Vidas de Santos
Dom Próspero Guéranger, Abade de Solesmes
A 30 de janeiro de 1875, falecia o Fundador do famoso Mosteiro de Solesmes (França), restaurador da Sagrada Liturgia, exímio escritor, que conquistou para si o louvor de que "os inimigos da Igreja eram também seus inimigos"
Luís Carlos Azevedo
Talvez para alguns católicos aggiornati de nossos dias, influenciados pelo chamado progressismo a grande figura de Dom Prospero Guéranger possa parecer desconcertante e até incompreensível. Como conciliar numa mesma personalidade o restaurador da Sagrada Liturgia no século passado e o combativo escritor que durante 15 anos colaborou em Le Monde, cujo nome depois mudou para L 'Univers - famoso jornal católico que combateu vigorosa mente os erros da época? O órgão que defendeu extrenuamente na França a causa da Igreja e do Soberano Pontífice, num ambiente religioso em que campeavam o galicanismo – espécie de nacionalismo católico - e o liberalismo religioso?
No entanto, para um católico bem formado, os 120 artigos que o admirável Abade de Solesmes escreveu durante mais de uma década para o jornal dos ultramontanos da época estão em perfeita consonância com toda sua monumental obra empreendida no campo da liturgia. Pois uma visão autêntica das gloriosas tradições litúrgicas - desprezadas até então naquele século - só poderia se formar na mente de um homem que estivesse intimamente ligado a Roma e ao Papa, situados ultramontes, isto é, além dos montes - os Alpes que separam a França da Itália. Daí o qualificativo de ultramontanos, atribuídos aos católicos franceses antigalicanos e antiliberais, bem como aos católicos defensores do Papa do também de outros países, no século XIX. Esses fiéis assumiram o apelativo como um título de glória, distintivo de sua estreita vinculação à Santa Sé e ao Soberano Pontífice.
Prosper-Louis-Pascal Guéranger nasceu a 4 de abril de 1805 em Sablé, localidade não distante de Le Mans, no Departamento do Maine, célebre por suas marmorarias e fábricas de luvas.
Seu pai, Pierre Guéranger, abriu uma escola no antigo convento das religiosas franciscanas de Santa Isabel, no bairro de São Nicolau, e já desde muito cedo iniciou o filho no estudo do latim.
Aos 13 anos de idade, o menino ganhou uma bolsa no Colégio Real de Angers, ali permanecendo até os 17 anos.
Em Angers ele cultivou uma amizade durável com Charles Louvet, futuro prefeito de Saumur e mais tarde Ministro do Segundo Império.
Com um caráter sério e refletido, muito acima de sua idade, já adolescente Próspero se interessa pelos grandes autores de seu tempo: Chateaubriand, Lamartine, e particularmente os que tratavam das grandes questões religiosas do momento, Joseph de Maistre e Félicité de Lamennais.
Nos primórdios de 1821 sua família se desloca para Le Mans. Ele entra no Seminário desta cidade em novembro do ano seguinte, cursando Filosofia no antigo Hôtel Tessé e Teologia no Seminário São Vicente.
Desagradado com a mediocridade do ensino eclesiástico em seu tempo, Próspero Guéranger supriu-o com esforço pessoal, abeberando-se sobretudo na leitura, metódica e refletida, dos Santos Padres. A 7 de outubro de 1826 ele é ordenado padre por Monsenhor de Montblanc, no oratório do palácio arquiepiscopal de Tours ..
De fevereiro a julho de 1830, Dom Guéranger publica, no bimensário Mémorial Catholique, quatro artigos intitulados Considerações sobre a liturgia católica, contendo já o substrato das idéias sobre liturgia que ele ampliará ulteriormente.
Na primavera do ano seguinte, os jornais inseriam anúncios da colocação à venda do priorado de Solesmes, em Sablé. A notícia causou-lhe viva impressão, e ele mesmo relata o que a voz interior da graça lhe dizia: "Minha juventude, a ausência completa de recursos temporais .... nada disso me detinha. Eu me sentia impelido a ir adiante. Eu rezava com insistência a Deus para obter ajuda [a fim de comprar o imóvel].
"A necessidade da Igreja me parecia tão urgente, as idéias sobre o verdadeiro catolicismo tão falseadas e tão comprometidas no mundo eclesiástico e leigo, que eu não via outra coisa senão a urgência de fundar um centro para recolher e reviver as puras tradições".
Homem de Fé, Dom Guéranger põe se de joelhos no genuflexório, de onde roga a Deus a realização do inverossimel. Ele pede e obtém, ele bate e as portas lhe são abertas: a epopéia espiritual do Mosteiro de Solesmes começa e marcará a fundo a vida religiosa de sua época.
