O historiador Hubert Jedin, que havia colaborado com o Concílio, na condição de "perito" do Cardeal Frings, depois de ter tentado opor-se à ideia de uma "crise da Igreja", no fim dos anos 60, foi constrangido a reconhecer a sua existência numa famosa conferência intitulada "História e crise da Igreja", publicada em italiano pelo próprio Osservatore Romano (102). Em 17 de Setembro de 1968, Mons. Jedin apresentou à Conferência Episcopal Alemã um memorial em que descrevia cinco fenómenos relativos à crise da Igreja em curso: "1. A insegurança na fé cada vez mais generalizada, suscitada pela livre difusão de erros teológicos nas cátedras, em livros e ensaios; 2. A tentativa de transferir para a Igreja as formas da democracia parlamentar mediante introdução do direito de participação nos três planos da vida eclesiástica, na Igreja universal, na diocese e na paróquia; 3. Dessacralização do sacerdócio; 4. `Estruturação' livre da celebração litúrgica em lugar da observância do `Opus Dei'; 5. Ecumenismo como protestantização” (103).
(102) H. JEDIN, "Kirchengeschichte und Kirchenkrise", in Aachener Kirchenzeitung, 29 de Dezembro de 1968 e 5 de Janeiro de 1969.
(103) H. JEDIN, "Storia della mia vita", cit., pp. 326-327.
No mesmo ano de 1968, em discurso que marcou época, Paulo VI afirmou: "A Igreja atravessa, hoje, um momento de inquietude. Alguns exercem a autocrítica, dir-se-ia levando-a até à autodemolição. É uma espécie de agitação interior aguda e complexa, que ninguém teria esperado depois do Concílio. (...) A Igreja está a ser agredida pelos que dela fazem parte" (104). Retornou ainda ao tema afirmando ter a sensação de que "por alguma fresta entrou o fumo de Satanás no templo de Deus" e exactamente "por janelas que, pelo contrário, deveriam estar abertas à luz" (105). "Julgava-se que, depois do Concílio, viria um dia de sol para a história da Igreja. Pelo contrário, veio um dia de nuvens, de tempestade, de escuridão, de inquietação, de incerteza" (106).
(104) Paulo VI, Discurso ao Seminário Lombardo em Roma, 7 de Dezembro de 1968, in "Insegnamenti di Paolo VI", Tipografia Poliglotta Vaticana, Roma, 1968, vol. VI, pp. 1188-1189. A maioria dos católicos, escrevia o Prof. Plínio, gostaria de saber "o que é este fumo, quais são os rótulos ideológicos e os instrumentos humanos que servem a Satanás como `sprays' de tal fumo; no que consiste a demolição e como explicar que esta demolição seja, estranhamente, uma auto-demolição?" (Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "Clareza", in Folha de S. Paulo, 16 de Agosto de 1978).
(105) Paulo VI, Alocução no 9° aniversário da sua coroação, 29 de Junho de 1972, in Insegnamenti, vol. X, pp. 707-708.
(106) Ibid.
Entre os teólogos e os filósofos, mesmo de extracção progressista, que admitiram e denunciaram a expansão desta crise, recordamos apenas algumas declarações significativas:
O Cardeal Henri de Lubac, ex-corifeu da "nouvelle théologie ":
"É uma nova Igreja, diversa da de Cristo, a que se quer instaurar; deseja-se realizar uma sociedade antropocêntrica, ameaçada por uma apostasia imanente; estamos à mercê de um movimento geral de espanto e capitulação, de irenismo e adaptação" (107).
(107) Card. Henri de LUBAC S.J., Discurso ao Congresso Internacional de Teologia em Toronto, Agosto de 1967, cit. in B. MONSEGÚ, "Posconcilio", cit., vol. III, p. 371.
Mons. Rudolf Graber, Bispo de Regensburg:
"O que aconteceu então, há mais de 1600 anos (a crise ariana) repete-se hoje, mas com duas ou três diferenças. Hoje Alexandria é toda a Igreja, sacudida a partir dos alicerces". "Por que se faz tão pouco para consolidar as colunas da Igreja, de modo a evitar o seu desabamento? Se alguém ainda acha que os acontecimentos que se desenvolveram na Igreja são secundários, é um irrecuperável. Mas a responsabilidade dos chefes da Igreja será ainda maior, se não se ocuparem destes problemas ou se julgarem remediar o mal com remediozinhos. Não: aqui trata-se do todo; aqui trata-se da Igreja; aqui trata-se de uma espécie de revolução coperniciana que explodiu no próprio seio da Igreja, de uma Revolução gigantesca na Igreja" (108).
