Tendo fundado, em 1967, o Movimento da Juventude Católica de França (MJCF), e tendo criado depois Oremus, em 1990, Christian Marquant veio a lançar Paix Liturgique no início desta década de 2000. Estando confinada, no começo, apenas à diocese de Nanterre (província de Paris), a acção de Paix Liturgique, que consiste em apoiar a aplicação das disposições pontifícias em favor da missa tradicional, pouco a pouco expandiu-se por toda a França.
Christian Marquant, o que é que a Paix Liturgique representa hoje?
CM: Desde o tempo das actividades de Oremus, nos anos 90, e do aparecimento de Paix Liturgique, com a campanha realizada na diocese de Nanterre, a fim de se obter a aplicação do Motu Proprio Ecclesia Dei, decretado por João Paulo II em 1988 (1), temos vindo a evoluir bastante. Pelo menos no que toca ao método e aos meios empregues, já que, graças ao surgimento da internet, em vez de um grupo de fiéis condenado a utilizar meios clássicos e ruinosos — envio de correspondência em grande quantidade, edição de revistas, etc. —, passámos a ser a uma grande equipa de correspondentes e redactores que difundem uma carta informativa semanal. Mas no que toca ao fundo, o que nos anima é, e foi sempre, o desejo de trabalhar em prol da reconciliação e da unidade da Igreja.
Tendo-se as nossas atenções estendido, num primeiro tempo, a toda a França, e, a partir do Motu Proprio Summorum Pontificum, a todo o mundo católico, hoje, a nossa carta representa o coração do nosso círculo de actividade e influência. É preciso dizer que, na sua versão francesa, ela chega a 350 000 pessoas, e, nas diferentes versões internacionais, a cerca de 200 000.
Mesmo assim, não perdemos ainda o nosso gosto pelo que se passa no terreno. Digamos apenas que tentámos ajustar o nosso modo de actuação, adaptando-nos ao clima mais sereno que agora domina, depois do início do pontificado de Bento XVI. E é assim que, por exemplo, nos dirigimos pacificamente ao encontro de fiéis e sacerdotes à entrada das missas — desde Março de 2009, em França, já distribuímos 550 000 exemplares de um desdobrável de apoio ao Santo Padre.
Referiu-se às versões internacionais da Carta de Paix Liturgique. Pode dizer uma palavra sobre isso? Porquê uma tal internacionalização?
CM: Há uma convicção que serve de fundamento para a Paix Liturgique, a de que a tradição católica não é uma reserva índia. A reabilitação da tradição litúrgica da Igreja não é coisa que interesse apenas à Fraternidade de São Pio X, ou apenas aos “tradis”, ou apenas aos católicos franceses, mas sim a todo o conjunto da catolicidade. Aliás, isso foi já exposto de modo admirável pelo Cardeal Cañizares, prefeito da Congregação do Culto Divino, no prefácio que escreveu para o livro de Monsenhor Nicola Bux, A Reforma de Bento XVI, cuja tradução francesa foi recentemente publicada pelas edições Tempora.
E uma vez que a “reforma da reforma” desejada pelo Sumo Pontífice, é uma coisa que a todos diz respeito, pareceu-nos útil, num primeiro tempo, fazer desenvolver a nossa carta na internet — para se poder ir além do círculo limitado dos nossos amigos e simpatizantes —, e, num segundo tempo, torná-la acessível aos católicos do mundo inteiro.
Assim, desde há seis meses, temo-nos dedicado a reforçar a nossa equipa e a aperfeiçoar a nossa base de dados, de modo a poder oferecer edições mensais em inglês, português, espanhol, alemão e italiano, o que nos permite alargar o nosso campo de visão e verificar que a questão litúrgica é realmente um desafio universal da Igreja e não apenas um problema franco-francês. Em Hong-Kong, nas Filipinas, na Nigéria, no Brasil e no México, bem assim como na Polónia e na Grã-Bretanha, vemos, todos os dias, fiéis, padres, religiosos e prelados a abrirem-se à redescoberta deste tesouro da Igreja que é a missa tradicional.
