sábado, 26 de junho de 2010

Plínio Corrêa de Oliveira, que conhecia tão bem os mecanismos do processo revolucionário, sabia com quanta facilidade uma minoria organizada pode assenhorear-se de uma assembleia e impor a própria vontade a uma maioria passiva e desorientada. Foi o que aconteceu durante a Revolução Francesa e ocorreu novamente durante o Concílio Vaticano II, definido por alguns, não por acaso, como "o 1789 da Igreja". Desde o início organizou-se uma eficaz estrutura (34), formada por um restrito grupo de Prelados da Europa Central, entre os quais os Cardeais Lercaro, Liénart, Frings, Koenig, Doepfner, Suenens, Alfrink, coadjuvados pelos seus "peritos" .

O Concílio do "aggiornamento"

Na manhã de 11 de Outubro de 1962 reuniram-se na Basilica de São Pedro mais de 2.500 Padres Conciliares (25). A solene cerimónia foi acompanhada, graças à televisão, por milhões de pessoas em todo o mundo. Na Basilica superlotada, os cantores entoaram o Credo e o Magnificat, enquanto o cortejo dos Padres avançava com solenidade. À frente, os superiores das Ordens religiosas, os Abades gerais e os Prelados nullius; em seguida os Bispos, os Arcebispos, os Patriarcas, os Cardeais, e por fim, na cadeira gestatória, João XXIII.
(25) Sobre o Concilio Vaticano II, a obra de conjunto mais recente e completa é a “Storia del Concilio Vaticano II”, dirigida por Giuseppe ALBERIGO, Peeters-Il Mulino, Bolonha, 1995. Até ao momento só vieram a lume dois volumes. Na abundante bibliografia, cfr. também: René LAURENTIN, "L'enjeu du Concile", Seuil, Paris, 1962-1966, 4 vol.; Antoine WENGER A.A., "Vatican II", Editions du Centurion, Paris, 1963, 4 vol.; Giovanni CAPRILE S.J., "Il Concilio Vaticano II, Civiltà Cattolica, Roma, 1965-1969, 5 vol.; Gianfranco SVIDERCOSCHI, "Storia del Concilio", Ancora, Milão, 1967; Henri FESQUET, "Diario del Concilio", Mursia, Milão, 1967; Ralph M. WILTGEN S.V.D., "Le Rhin se fette dans le Tibre: le Concile inconnu", Editions du Cèdre, Paris, 1976; "La Chiesa del Vaticano II (1958-1978)", in "Storia della Chiesa", iniciada por Augustine FLICHE e Victor MARTIN, e em seguida dirigida por Jean Baptiste DUROSELLE e E. JARRY, Ed. San Paolo, Cinisello Balsamo, 1994, vol. XXV/1, com ampla bibliografia sobre fontes e estudos.

O cenário incomparável da Basílica de São Pedro, a presença do Vigário de Cristo e dos sucessores dos Apóstolos, fizeram daquela cerimónia um espectáculo majestoso. Nunca, como nesse momento, a Igreja Católica manifestou o seu carácter universal, hierárquico e anti-igualitário.
"A abertura do II Concilio Vaticano –comentou Plínio Corrêa de Oliveira– dá ensejo a que meditemos com particular atenção uma verdade quotidianamente posta sob os nossos olhos, e que entretanto o homem moderno, filho da Revolução, se recusa a reconhecer. A desigualdade justa e harmónica, está de tal maneira no âmago das grandes obras de Deus, que Nosso Senhor Jesus Cristo, ao fundar a obra prima da criação, que é o seu Corpo Místico, a Santa Igreja Católica, constituiu-a em sociedade desigual, onde há um monarca que é o Papa, com jurisdição plena e directa sobre todos os Bispos e fiéis, há em cada diocese Príncipes espirituais a quem incumbe em união e comunhão com o Papa governar os fiéis, e há o Clero que, sob a direcção dos Bispos, rege nas várias paróquias o povo cristão" (26).
(26) Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "O Concílio e o igualitarismo moderno", in Catolicismo, n° 142 (Outubro de 1962), p. 7.