(108) Mons. R. GRABER, "Athanasius und die Kirche unserer Zeit", cit., Tr. it. "Sant'Atanasio e la Chiesa del nostro tempo", Civiltà, Brescia, 1974, pp. 28, 79.
O Padre estigmatino Cornélio Fabro, consultor da Congregação para a Doutrina da Fé:
"Assim a Igreja, naquilo que diz respeito à decisão dos Pastores, deslizou para uma situação de falta de guia a qual, quer no campo da doutrina, quer no da disciplina, caminha para uma crescente desintegração. (...) As terríveis palavras do Evangelho –Erráveis como ovelhas sem pastor– devem aplicar-se em larga escala à situação da Igreja presente" (109).
(109) C. FABRO C.P.S., "L'avventura della teologia progressista", cit., pp. 288-289.
Diz o Padre passionista Enrico Zoffoli, membro da Pontifícia Academia São Tomás de Aquino:
"Hoje a Igreja está empenhada em superar talvez a mais grave de todas as crises: a tempestade desencadeada pelo modernismo há cerca de um século continua devastadora (...) A desorientação dos fiéis é universal, angustiante, e a lamentação destes chega ao auge quando ouvem discursos ou recebem conselhos daqueles homens da Igreja, assistem a alguma das suas cerimónias, notando um comportamento de tal forma estranho e indecoroso que as poderia levar a pensar que o Cristianismo fosse uma enorme impostura. Por estas e outras coisas, não são tentados até de ateísmo?". "As consequências são desastrosas. (...) Não há verdade que, sob algum aspecto, não tenha sido falsificada. Algumas são negadas, outras caladas, outras ridicularizadas, outras adaptadas de forma irreconhecível" (110).
(110) Enrico ZOFFOLI C.P., "Chiesa ed uomini di Chiesa", Il Segno, Udine, 1994, pp. 46-48, 35.
Nas vésperas da sua morte, em 1975, Mons. Josemaría Escrivá de Balaguer, beatificado por João Paulo II, afirmava por sua vez:
"Quando me tornei Sacerdote, a Igreja de Deus parecia forte como uma rocha, sem nenhuma fenda. Apresentava-se com um aspecto externo que imediatamente exprimia a unidade: era um bloco maravilhosamente sólido. Agora, a ser vista com olhos humanos, parece um edifício em ruína, um monte de areia que se desfaz, que é calcado aos pés, disperso, destruído... O Papa disse uma vez que a Igreja está a auto-destruir-se. Palavras duras, tremendas! Mas isto não pode suceder, porque Jesus prometeu que o Espírito Santo a assistirá sempre, até ao fim dos séculos. E nós que faremos? Rezar, rezar..." (111).
(111) Cit. in Pilar URBANO, "Josemaría Escrivá, romano", Leonardo, Milão, 1996, pp. 442-443.
João Paulo II, que sucedeu em 1978 a Paulo VI depois do brevíssimo pontificado de João Paulo I (112), desde o início admitiu a existência da crise em termos inequívocos:
"É preciso admitir com realismo, e com profunda e sofrida sensibilidade, que os cristãos hoje, em grande parte, se sentem perdidos, confusos, perplexos e até desiludidos. Disseminaram-se às mãos cheias ideias contrárias à Verdade revelada e desde sempre ensinadas; espalharam-se verdadeiras heresias no campo dogmático e moral, criando dúvidas, confusões, rebeliões; arruinou-se a liturgia. Imersos no relativismo intelectual e moral, e portanto no permissivismo, os cristãos são tentados pelo ateísmo, pelo agnosticismo, pelo iluminismo vagamente moralista, por um cristianismo sociológico, sem dogmas definidos e sem moral objectiva" (113).
(112) Durante o conclave de Agosto de 1978, descrevendo o mito de "Wyszynski, o Cunctator" que, "contemporizando" com o comunismo teria salvo a causa da Igreja, Plínio Corrêa de Oliveira prognosticou a eventualidade da eleição do Primaz da Polónia para o trono de Pedro (Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "O Cunctator, um maximalista?", in Folha de S. Paulo, 24 de Agosto de 1978). O Cônclave elegeu o Cardeal Albino Luciani, Patriarca de Veneza, mas um mês depois reuniu-se novamente e elegeu para o trono Pontifício o Arcebispo de Cracóvia, Karol Wojtyla, com o nome de João Paulo II.
(113) João Paulo II, Discurso de 6 de Fevereiro de 1981, in L'Osservatore Romano de 7 de Fevereiro de 1981.
