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O mal da tibieza no padre
I
A que está exposto o padre tíbio
A S. João mandou o Senhor, no Apocalipse, que escrevesse ao bispo de
Éfeso estas palavras: Sei o bem que fazes; conheço os teus trabalhos pela
minha glória, assim como a tua paciência nas fadigas do teu ministério328. Em
seguida, acrescenta: Mas, por outro lado, tenho a arguir-te de haveres esfriado
no teu primitivo fervor329. — Alguém dirá talvez: que grande mal havia
nisso? — Escutai o que o Senhor ajunta ainda: Lembra-te donde caíste; faz
penitência das tuas culpas, e cuida de voltar ao primitivo fervor, em que deves
viver, como ministro meu; de contrário, serás reprovado por mim, como
indigno do ministério, que te confiei330.
Como assim! Então a tibieza conduz a uma ruína tal? — Sim, a uma
grande ruína, e o pior é que os tíbios não a conhecem, não a temem, não
procuram evitá-la. Isto acontece sobretudo aos padres, cuja máxima parte
vão esbarrar no escolho oculto da tibieza, e um grande número encontram
nele a sua perdição. Escolho oculto: o que faz que os tíbios estejam expostos
a grande risco de se perderem, é que a tibieza não deixa ver a uma alma o
mal enorme que lhe causa. Muitos deles por certo não querem separar-se
inteiramente de Jesus Cristo; querem segui-lo, mas de longe, como fez S.
Pedro, quando o Redentor foi preso no jardim das Oliveiras331. Procedendo
porém assim, caem facilmente na desgraça de Pedro, que apenas entrou na
casa do Pontífice, a um simples remoque duma serva, renegou Jesus Cristo!
Quem despreza as coisas pequenas vem a cair pouco a pouco nas grandes332.
O intérprete aplica este texto à alma tíbia, e diz que ela em breve
perderá a devoção, e cairá depois, passando das faltas leves de que não se
importava, às graves e mortais333. Segundo Eusébio de Emeso, quem não
teme ofender a Deus com pecados veniais, dificilmente se há de preservar
dos pecados mortais334. É com justiça, ajunta Sto. Isidoro, que o Senhor permite
que quem não faz caso das faltas leves caía depois nas mais graves335.
Os pequenos excessos, quando são raros, não causam grave detrimento
na saúde; mas, quando são frequentes e multiplicados, acabam por ocasionar
doenças mortais. É o que diz Santo Agostinho: Evitais com cuidado as
quedas graves, e não temeis as leves; não perdestes a vida sob a pedra
enorme dalgum pecado mortal; mas tomai cautela não fiqueis esmagados
debaixo dum montão de areia de pecados veniais336.
Ninguém ignora que só o pecado mortal dá a morte à alma e que os
veniais, por mais numerosos que sejam, a não podem privar da graça, mas é
preciso saber também o que diz S. Gregório: que o hábito de cometer faltas
veniais, sem delas sentir remorso e sem pensar em corrigi-las, faz perder
pouco a pouco o temor de Deus, e, uma vez perdido este temor, é fácil passar
das faltas pequenas às grandes337. Santo Doroteu ajunta: Se desprezarmos
as faltas leves, periculum est ne in perfectam insensibilitatem deveniamus.
Quem não se inquieta com as pequenas quedas, corre perigo de cair numa
insensibilidade universal, que lhe faça perder o horror até às quedas mortais338.
Conforme o atesta o tribunal da Rota, Santa Teresa nunca caiu em nenhuma
falta grave; contudo o Senhor lhe fez ver o lugar que lhe estava reservado
no inferno, não porque ela o tivesse merecido, mas porque se teria
condenado, se não tivesse sido arrancada a tempo, ao estado de tibieza em
que vivera. Por isso o Apóstolo nos faz esta advertência: Não deis entrada ao
demônio339. Ao espírito das trevas basta-lhe que comecemos a abrir-lhe a
porta do nosso coração, deixando entrar nele sem escrúpulo faltas leves;
porque depois ele a saberá abrir de par em par por faltas graves. Cassiano
escreveu: Quando algum cai, não imagineis que ele tenha chegado de repente
à sua ruína340. Não, quando soubermos que alguma pessoa, dada à
vida espiritual, sucumbira enfim, não pensemos que o demônio a tenha lançado
subitamente no abismo do mal: primeiro a fez cair no estado de tibieza
e dali no precipício da inimizade de Deus. Assim, S. João Crisóstomo afirma
ter conhecido muitas pessoas, adornadas de todas as virtudes, mas que,
vindo a cair na tibieza, depois se precipitaram num abismo de vícios341.
