quarta-feira, 23 de junho de 2010

Card.Siri: Defensor da Tradição e dos direitos dos operários


Em 4 de maio de 2006, nosso diretor pronunciou em Gênova uma das conferências do dia dedicado aos cem anos do nascimento do cardeal Giuseppe Siri. É o texto que publicamos aqui
de Giulio Andreotti

O cardeal Giuseppe Siri, que em Gênova nasceu, a 20 de maio de 1906, e morreu, a 2 de maio de 1989
      Agradeço ao cardeal Bertone o convite, muito gratificante, para participar dessa solene recordação centenária de uma fantástica figura de italiano e pastor.
      Minha memória dirige-se espontaneamente ao distante ano de 1938, quando o congresso nacional da Federação Universitária Católica Italiana (Fuci) nos permitiu a conhecer a extraordinária qualidade dos sacerdotes da diocese de Gênova, além de nossos assistentes, padre Costa e padre Guano.
      Na igreja da Imaculada, em Passo Assarotti, padre Giacomo Lercaro nos conquistou com uma meditação sobre a igualdade de todos os homens diante de Deus (tema que era polemicamente atual, pois já se prenunciavam as leis raciais); padre Cavalleri nos fascinava com seu modelo de apostolado litúrgico; padre Pelloux, homem de alto nível científico, desmentia o conflito entre ciência e fé, demonstrando de modo bri­lhante como, ao contrário, elas são complementares.
      Padre Giuseppe Siri impressionava com a profundidade de sua meditação, unida a uma forma extremamente simples e divulgativa. Logo, comecei a apreciá-lo cada vez mais, freqüentando, em Camáldoli, seu curso de divulgação teológica.
      A dolorosa divisão da Itália, ligada aos acontecimentos da guerra e da ocupação alemã, obrigou a um parêntesis nesse contato com padre Siri, que nesse meio tempo foi nomeado bispo auxiliar do cardeal Boetto. A situação vivida pela nação havia levado alguns de nós, dirigentes da Fuci, a militar na luta política e, sem que um campo jamais invadisse o outro, Moro, eu mesmo e outros (especialmente Paolo Emilio Taviani e Carlo Russo) tivemos um novo tipo de contato com dom Giuseppe Siri, que, poucos dias antes de 2 de junho de 1946, fora chamado a dirigir a Igreja genovesa. Ele deu grande atenção aos trabalhos da Assembléia Constituinte; de modo particular (mas não exclusivamente) ao tema das relações entre Estado e Igreja.
      Em 1953, Pio XII o nomeou cardeal, dando-lhe o título da igreja de Santa Maria da Vitória, do lado de fora da qual encontra-se a imagem de Santa Teresa do Menino Jesus, com a inscrição: “Largius hinc super urbem sparge Theresa rosas”. Com desconcertante superficialidade, os meios de comunicação estavam acostumados - hoje um pouco menos - a definir os bispos e os cardeais como “progressistas” ou “conservadores”. Lembro-me do aborrecimento que o cardeal Spellman, apresentado como protótipo dos não inovadores, demonstrava diante dessas definições. No dia seguinte de um Natal em que, como ordinário militar, havia celebrado junto às tropas tanto em sua pátria quanto no Vietnã, ele me disse, com uma ponta de ironia, que muitos de seus colegas “progressistas” haviam tirado um dia de repouso completo por ocasião do Natal.
      Certamente, se conservador significa zeloso defensor da tradição da Igreja, Siri o foi de maneira intransigente. Em particular, reagia com firmeza às teorias que invocavam uma direção colegial da própria Igreja. Menos marcadamente, diferenciou-se de seu concidadão Lercaro no que diz respeito às reformas litúrgicas, na verdade consideradas às vezes simplistas demais .
      Não se pode esquecer, além disso, que, para evitar interpretações erradas (muitas vezes confundiam-se as expressões dos “pe­ritos conciliares” com proposições aprovadas), o cardeal Siri deu vida a uma revista teológica intitulada Renovatio.