O discurso inaugural do Papa, pronunciado em latim e imediatamente transmitido pelos meios de comunicação de todo o mundo, como observa o Padre Wenger, deu a chave para compreender o Concilio (27). "O discurso de 11 de Outubro era o verdadeiro mapa do Concílio. Mais que uma ordem do dia, estabelecia um espírito; mais que um programa, dava uma orientação" (28). A novidade não estava principalmente na doutrina, mas na nova disposição psicológica optimista com a qual se concebiam as relações entre a Igreja e o mundo: simpatia e "abertura".
(27) A. WENGER, "Vatican II”, cit., vol. I, p. 39.
(28) Ibid., p. 38.

No seu discurso, João XXIII criticou os "profetas de catástrofes" (29) e sublinhou que da assembleia resultaria "um magistério de carácter prevalentemente pastoral". O Concilio, segundo o Pontífice, propunha-se formular, com linguagem adaptada aos novos tempos, o perene ensinamento da Igreja. A finalidade, segundo um termo destinado a entrar em voga, era o "aggiornamento" (30). Se o Concilio de Trento passou à História como o Concilio da Contra-Reforma, "é provável que o Vaticano II fique conhecido no futuro como o Concilio do Aggiornamento" (31).
(29) Documentation Catholique, 4 de Novembro de 1962, col. 1380.
(30) João XXIII, discursos de 11 de Setembro de 1960 e de 28 de Junho de 1961.
(31) Christopher BUTLER, O.S.B., "L'aggiornamento del Concilio Vaticano II", in "La teologia dopo il Vaticano II", John M. MILLER, C.S.C., Morcelliana, Brescia, 1967, p. 3 (pp. 3-16). "Aggiornamento", segundo D. Butler significa, também, etimologicamente, "modernização": "A Igreja devia modernizar-se" (ibid.).

A primeira sessão conciliar estendeu-se de 11 de Outubro a 8 de Dezembro de 1962. Na véspera da abertura do Concilio, Plínio Corrêa de Oliveira chegou a Roma, acompanhado de um grupo de amigos e discípulos da TFP brasileira (32). Permaneceu na Cidade Eterna até ao dia 21 de Dezembro, acompanhando todos os trabalhos da sessão, que se encerrou sem ter chegado a nenhuma deliberação. O seu estado de ânimo continuava a ser muito diverso do optimismo em expansão naquele tempo.
(32) Foram a Roma, entre outros, o Prof. Fernando Furquim de Almeida, o jovem príncipe Dom Bertrand de Orleães e Bragança, Luiz Nazareno de Assumpção Filho, Paulo Corrêa de Brito Filho, Fabio Xavier da Silveira, Carlos Alberto Soares Corrêa, Sérgio António Brotero Lefebvre. Este último tinha viajado antecipadamente por navio levando consigo vinte baús de material de propaganda católica, incluindo exemplares em diversas línguas de "Revolução e Contra-Revolução", do Prof. Plínio, e "Problemas do Apostolado moderno" de Mons. Castro Mayer.

"Esta viagem –escrevia à mãe– é fruto de longas reflexões. (...) Eu não poderia jamais, sob consideração nenhuma, renunciar a prestar à Igreja, à qual dediquei a minha vida, este serviço numa hora histórica tão triste como aquela da morte de Nosso Senhor" (33). Na mesma carta, Plínio afirma que "jamais o cerco dos inimigos externos da Igreja foi tão forte, e jamais também foi tão geral, tão articulada, tão audaciosa a acção dos seus inimigos internos".
(33) J.S. CLÁ DIAS, "Dona Lucília", cit., vol. III, p. 117.

