismo e satanismo são atitudes correlatas, como prova o estudioso de religiões comparadas Mircea Eliade, em seu livro Mefistófeles e o Andrógino. Já São Paulo expusera esse paralelo, ao mostrar como a inversão da relação adequada do homem com Deus pelos idólatras leva à inversão da relação adequada dos homens entre si:

“...eles que trocaram a verdade de Deus pela mentira, e que adoraram e serviram à criatura de preferência ao Criador, que é bendito por todos os séculos. Amém. Por isso Deus entregou-os a paixões de ignomínia. Porque as suas próprias mulheres mudaram o uso natural em outro uso, que é contra a natureza. E, do mesmo modo, também os homens, deixando o uso natural da mulher, arderam nos desejos, mutuamente, cometendo homens com homens a torpeza, e recebendo em si mesmos a paga que era devida ao seu desregramento.” (Rom 1,25-27).

Nem é preciso dizer que os padres homossexuais e satanistas também têm grande interesse em que não se acredite na existência do demónio, embora pelas razões opostas às dos padres racionalistas, que são o outro lado da moeda da heresia actual. Enfim, as consequências péssimas disso tudo, mesmo nas mais altas esferas do clero, são bem conhecidas, graças aos relatos, dentre outros autores, do finado jesuíta Malachi Martin.

3. Conclusão

Apesar das tentativas de Paulo VI e João Paulo II de travar a acção diabólica no mundo actual, lembrando-nos da existência e da acção dos anjos caídos e de seu chefe, o facto é que, como vimos, foram abertas janelas demais, pelo Concílio, para as investidas do demónio e de seus exércitos: a nova exegese, vinda dos protestantes; a supressão, na nova missa, da oração ao Santo Arcanjo que precipitou Lúcifer no inferno; a nova teologia evolucionista da história; o naturalismo, que se reflecte tanto na negação dos pedidos de Nossa Senhora, como na actual linguagem eclesiástica, cada vez mais parecida com a da ONU; e a seita de homossexuais que monopoliza muitos seminários; entre outros frutos do Vaticano II...

Vê-se como de fato o Espírito Santo falou pela boca de Paulo VI, quando, na homilia de 29 de Junho de 1972, em presença de 32 cardeais no nono aniversário de seu pontificado, o Papa, tratando da situação da Igreja poucos anos após o término do Concílio Vaticano II, fez sua célebre constatação de que “da qualche fessura sia entrato il fumo di Satana nel tempio di Dio” [“por alguma brecha, a fumaça de Satanás penetrou no templo de Deus”], acrescentando logo em seguida que:

“Si credeva che dopo il Concilio sarebbe venuta una giornata di sole per la storia della Chiesa. È venuta invece una giornata di nuvole, di tempesta, di buio, di ricerca, di incertezza. Predichiamo l’ecumenismo e ci distacchiamo sempre di più dagli altri.”

[“Acreditava-se que, depois do Concílio, viria um dia ensolarado para a história da Igreja. Veio, pelo contrário, um dia cheio de nuvens, de tempestade, de escuridão, de indagação, de incerteza. Pregamos o ecumenismo, e nos afastamos sempre mais uns dos outros.”]

(Paulo VI, Homilia de 29 de Junho de 1972, na solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo. .)

Em vista disso, rezemos a São Miguel Arcanjo e a Nossa Senhora de Fátima que intercedam para expulsar a abominação do lugar santo, extirpando assim a raiz de todos os problemas que assolam a Igreja, principalmente desde a nefanda década de 1960, como a descrença em dogmas fundamentais como a existência do demónio e, com ela, uma liberdade de acção do inferno sobre a terra que talvez só encontre paralelo, no futuro, quando da vinda do Anticristo.

Ad Calvarium per Rosarium,

Felipe A. Coelho.

Aviso: Este trabalho é resultado do uma consulta de um leitor ao site o qual está publicado em:

http://www.montfort.org.br/index.php?secao=cartas&subsecao=doutrina&artigo=20041025112205&lang=bra


Para citar este texto:

Felipe Coelho - "A heresia dos que negam a existência do demónio"
MONTFORT Associação Cultural