Seu caráter
Dom Guéranger media 1,65 m. Tête carrée (cabeça quadrada) possante e ossuda; fronte alta, larga e luzidia de inteligência; seus olhos eram de um azul intenso que surpreendia seus interlocutores e cuja expressão era ainda mais acentuada pelos cabelos loiros. a olhar penetrante, capaz de sondar a fundo dos corações, era límpido, franco, leal e sereno. Seu temperamento particularmente vivo, com uma alegria jovial, fina e cheia de humor - que conservará até os últimos dias de sua vida - valeu-lhe o apelativo de "il abate allegro", dado por amigos italianos.
Com uma natureza doce e firme, Dom Guéranger desfrutará sempre da segurança calma dos fortes, daqueles que não fazem caso de sua popularidade ou impopularidade, pois se sabem solidamente ancorados na verdade. Ele sempre detestou o conformismo, a submissão cega à moda do dia, preferindo remontar a corrente de opinião, antes que deixar-se arrastar por ela.
Em suma, seu coração estava à altura de seu espírito e ambos se apoiavam num caráter com têmpera de aço. Deus o tinha evidentemente criado para organizar e para comandar. Sua imaginação vivíssima tornava-o particularmente atraente em suas conversas e em suas cartas. Entretanto, aquilo que o distinguia eminentemente era a firmeza e a profundidade de sua Fé. Quem tivesse estado sob o efeito de sua irradiação pessoal, não podia deixar de reconhecer nele um autêntico Homem de Deus.
a pensamento de Dom Guéranger sempre esteve orientado para a Igreja e tudo aquilo que toca à Igreja, e para desagravar o Papado de todos os desafetos de que ele era vítima. "Eu não vejo senão uma só coisa -dizia ele -a verdadeira constituição da Igreja, para vingar as alterações que lhe fez sofrer o ensino galicano".
Graças à profundidade de seu pensamento teológico, amadurecido pelos ensinamentos dos Santos Padres e pela prática quotidiana da Liturgia Romana, ele arrostou vitoriosamente todas as controvérsias em meio às quais se viu envolto.
Obras
Duas das obras de Dom Guéranger, rubicundamente anti-galicanas e antiliberais, merecem ser mencionadas, pois dizem respeito aos dois dogmas que a Igreja definiu no século XIX.
Seu Mémoire sur Ia question de 1'1mmaculée Conception (Memória sobre a questão da Imaculada Conceição) vem a lume em 1850. Com uma argumentação simples e persuasiva, Dom Guéranger põe em relevo os testemunhos dos Santos Padres e da Liturgia, mostrando como o dogma da Imaculada Conceição estava contido na Tradição e havia sido progressivamente desenvolvido há dezoito séculos.
Essa obra repercute em Roma e o Papa Pio IX lhe confia um trabalho secreto sobre o assunto, com vistas à proclamação do dogma.
Por volta de 1860, o Santo padre pediu a Dom Guéranger um relatório secreto sobre o pensamento moderno, trabalho que seria utilizado na redação do famoso Syllabus de 1864, em que o Papa condena os erros do liberalismo católico.
Sua outra grande obra, a Monarchie Pontificale (Monarquia Pontifical), apareceu em 1870.
Nela o Abade de Solesmes rebatia as vãs tentativas galicanas de "impor à Igreja uma constituição diferente daquela recebida de Jesus Cristo". E abordava a questão da possibilidade e da oportunidade da definição da infalibilidade pontifícia, situando a questão no conjunto do testemunho doutrinário da Igreja. Ele demonstrava que a Igreja tinha sempre crido nesse privilégio papal.
Não se pode falar em Dom Guéranger sem dizer uma palavra a respeito de sua célebre obra L 'Année Liturgique (O Ano Litúrgico), vinda a lume a partir do outono de 1841, na qual seu velho amigo de Angers, Charles Louvet, via "um grande e belo estilo que lembra Bossuet", o grande orador sacro do século XVII.
Uma das razões de seu sucesso residia na ordem e na clareza de seu estilo e no dom de colocar os trabalhos de erudição histórico-religiosa ao alcance do leitor comum.
Essa obra é original e inigualável em seu gênero. Não é um missal, nem um florilégio, nem uma história da Liturgia, nem uma vida dos santos, mas encontra-se nela um pouco de tudo isso.
Talvez o melhor de seu charme se ache no seu lado personalíssimo. Nada ali é seco e sistemático. Dom Guéranger é levado por sua devoção contemplativa.