      No plano político, sua oposição firme aos comunistas e a seus aliados o levou a desconfiar com cautela de qualquer forma de abertura. E, quando Moro pediu aos bispos italianos a opinião deles, a resposta do cardeal Siri foi muito precisa.
      Sua postura contrária às posições da extrema esquerda e o apreço que tinha pela orientação política centrista (nunca deveríamos esquecer que a moderação é uma virtude) não significavam de modo algum uma propensão ao conservadorismo no âmbito social. Realmente, na preparação para a batalha política decisiva de 1948, De Gasperi se sentiu muito encorajado pelo apoio que dom Giuseppe Siri dava aos programas de reforma agrária e desenvolvimento da Itália meridional.
      Entre os “papéis-Siri” que conservo, encontrei um artigo do Espresso de 22 de março de 1987, assinado por Giampaolo Pansa, com o título: “Com a pronta intervenção de Siri, Deus salva o porto”. O artigo fala de um discurso decisivo do cardeal num delicado episódio relacionado justamente ao porto da cidade de vocês, que é tão importante não apenas para Gênova. Leio uma citação de Siri transcrita nesse artigo de Pansa: “A Italsider seria desativada. O canteiro de obras da Sestri desapareceria. Mas agora tudo está salvo. Lutei por isso. Cheguei a enviar três mensagens. Sei que Prodi ficou impressionado. Eu lhe disse que tinha razão em suas opções, mas que o que me importava era que aquelas fábricas não fossem fechadas”.
O cardeal Tarcisio Bertone e o presidente Giulio Andreotti por ocasião do Congresso realizado para o centenário do nascimento do cardeal Giuseppe Siri; Palácio Ducal, Gênova, 4 de maio de 2006
      Como testemunho de seu permanente interesse pelos destinos de Gênova, posso ler também uma carta que me enviou quando eu era ministro da Indústria, datada de 24 de maio de 1967: “Temo realmente por minha cidade, que sofreu e sofrerá amputações, e onde cresce o número de desempregados. Esse é o único motivo pelo qual ouso escrever, e escrever com confiança. Fiquei sabendo esta manhã que sexta-feira, 26 de maio, se reunirá a Comissão para a Disciplina Petrolífera, e que provavelmente autorizará a construção de novas instalações. Convoquei o doutor Garrone para que me esclarecesse a respeito da incidência negativa que isso teria sobre as instalações que já existem aqui e que representam um grande elemento da economia genovesa. Pelo mesmo doutor Garrone, vim a saber, assim, que a concessão para novos estabelecimentos nos traria prejuízos. Ele considera que a empresa dele poderia vir a ser prejudicada em suas atividades, e que sua expansão viria a ser definitivamente comprometida. Excelência! Peço sua atenção a Gênova. Queira a sua benevolência acolher e considerar minhas palavras: queira considerar como será necessário impedir aqui um aumento de dificuldades. E queira desculpar-me: só escrevo - repito - pelo meu dever como bispo”.
      Por ser matéria conecta, citarei outra carta que recebi do cardeal Siri, comentando um discurso meu no Congresso Nacional da Democracia Cristã, do qual eu lhe havia enviado uma cópia: “Obrigado pelo texto autêntico de seu discurso no Congresso. Foi-me útil, por não estar distorcido por comentários interessados. É um discurso claro, honesto e que enxerga longe. É difícil, quando se enxerga longe, ter o consenso de todos, mas, para quem tem responsabilidade, enxergar longe é um dever. Agora estou em condições de saber que muitos comentários e interpretações desvirtuaram a verdade. Peço-lhe que não se misture aos ‘velhinhos’, pois acredito que o senhor não pertence a essa categoria - ainda que seja honrosa. Deus lhe dê uma santa Páscoa, serena e luminosa”.
      Aqui termina a carta. Além de tudo isso, em seu difícil cargo de assistente espiritual da Confederação Italiana de Dirigentes de Empresas, Siri teve a oportunidade de iluminar e aprofundar os incentivos à concórdia social, que devem produzir cada vez mais a elevação dos humildes e a serenidade na convivência.