Conta-se nas crônicas da Ordem de Santa Teresa que a venerável irmã
Ana da Encarnação vira um dia uma alma condenada, que ela primeiro tivera
por santa; viam-se-lhe unidos ao rosto muitos animais pequenos, imagens
das numerosas faltas que na sua vida tinha cometido e de que não se havia
importado. Alguns desses animálculos lhe diziam: “Foi por nós que começaste”;
outros enfim: “Foi por nós que te perdeste”. Ao bispo de Laodicéia mandou
dizer o Senhor: Conheço as tuas obras, e que não és frio nem quente342.
Tal é o estado dum tíbio, — nem frio, nem quente. Homem tíbio, diz Menóquio,
é o que não ousa, de propósito deliberado, ofender a Deus mortalmente,
mas que é negligente em se aperfeiçoar; por aí dá fácil entrada a todas as
paixões343.
Um padre tíbio não é ainda manifestamente frio, porque não comete
deliberadamente pecados mortais; mas afroixa em tender para a perfeição, a
que o seu estado o obriga; não lança conta aos pecados veniais, e cada dia
os comete em grande número sem escrúpulo: mentiras, intemperanças na
comida e na bebida, imprecações, Ofício mal recitado, missa mal celebrada,
maledicência contra todos, chocarrices inconvenientes. Vive na dissipação,
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no meio dos negócios e prazeres do século; alimenta desejos e apegos perigosos;
cede à vanglória, ao respeito humano, aos melindres e ao amor próprio;
não pode suportar a menor contrariedade, a menor palavra que o humilhe;
vive sem oração e sem devoção.
O Pe. Alvarez de Paz, falando dos defeitos e faltas da alma tíbia, exprime-
se assim: O tíbio assemelha-se a um doente dominado de muitas moléstias
pequenas que, sem lhe darem a morte por si mesmas, não lhe deixando
nenhum descanso, acabam por lançá-lo em tal fraqueza, que ele vem a ser
atacado por um mal grave, isto é, por uma tentação a que não pode resistir,
e então a sua queda é profunda344.
Eis por que o Senhor, continuando a falar do tíbio, lhe diz: Oxalá fôras
frio ou quente! Mas porque és tíbio, e nem frio nem quente, apresso-me a
lançar-te da minha boca. O que tem a desgraça de jazer no estado de tibieza,
medite bem estas palavras e trema345.
Antes eu quereria, diz o Senhor, que fosses frio, isto é, privado da graça346;
porque haveria mais esperança para ti de saíres desse miserável estado,
do que se permaneceres nele, onde ficas mais exposto a cair em vícios
graves, sem esperança de emenda. É assim que Cornélio A-Lápide explica
esta passagem. Segundo S. Bernardo347, é mais fácil converter um leigo vicioso,
que um eclesiástico tíbio; e Pereira ajunta que é mais fácil converter um
infiel, que fazer sair um cristão da tibieza348.
E de fato, Cassiano afirma ter visto muitos pecadores a darem-se a Deus
com fervor, mas nunca uma alma tíbia349. S. Gregório não perde a esperança
a respeito dum pecador não convertido, mas nada espera dum convertido
que, depois de se ter dado a Deus com fervor, caiu na tibieza. Eis as suas
palavras: “O que é frio, sem ter sido tíbio antes, deixa esperança; o tíbio
porém não a deixa: porque pode esperar-se a conversão duma alma, que se
encontra atualmente em estado de pecado; mas a que, depois da sua conversão,
cai na tibieza, essa tira-nos a esperança de vermos voltar para Deus,
no caso de se separar dele pelo pecado350.