No entanto, o documento que por certo suscitou mais alvoroço foi o já célebre "Rapporto sulla Fede" do Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé:
"É incontestável que os últimos vinte anos foram decisivamente desfavoráveis para a Igreja Católica. Os resultados que se seguiram ao Concilio parecem cruelmente opostos às expectativas de todos, a começar por João XXIII e Paulo VI. Os cristãos estão novamente em minoria, mais do que em qualquer época desde o fim da Antiguidade. Os Papas e os Padres Conciliares esperavam que iria estabelecer-se uma nova unidade católica, e pelo contrário caminhou-se rumo a uma dissensão que –para usar as palavras de Paulo VI– pareceu passar da autocrítica à auto-destruição. Esperava-se um novo entusiasmo, e pelo contrário terminou-se com muita frequência no cansaço e no desânimo. Esperava-se um salto em frente, e pelo contrário deparou-se com um processo progressivo de decadência que se desenvolveu em larga medida sob o signo da evocação de um presumido `espírito do Concilio', de tal modo foi desacreditado (...) A Igreja do pós-Concílio é um estaleiro de obras; mas é um estaleiro cujo projecto se perdeu e cada qual continua a fabricar segundo o seu gosto" (114). "O meu diagnóstico é que se trata de uma autêntica crise que deve ser tratada e curada" (115).
(114) Cardeal J. RATZINGER, "Rapporto sulla fede", cit., pp. 27-28. "Parece-me que alguma coisa se tornou inteiramente clara neste último decénio: uma interpretação do Concílio que entenda os seus textos dogmáticos somente como prelúdio a um espírito conciliar que ainda não atingiu a maturidade, que considere o conjunto como uma mera introdução à Gaudium et Spes, e este texto, por sua vez, como ponto de partida para um prolongamento rectilíneo em direcção a uma fusão cada vez maior com aquilo que se chama progresso. Tal interpretação não só está em contradição com a intenção e a vontade dos próprios Padres Conciliares, mas o curso dos acontecimentos levou-a ao absurdo. Onde o espírito do Concílio acaba deturpado contra o seu texto e se reduz a um vago destilado de uma evolução que emanaria da Constituição pastoral, torna-se um espectro e leva ao vazio. As devastações ocasionadas por tal mentalidade são tão evidentes que não podem ser negadas seriamente" (Card. J. RATZINGER, "Les principes de la Théologie catholique", Téqui, Paris, 1982, p. 436).
(115) Card. J. RATZINGER, "Rapporto sulla fede", cit., p. 33.
A descrição da crise traçada pelo Cardeal Ratzinger tornou-se logo um dado adquirido. Vinte anos depois da conclusão do Concilio, La Civiltà Cattolica que, sobretudo por obra do P. Caprile acompanhara, passo a passo, o evento com entusiasmo, escreveu:
"É inegável que no vinténio pós-conciliar houve, antes de tudo, uma crise da fé: toda a revelação cristã nos seus dogmas fundamentais - existência e cognoscibilidade de Deus, Trindade, Encarnação, Redenção, Ressurreição de Jesus, vida eterna, Igreja, Eucaristia - foi colocada em questão ou tentou-se reinterpretá-la segundo categorias filosóficas e científicas que a esvaziam do seu autêntico conteúdo sobrenatural. (...) Diversamente das crises do passado, a actual é uma crise radical e global: radical porque ataca as raízes mesmas da fé e da vida cristã; global, porque ataca o cristianismo em todos os seus aspectos" (116).
(116) "Il Concilio causa della crisi nella Chiesa?", in La Civiltà Cattolica, n° 3247 (5 de Outubro de 1985). Para a Civiltà Cattolica, como para muitos autores, a crise da Igreja não é senão o reflexo da crise mais vasta que feriu a sociedade ocidental nos anos 60-70. "Tal crise deve-se ao vagalhão do secularismo, do permissivismo e do hedonismo que naqueles anos investiu o mundo ocidental com tal violência que chegou a arrastar todas as defesas morais e sociais que a sociedade havia construído ao longo de tantos séculos de "cristandade" (embora mais de nome que de facto)" (ibid).
Plínio Corrêa de Oliveira, desde a sua primeira obra até à última, "Nobreza e elites tradicionais análogas" (117), não ignorou tal crise, enquadrando-a na ampla visão histórica de "Revolução e Contra-Revolução". O seu ponto de observação não é o do teólogo, mas o do leigo, filósofo, historiador e homem de acção. Não é sobre o mérito dos documentos conciliares, mas sobre a realidade dos factos e sobre as suas consequências históricas, que fundamenta a sua denúncia do "silêncio enigmático, desconcertante e espantoso, apocalipticamente trágico do Concilio Vaticano II a respeito do comunismo" (118).