      Falar de cooperação entre as classes e de solidariedade não estava na moda, mas o cardeal Siri nunca se curvou às modas; era eloqüente a freqüente lembrança que fazia do “serva ordinem et ordo servabit te”.
      Nessa linha, presidiu também a Conferência Episcopal Italiana, que, à sua saída, na falta de um sucessor adequado, teve de ser guiada conjuntamente por três cardeais. Na carta pastoral de 1962, confirmou que “as relações entre a Igreja e os fiéis foram determinadas pelo próprio Divino Fundador de maneira clara e definitiva”.
      Nessa carta pastoral, intitulada Ortodoxia: Igreja-Fiéis-Mundo, há enunciações muito precisas sobre a relação com a política: “A ação no campo cívico (se quiserem: político), enquanto tal, por si mesma, não é de competência eclesiástica. Desse princípio podem ser extraídas todas as conseqüências óbvias e legítimas, desde que se harmonizem com os princípios igualmente verdadeiros que destaco a seguir.
      A ação no campo cívico não pode prevalecer nem sobre a verdade nem sobre a lei moral.
      A ação no campo cívico tem sempre um aspecto que impõe uma ligação clara com o Magistério eclesiástico. Trata-se do aspecto moral em primeiro lugar: sobre esse aspecto, isto é, a conformidade ou não de uma ação política com a lei divina, a Igreja é competente para julgar, e seu juízo vincula a consciência dos fiéis, quando é apresentado de forma suficiente e conveniente a criar um vínculo. Trata-se, em segundo lugar, do aspecto ideológico, ou seja, daquele em que uma ação política ou se torna aceitação de uma determinada doutrina ou se torna apoio direto ou indireto à mesma. Nesse caso, pode acontecer que já não se preserve a posição mental dos católicos perante a exígua doutrina da Igreja, e também nesse caso o Magistério da Igreja pode exprimir seu juízo no campo doutrinal ou de sua competência.
      Finalmente, há ou pode haver no fato político um terceiro aspecto totalmente concreto e prático, que é a ligação entre o mesmo e certos ou prováveis danos à religião e à Igreja. Esta tem o direito de se defender e tem o direito de indicar a seus filhos o que considera perigoso. Seus filhos não podem negar-lhe nem o direito nem a capacidade de julgar ações ou conseqüências de ações com prejuízo para ela.
      Os atos da Igreja, em sua competência, têm valor para a consciência de todos e de cada um dos fiéis e podem aprofundar esse valor até criar a obrigação de consciência”.
      Volto por um momento ao tema que já toquei. O tempo que passou me autoriza também a falar de uma carta do cardeal Siri (como presidente da Conferência Episcopal Italiana) a Moro datada de 18 de fevereiro de 1961. Eu recebi uma cópia dela cinco dias mais tarde, enviada pelo cardeal Pizzardo: “Prezado senhor”, escrevia Siri a Moro, “no momento em que existem motivos para crer que equívocos e interpretações erradas estão obscurecendo a verdade, tenho o dever de chamar sua atenção para o que segue:
Paulo VI cumprimenta alguns cardeais reunidos no Sínodo dos Bispos no outono de 1967. A partir da esquerda, é possível reconhecer os cardeais Siri, Lercaro, Santos e Felici
      - a atitude da Igreja ao julgar os comunistas e aqueles que os apóiam ou são associados a eles não mudou de modo algum;
      - a ‘linha’ que sugere levar os católicos a colaborarem com os socialistas a todo custo, antes mesmo que se obtenham garantias verdadeiras e seguras de que estes são independentes dos comunistas e de que res­peitam ao que nós devemos respeitar, não pode de modo algum ser compartilhada pelos bispos.
      Mas isso aconteceu, e a maneira e a forma como aconteceu faz temer profundamente pelo que está por vir.
      Em nome de Deus, rogo-lhe que reflita bem sobre a sua responsabilidade e sobre as conseqüências do que se está realizando”.
     