Plínio Corrêa de Oliveira, que conhecia tão bem os mecanismos do processo revolucionário, sabia com quanta facilidade uma minoria organizada pode assenhorear-se de uma assembleia e impor a própria vontade a uma maioria passiva e desorientada. Foi o que aconteceu durante a Revolução Francesa e ocorreu novamente durante o Concílio Vaticano II, definido por alguns, não por acaso, como "o 1789 da Igreja". Desde o início organizou-se uma eficaz estrutura (34), formada por um restrito grupo de Prelados da Europa Central, entre os quais os Cardeais Lercaro, Liénart, Frings, Koenig, Doepfner, Suenens, Alfrink, coadjuvados pelos seus "peritos" (35). Esta teve expressão nas reuniões semanais na Domus Mariae, durante as quais trocavam informações, ou se coordenavam as iniciativas "e eventualmente as pressões a exercer sobre a Assembleia" (36). Somente num segundo período, quando a minoria progressista tomou-se maioria na Assembleia, é que os defensores da Tradição começaram a organizar-se.
(34) Ao lado das actividades dos Padres Conciliares havia as dos especialistas: os oficiais ou "peritos", que assistiam às congregações gerais, sem direito de voto, e os assessores particulares, convidados por alguns Bispos na qualidade de conselheiros. Entre estes últimos estavam teólogos como os Padres Chenu, Congar, Daniélou, De Lubac, Häring, Küng, Rahner, Ratzinger, Schillebeeckx, que exerceram grande influência. Cfr. J. F. KOBLER, "Were theologians the engineers of Vatican II?", in Gregorianum, vol. LXX (1989), pp. 233-250.
(35) "A realidade do Concílio –segundo o Cardeal Siri– é esta: houve uma luta entre Horácios e Curiácios. Aqueles eram três contra três; no Concílio, quatro contra quatro. Do lado de lá: Frings, Liénart, Suenens, Lercaro. Do lado de cá: Ottaviani, Ruffini, Browne e eu" (Benny LAI, "Il Papa non eletto. Giuseppe Siri, Cardinale di Santa Romana Chiesa", Laterza, Roma-Bari, 1993, p. 233). Sobre as origens daquela que o Padre Wiltgen chama "A Aliança mundial" ("Le Rhin se jette dans le Tibre", cit., p. 128), cfr. também D. Hélder CÂMARA, "Les conversions d'un évêque", cit., pp. 152-153.
(36) R. AUBERT, "Organizzazione e funzionamento dell'assemblea", in "La Chiesa del Vaticano II", cit., p. 177.

Os Prelados brasileiros desenvolveram em Roma um papel importante. Se entre os chefes das falanges progressistas se tinha distinguido D. Hélder Câmara (37), no lado oposto figurava na primeira linha D. António de Castro Mayer e D. Geraldo de Proença Sigaud.
(37) "Este homem –recorda o Card. Suenens– desenvolveu um papel fundamental nos bastidores, ainda que nunca tenha tomado a palavra durante as sessões conciliares" (Léon J. SUENENS, "Ricordi e speranze", Edizioni Paoline, Cinisello Balsamo, 1993, p. 220).

Durante a primeira sessão do Concílio, Plínio Corrêa de Oliveira instalou em Roma um secretariado que acompanhou activamente os trabalhos da Assembleia e ofereceu um serviço constante, sobretudo aos dois Prelados brasileiros com os quais mantinha mais relações. Em torno deles logo se formou um grupo de Bispos e teólogos conservadores, entre os quais Mons. Luigi Carli, Mons. Marcel Lefèbvre, e um grupo de Professores da Universidade Lateranense, como Mons. António Piolanti e Mons. Dino Staffa. Estes reuniam-se às terças-feiras à tarde na Cúria Generalícia dos Agostinianos para examinar, com a ajuda de teólogos, os esquemas esporadicamente apresentados na Assembleia.
Mais tarde, em 22 de Outubro de 1963, num instituto religioso situado na Rua do Santo Ofício, teve lugar a primeira reunião do Grupo que assumiria o nome de Coetus Internationalis Patrum (38). Os Bispos participantes no encontro, cerca de trinta, decidiram encontrar-se com regularidade.
(38) Sobre o Coetus Internationalis: R. M. WILTGEN, "Le Rhin se jette dans le Tibre", cit, pp. 147-148; R. LAURENTIN, "Bilan de la troisième session", in "L'enjeu du Concile", cit., vol. III, p. 291; R. AUBERT, "Organizzazione e funzionamento dell'assemblea", cit., pp. 177-179; V. A. BERTO, "Notre-Dame de joie. Correspondance de l'abbé Berto, prêtre. 1900-1968", Editions du Cèdre, Paris, 1974, pp. 290-295; id., "Pour la Sainte Eglise Romaine. Textes et documents", Editions du Cèdre, Paris, 1976.