Precisamente, como é que vê a situação actual?
CM: Ela é simplesmente inesperada: pela primeira vez depois das confusões e mudanças impostas brutalmente em nome do “espírito do concílio”, parece agora ser possível encontrar uma reconciliação que esteja para lá das preferências litúrgicas que cada um tenha. Com efeito, o Papa eliminou os últimos obstáculos — reais ou supostos — à afirmação da unidade de todos os católicos à volta do Santo Padre.
Assim, perante este clima favorável, daqui para a frente, a unidade há-de assentar principalmente no empenhamento pessoal de cada baptizado: os fiéis, claro está, aqueles cujo papel na Igreja foi sublinhado pelo Concílio Vaticano II, mas também os sacerdotes, que também têm esta responsabilidade na sua qualidade de Pastores.
A Paix Liturgique deu-se a conhecer, em especial, ao mandar efectuar sondagens de opinião …
CM: A ideia de mandar realizar sondagens de opinião nasceu do silêncio de desprezo que nos foi oposto: “vocês não existem”, “enganaram-se de século”, “aqui, entre nós, não há qualquer problema litúrgico”, “perderam o comboio da renovação”, etc. Ora bem, não só estas afirmações nos pareceram, desde o início, caricaturais, mas, além disso, e com o passar dos anos, elas acabaram por se mostrar completamente privas de fundamento: o número de fiéis ligados à antiga missa não pára de aumentar, os jovens são cada vez mais atraídos por ela.
Como observador privilegiado, desde há mais de 40 anos, e desde o nascimento do importante movimento francês dos “Silenciosos da Igreja”, logo a seguir ao concílio, pude observar que as pessoas que eram atraídas pela liturgia tradicional não eram apenas um “pequeníssimo grupo de velhinhos e de nostálgicos”, mas antes uma parte importante dos fiéis católicos. Estando convencido desta realidade que era confortada pelos testemunhos recolhidos dia após dia, procurámos encontrar um instrumento que justamente viesse dar consistência a esta realidade. Por que meio se poderia fazer luz sobre o facto de que não era nem honesto nem razoável reduzir os católicos ligados à liturgia latina e gregoriana apenas aos fiéis da Fraternidade de São Pio X, dos quais se dizia, aliás, não representarem mais de 1 % dos fiéis, “no melhor dos casos”?
Seguindo o exemplo do que havia sido feito na Alemanha, no início dos anos 80, pelo presidente da Una Voce nessa altura, Éric de Saventhem, tivemos a ideia de mandar realizar em 2001 uma sondagem em França, a cargo de um dos maiores institutos de sondagens do país. Os resultados deste inquérito Ipsos ultrapassaram as nossas esperanças mais desvairadas! Com efeito, numa época em que era corrente afirmar-se que a missa celebrada segundo o missal de João XXIII estava interdita, mais de 20 % dos católicos praticantes vieram dizer que queriam viver a sua fé católica ao ritmo da liturgia tradicional …
Desde então, voltámos a encomendar outras sondagens semelhantes em França, e depois, em Itália, em Setembro de 2009; esta revelou o resultado extraordinário de que dois em cada três católicos praticantes italianos estavam prontos a assistir à antiga missa. Começámos também a fazer sondagens nas dioceses — até ao momento, em Versalhes e em Paris — e acabámos de lançar uma sondagem entre os católicos alemães…
Assim, pouco a pouco, vamos conseguindo obter uma avaliação suficientemente rigorosa de qual seja a realidade: após as belíssimas palavras pronunciadas em 2007 pelo Santo Padre, pelo menos um em cada três católicos que assistem à missa na sua paróquia participaria numa missa celebrada segundo a forma extraordinária …
E ainda assim, há muitos Pastores que se mostram pouco preocupados em aceitar esta realidade e em alcançar a unidade dos católicos?
CM: Infelizmente, a ideologia é coisa ainda bem viva no seio de uma boa parte do clero, e mais ainda, do episcopado! Continua-se a abordar globalmente a questão da unidade numa lógica de exclusão: todos quantos manifestam uma qualquer ligação à tradição bimilenar da Igreja, seja ela de ordem doutrinal ou litúrgica, são ignorados ou vistos com desconfiança.