     
     
      O ano de 1978 foi extraordinário na história da Igreja. Paulo VI, sucedendo a João XXIII, havia guiado sabiamente o prosseguimento e a conclusão do Concílio. O conclave elegeu o patriarca de Veneza, Albino Luciani, figura eminentemente pastoral, mas infelizmente em condições físicas não tão boas (lembro-me de seu rosto pálido e muito tenso no dia em que tomou a posse de São João de Latrão; mas certamente ninguém pensava num pontificado de poucas semanas).
      O cardeal Siri celebrou o segundo dia dos ritos fúnebres em sufrágio do Papa e pronunciou uma homilia significativa: “João Paulo I”, disse, “abriu uma época. Na simplicidade, retomou o necessário discurso da firmeza sobre a doutrina católica, sobre a disciplina eclesiástica, sobre a espiritualidade. O povo o entendeu e o amou”.
      Às vésperas do novo conclave, as previsões - com o valor que as previsões podem ter - se concentravam nos nomes de Siri e Benelli. Ao segundo se creditava uma tendência considerada mais progressiva, além da dupla experiência diplomático-curial e de governo de uma importante diocese como Florença. Em prol de Siri, pareciam prevalecer a cultura teológica e o longuíssimo tempo à frente do arcebispado genovês.
      Duas entrevistas do cardeal Siri tiveram forte ressonância nos dias que precederam o conclave. A primeira, publicada em 2 de outubro, fez com que fosse inesperadamente catalogado como progressista, por frases como esta: “O mundo muda. Mao despertou a China que dormia havia três mil anos: a Igreja não pode continuar imóvel”. A segunda entrevista, de 14 de outubro, acentuava sua posição contrária à colegialidade na direção da Igreja (“Deus não a previu”). Foi também espirituoso. Quando lhe perguntaram o que pensava da possível escolha de um cardeal que tivesse na bagagem apenas a experiência na cúria, respondeu: “O senhor acredita que, mesmo que eu pensasse isso, o diria ao senhor?”.
      Num livro do deputado Natta, ex-secretário do Partido Comunista, editado pelas Edizioni Paoline (I tre tempi del presente), fala-se de um encontro que o próprio Natta e Enrico Berlinguer tiveram comigo naqueles dias. No livro se diz que eu estava tão seguro da escolha de Siri que teria procurado acalmá-los, dizendo que ele não era o reacionário de que se falava, mas um conservador certamente de grande nível e de grande cultura. Eu não me lembro desse encontro, mas estava mesmo convencido da escolha de Siri, cujo nome como papa os chamados especialistas já indicavam: Gregório XVII.
      Sobre o andamento dos conclaves, vigora a obrigação do segredo. Isso não impediu o arcebispo de Guatemala Mario Casariego, que foi à minha casa poucos dias depois, de me dizer que a disputa cabeça a cabeça Siri-Benelli induziu à escolha do “terceiro homem”.
O cardeal Siri com um grupo de representantes dos estivadores de Gênova
      A circunstância de que poucas semanas antes os mesmos cardeais tivessem escolhido um italiano removeu o temor de ver sublinhada a opção polonesa, como se fosse hostil à Itália.
     
     
     
      Depois disso, encontrei mais de uma vez o cardeal Siri no Instituto Ravasco, onde se hospedava em Roma, mas ele nunca disse nada sobre a escolha dos cardeais. Sorrindo, porém, ele me disse uma vez que a prorrogação de sua permanência na diocese bem além do limite dos setenta e cinco anos, na prática, demonstrava uma fronteira que não era rígida. Ele havia apresentado no prazo regulamentar sua carta de demissão, sem nunca solicitar que fosse acolhida.
      Os dezessete anos que se passaram desde a sua morte realmente não nos permitiram esquecer o seu e o nosso cardeal. Há poucos dias, quando tive de falar sobre Pio XII num dia dedicado a fazer justiça sobre seu efetivo e corajoso empenho em defesa dos judeus, fui reler a belíssima recordação que o cardeal Siri fez do papa Pacelli, numa síntese perfeita de história e avaliações de altíssimo nível.
      É um perfil que credencia uma grande linha, na qual as nossas gerações foram formadas. É preciso amar ao papa e não a um papa. Assim, e simplesmente assim. É profunda a lembrança, afetuosa e cheia de bons motivos, que temos do cardeal Siri. Ao meditar sobre sua personalidade mais que incisiva, nós o fazemos com um afeto e uma admiração que não seriam maiores se, nos quatro conclaves de que tomou parte, tivesse sido diferente a escolha do Espírito Santo. 
fonte:30 dias