D. Geraldo de Proença Sigaud foi nomeado secretário, tendo sido por sua vez assistido pelo eficiente secretariado colocado à disposição pelos membros da TFP presentes em Roma.
Plínio Corrêa de Oliveira, que depois da sua volta a São Paulo acompanhava dia a dia o andamento da Assembleia, intuiu a profundidade da transformação em curso, que não só podia ser lida nas entrelinhas da linguagem teológica, mas também se exprimia em gestos significativos, destinados a ter profundo impacto popular. O Concílio definiu-se como pastoral e não dogmático, mas no século da "heresia da acção", a praxis pode ter um alcance revolucionário maior que as ideias.
João XXIII faleceu após quatro anos de Pontificado a 3 de Junho de 1963. Decorridos apenas dezoito dias, em 21 de Junho, foi eleito Papa o Cardeal João Baptista Montini, Arcebispo de Milão, que tomou o nome de Paulo VI. Na sua primeira radiomensagem, assegurou que a parte mais relevante do seu pontificado seria dedicada à continuação do Concílio Ecuménico Vaticano II.
Embora preocupado com o previsível desenvolvimento dos acontecimentos, Plínio Corrêa de Oliveira quis manifestar, em Catolicismo, "a nossa adesão incondicional, o nosso amor sem limites, a nossa obediência inteira, não só à Cátedra Apostólica, mas também às Pessoas augustas do seu Ocupante de ontem e de seu Ocupante de hoje", não sem recordar que este último era o mesmo Prelado que em 1949 lhe mandara um cortês elogio em nome de Pio XII (39).
(39) Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "...E sobre ti está edificada a Igreja", in Catolicismo, n° 151 (Julho de 1963).

Em 30 de Junho de 1963, quando o Papa, ao fim da Missa Pontifical, depôs a mitra e recebeu a tiara, ressoou pela última vez depois de muitos séculos a fórmula solene: "Recebe a tiara adornada de três coroas, e sabe que és pai dos príncipes e dos reis, guia do mundo, Vigário de Nosso Salvador Jesus Cristo, ao qual pertencem a honra e a glória pelos séculos dos séculos". Com efeito, entre as primeiras decisões de Paulo VI estava a de abolir os “flabelli”, o baldaquino, a cadeira gestatória e, com a tiara, a própria cerimónia da coroação pontifícia.
A segunda sessão do Concílio, que sob muitos aspectos foi a mais importante, iniciou-se a 29 de Setembro e encerrou-se a 4 de Dezembro com a aprovação da constituição Sacrosanctum Concilium sobre a liturgia. Logo no início da segunda sessão, colocou-se, pela primeira vez na aula conciliar, a questão do comunismo (40).
(40) A respeito das relações entre a Igreja e o comunismo durante o Concílio cfr. R. M. WILTGEN S. V. D., "Council News Service", 2 vol., Divine Word News Service, Roma, 1963; id., "Le Rhin se jette dans le Tibre", cit., pp. 269-274; A. WENGER, "Vatican II", cit., vol. I, pp. 187-346; vol. II, pp. 297-316; G. F. SVIDERCOSCHI, "Storia del Concilio", cit.; Philippe LEVILLAIN, "La mécanique politique de Vatican II", Beauchesne, Paris, 1975, pp. 361-439; V. CARBONE, "Schemi e discussioni sull'ateismo e sul marxismo", cit.; Andrea RICCARDI, "Il Vaticano e Mosca 1940-1990", Laterza, Roma-Bari, 1993, pp. 217-304.
fonte:http://www.pliniocorreadeoliveira.info/Cruzado0605.htm