(117) Nesta obra, o pensador brasileiro tratou de uma "crise de um vulto absolutamente sem precedentes, pela qual vai passando a Igreja Católica, coluna e fundamento da moralidade e da boa ordenação das sociedades" (Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "Nobreza e Elites tradicionais análogas...", cit., p. 152).
(118) Este juízo está expresso no Apêndice de 1977 em Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "Revolução e Contra-Revolução", cit., p. 67.
"Este Concílio –escreveu– quis-se pastoral e não dogmático. Alcance dogmático realmente não o teve. Além disto, a sua omissão sobre o comunismo pode fazê-lo passar para a História como o Concilio a-pastoral. (...) A obra desse Concilio não pode estar inscrita, enquanto efectivamente pastoral, nem na História, nem no Livro da Vida.
"É penoso dizê-lo. Mas a evidência dos factos aponta, neste sentido, o Concílio Vaticano II como uma das maiores calamidades, se não a maior, da História da Igreja (119). A partir dele penetrou na Igreja, em proporções impensáveis o `fumo de Satanás' (120), que se vai dilatando dia a dia mais, com a terrível força de expansão dos gases. Para escândalo de incontáveis almas, o Corpo Místico de Cristo entrou no sinistro processo da sua como que autodemolição.
(119) Sobre as calamidades da fase pós-conciliar da Igreja permanece de fundamental importância a histórica declaração de Paulo VI de 29 de Junho de 1972, cit., pp. 707-708.
(120) Ibid., p. 707.
"A História narra os inúmeros dramas que a Igreja sofreu nos vinte séculos da sua existência. Oposições que germinaram fora dela, e de fora mesmo tentaram destruí-la. Tumores formados dentro dela, por ela cortados, e que já então de fora para dentro tentaram destruí-la com ferocidade.
"Quando, porém, viu a História, antes dos nossos dias, uma tentativa de demolição da Igreja, já não feita por um adversário, mas qualificada como `autodemolição' (121) em altíssimo pronunciamento de repercussão mundial?" (122).
(121) Paulo VI, Discurso de 7 de Dezembro 1968, cit., p. 1188.
(122) Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "Revolução e Contra-Revolução", cit., p. 68.
Para descrever a crise da Igreja Plínio Corrêa de Oliveira utiliza o termo "autodemolição" empregue por Paulo VI, ao qual, no mesmo livro em que exprime as suas reservas em relação ao Concilio, o pensador brasileiro dirige "uma homenagem, de filial devoção e de obediência ilimitada", na convicção de que "ubi Ecclesia ibi Christus, ubi Petrus ibi Ecclesia" (123). Todas as teses, até mesmo aquela, tão severa, sobre o Concílio, logo que expressas, já são submetidas "irrestritamente ao juízo do Vigário de Jesus Cristo, dispostos a renunciar de imediato a qualquer delas, desde que se distancie, ainda que de leve, do ensinamento da Santa Igreja, nossa Mãe, Arca da Salvação e Porta do Céu" (124).
(123) Ibid., p. 77.
(124) Ibid.
O juízo histórico do pensador brasileiro sobre o Concilio Vaticano II coincide, como vimos, com o de muitos protagonistas religiosos do nosso tempo. No entanto, através das categorias intelectuais de "Revolução e Contra-Revolução", ele propõe uma chave de interpretação da crise da Igreja como parte integrante do processo revolucionário por ele estudado e descrito. Tal juízo nasce de um profundo amor ao Papado e à Igreja e pela sua coerência mostra-se bem diverso das posições por vezes contraditórias ou excêntricas de muitos daqueles expoentes ou de certos grupos "tradicionalistas". O Magistério Pontifício, o Direito Canónico da Igreja e as normas perenes da Religião católica constituíram os imutáveis pontos de referência de Plínio Corrêa de Oliveira e de todos aqueles que nele se apoiaram (125).
(125) Perante a situação de confusão e desorientação em que está mergulhada actualmente a Igreja, a TFP americana resumiu assim a sua posição: "1. Declaram sua perplexidade em face de algumas reformas e factos passados na Igreja a partir do pontificado de João XXIII; 2. Esta perplexidade caracteriza-se por incompreensões e desorientação; 3. Ela não importa em afirmar que tais acontecimentos e reformas sejam erróneos; como também não afirma que não se tenham cometido erros. Compõem a TFP católicos instruídos e bem formados, mas não especialistas. Eles não têm portanto a possibilidade de resolver os problemas teológicos, morais, canónicos e litúrgicos extremamente complexos subjacentes a esta perplexidade" ("Let the other side also be heard: the TFPs' defense against Fidelity's onslaught", American Society for the Defense of Tradition, Family and Property, Pleasantville (N.Y.), 1989, p. 78).
fonte:http://www.pliniocorreadeoliveira.info/Cruzado0612.htm