É mais do que tempo para que esta cegueira acabe e para que os nossos bispos tomem consciência de que muitíssimos fiéis desejam viver a sua fé católica ao ritmo da forma extraordinária do rito romano. Por muito difícil e dolorosa que esta tomada de consciência possa ser para alguns deles, este requisito prévio mostra-se indispensável. Desde que começámos com as nossas cartas “internacionais”, tivemos a ocasião de verificar que para muitos bispos dos cinco continentes: «não há qualquer problema litúrgico», «não há pedidos de aplicação do Motu Proprio», «a liturgia tradicional só interessa a um pequeníssimo grupo de fiéis», ou ainda «o Motu Proprio serve apenas para resolver o problema da Fraternidade de São Pio X» …
Esta maneira de ver é, pelo menos, inexacta.
A observação honesta da realidade, o diálogo travado no terreno e as sondagens de opinião estão aí para o demonstrar: se, 40 anos depois, ao longo destes anos de chumbo, só um pequeníssimo grupo de fiéis fez ouvir a sua voz contra os abusos e as pseudo-interdições da missa tradicional, por outro lado, a imensa maioria dos que tinham uma ligação à liturgia tradicional foi agindo como Silenciosos da Igreja e calou-se. Alguns houve que deixaram de ir à missa, enquanto outros continuaram a frequentar as suas paróquias diocesanas, mesmo se isso feria a sua sensibilidade catequética e litúrgica.
Se com a publicação do Catecismo da Igreja Católica, a questão do catecismo ficou em parte resolvida, a questão litúrgica poderia tê-lo sido com a publicação do Motu Proprio Summorum Pontificum. Infelizmente, não é isso que está a acontecer. Certamente, nem todos os bispos se opõem ao Motu Proprio, muito longe disso! No entanto, as resistências são fortes e mesmo os mais favoráveis, em vez de pura e simplesmente aplicarem o Motu Proprio de 2007 (celebração de ambas as formas do rito nas paróquias, especialmente nas grandes paróquias do centro das cidades), têm a tendência para apenas usar o Motu Proprio de 1988 (pontual concessão de missas não paroquiais).
Que podemos então esperar dos nossos bispos?
CM: É muito simples, que deixem de querer ter razão contra o Papa e admitam reconhecer, finalmente, as necessidades dos fiéis que se mantiveram ligados à Fé e à prática tradicionais. Enquanto estes fiéis forem considerados como cristãos de segunda categoria, ou simplesmente como «um problema», a unidade eclesial que os bispos professam não passará de uma declaração de intenções repleta de hipocrisia.
Um primeiro passo que se pode encarar desde já, seria o de fazer com que todas as celebrações na forma extraordinária do rito romano que já estejam instauradas possam responder verdadeira e generosamente aos pedidos dos fiéis. O que é que isso quer dizer? Muito simplesmente, que as celebrações sejam dominicais, regulares e em horários normais e familiares. Forma extraordinária da missa não significa «condições extraordinárias» de celebração, como, infelizmente, é o que acontece muitas vezes.
Depois, seria necessário que os nossos pastores — em primeiro lugar, os nossos párocos, pois é a eles que o MP confia a responsabilidade, sem que tenham de recorrer ao placet do bispo — respondam lealmente e em tempos razoáveis aos pedidos que lhes são dirigidos, sem tergiversar nem protelar tentando ganhar tempo …
Respeito, boa-vontade e poder ser ouvidos, eis tudo o que pedimos aos nossos párocos e aos nossos bispos. Como esses são princípios de que falam sempre, não desesperaremos de, por fim, poder ver os seus frutos nas nossas paróquias.
(1) Campanha que, por fim, foi coroada de sucesso por obra da Providência, uma vez que já há 3 missas dominicais em comunhão com Roma a serem celebradas nesta diocese (ao passo que na diocese vizinha, Saint-Denis, não há nenhuma).
fonte:paix liturgique