E se ele sente mais intensamente a beleza de tal mistério, se ele dispõe de textos mais abundantes sobre tal festa litúrgica, se tem uma veneração especial por tal santo, então ele se detém mais longamente em contemplá-los. O calor de sentimentos e o ardor da Fé que animam suas páginas levam o leitor a viver os acontecimentos descritos.
Lutador incansável
Dom Guéranger, que "combateu seu bom combate", entregou sua alma a Deus no dia 30 de janeiro de 1875.
A Igreja, Ela mesma, pela pena de Pio IX, não tardou em reconhecer os serviços prestados pelo Abade extinto: o Breve Ecclesiasticis viris, de 19 de março de 1875, começava por louvar o zelo e a ciência de Dom Guéranger, e assinalava as três circunstâncias nas quais suas obras haviam exercido uma influência determinante sobre os espíritos de seu tempo: a definição dos dogmas da Imaculada Conceição e da Infalibilidade Pontifícia, e sobretudo o retorno das dioceses da França à liturgia romana.
Pouco tempo depois, o Soberano Pontífice, que reconhecia nele "um verdadeiro filho de São Bento", em dois Breves de felicitações dirigidos a Monsenhor Pie, Bispo de Poitiers, e a Monsenhor Freppel, Bispo de Angers, ambos íntimos amigos de Dom Guéranger, afirmava que era na vocação monástica que residia a razão fundamental do devotamento do Abade de Solesmes à Igreja e à Cátedra de Pedro.
Numa lápide em memória de Dom Guéranger, existente na igreja da Abadia de Solesmes, se lê esta síntese de sua vida:
"Fomentou as sãs tradições da Sagrada Liturgia, que estavam decadentes; - E, lutador incansável, defendeu extrenuamente os direitos da Sé Apostólica; - Jamais poupou os fautores de falsos dogmas; - Doutor irrepreensível, conquistou para si o grande louvor de que os inimigos da Igreja eram também seus inimigos".
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OBRAS DE REFERÊNCIA
1. As inestimáveis colaborações para Catolicismo (a partir do nO 1. em 1951) do inesquecível Prof. Fernando Furquim de Almeida. na sua coluna "Os católicos franceses no século XIX".
2. Dom Louis Soltner. Solesmes & Dom Guéranger (1805-1875). edição da Abbaye Saint-Pierre de Solesmes, Sablé-sur-Sarthe, 1974 - obra editada por ocasião do centenário da morte de Dom Guéranger.
VARÃO JUSTO E CONTEMPLATIVO
Participando de um retiro espiritual no Mosteiro de Solesmes em 1874, um ano antes da morte de Dom Guéranger, o célebre pintor Ferdinand Gaillard (1834-1887) reteve os traços do Abade, dando a público em 1878 uma gravura do religioso beneditino, que conquistou grande sucesso, pois, a bem dizer, com suas tintas ele retratou a alma do personagem.
O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, com a acuidade de discernimento das almas, já patenteada em tantas de suas obras e colaborações nesta revista, comentou nos seguintes termos a fisionomia aqui reproduzida:
"Grandes olhos claros, cheios de luz, nos quais parece nunca se ter espelhado qualquer fraqueza ou qualquer baixeza humana. Grandes olhos que parecem feitos para a exclusiva consideração do que há de mais transcendental nesta vida e para os imensos horizontes do Céu. Mas ao mesmo tempo olhar de invencível força perfurante em relação às coisas da terra, capaz de transpor todas as aparências, todos os sofismas, todos os artifícios dos homens, mergulhando até o mais fundo recôndito dos acontecimentos e dos corações.
Alma de varão justo e contemplativo que vê alto e vê fundo, porque vive imersa nas claridades de um pensamento lógico, iluminado por uma fé impecavelmente ortodoxa".
fonte:Catolicismo
- E senti o espírito inundado por um mistério de luz que é Deus e N´Ele vi e ouvi -A ponta da lança como chama que se desprende, toca o eixo da terra, – Ela estremece: montanhas, cidades, vilas e aldeias com os seus moradores são sepultados. - O mar, os rios e as nuvens saem dos seus limites, transbordam, inundam e arrastam consigo num redemoinho, moradias e gente em número que não se pode contar , é a purificação do mundo pelo pecado em que se mergulha. - O ódio, a ambição provocam a guerra destruidora! - Depois senti no palpitar acelerado do coração e no meu espírito o eco duma voz suave que dizia: – No tempo, uma só Fé, um só Batismo, uma só Igreja, Santa, Católica, Apostólica: - Na eternidade, o Céu! (escreve a irmã Lúcia a 3 de janeiro de 1944, em "O Meu Caminho," I, p. 158 – 160 – Carmelo de Coimbra)