Em suma, a tibieza é um mal quase incurável e desesperado. Eis a
razão: para se poder evitar qualquer perigo, é necessário conhecê-lo; ora, o
tíbio está engolfado numa tal obscuridade, que não chega mesmo a conhecer
o perigo em que se encontra. A tibieza é como a febre ética que mal se
faz sentir. As faltas habituais em que o tíbio cai escapam-lhe à vista. As faltas
graves, diz S. Gregório, por isso mesmo que se fazem conhecer melhor, corrigem-
se mais depressa; mas as leves olham-se como nada, e continua-se a
cometê-las; é assim que o homem se acostuma a desprezar as coisas pequenas,
chegando por isso facilmente as desprezar também as grandes351.
Além disto, o pecado mortal causa sempre um certo horror, mesmo ao pecador
habitudinário; mas, à alma tíbia, as suas imperfeições, os seus afetos
desordenados, a sua dissipação, o seu apego ao prazer e à estima própria,
nenhum horror lhe inspiram; e contudo essas pequenas faltas são para ela
mais perigosas, pois que a conduzem à ruína, sem ela dar por isso; é o que
nota o Pe. Alvarez de Paz352.
Dali esta célebre máxima de S. João Crisóstomo, — que “em certo sentido,
devemos evitar com mais cuidado as faltas leves que as graves”353. E a
razão que o Santo dá é nós termos naturalmente horror às faltas graves, ao
passo que as leves desprezamo-las, e por isso elas em breve se tornam
graves. O pior é que as pequenas infidelidades, que se desprezam, tornam o
homem pouco atento aos interesses da sua alma, e fazem que, uma vez
lançado no hábito de não cuidar das faltas leves, venha a negligenciar também
as mais graves.
É a razão porque o Senhor nos Cânticos nos dá este aviso: Caçai as
raposas pequenas que assolam a nossa vinha; porque a nossa vinha está
em flor354.. Notai neste texto a palavra raposas = Vulpes; não nos diz o Senhor
que cacemos os leões ou os tigres, mas as raposas. As raposas devastam as
vinhas, pelas escavações numerosas, que fazem secar as raízes; dum modo
semelhante, as faltas habituais extinguem a devoção e os bons desejos, que
são as raízes da vida espiritual.
Ajunta o texto — parvulas: caçai as raposas pequenas; — e porque não
as grandes? É que das pequenas receia-me menos, e no entanto elas muitas
vezes causam maior mal que as grandes; porque, como observa o Pe. Alvarez
de Paz, as faltas pequenas, de que não se faz caso, impedem a chuva das
graças divinas, sem as quais a alma permanece estéril, e acaba por se perder355.
Diz ainda o Espírito Santo: Porque a nossa vinha está em flor. Que fazem
as faltas veniais multiplicadas, que não se aborrecem? Devoram as flores,
isto é, abafam os bons desejos de adiantar na perfeição; e, desde que
estes desejos venham a faltar, só se andará para trás, até que se caia nalgum
precipício, donde só com grande dificuldade se possa sair.
Terminemos a explicação do citado texto do Apocalipse. Mas porque
sois tíbio, começarei a lançar-vos da minha boca. Quando uma bebida é fria
ou quente, toma-se com prazer; mas, se é tépida, custa a tomar, porque
provoca vômitos. É por isso que o Senhor faz esta ameaça ao tíbio: vou começar
a lançar-te da minha boca, palavras que Menóquio comenta assim:
Começa o tíbio a ser vomitado, quando, permanecendo na sua tibieza, começa
a desgostar a Deus, até que enfim seja do todo rejeitado por ele no
momento da morte, e para sempre separado de Jesus Cristo356.
Tal é o perigo que corre o tíbio de ser lançado, isto é, abandonado de
Deus, sem esperança de regresso. É o que se significa pelo vômito, pois que
se tem horror de tornar a ingerir o que uma vez se vomitou. É a explicação de
Cornélio A-Lápide357.
Como é que o Senhor começa a vomitar um sacerdote tíbio? Cessa de
lhe fazer os seus convites amorosos, e é o que significa propriamente ser
vomitado da boca de Deus; retira-lhe as consolações interiores, os santos
desejos, de modo que esse desgraçado se encontra privado de unção espiritual.
Irá para a oração, mas com aborrecimento, dissipação e tédio; assim,
pouco e pouco será levado a deixá-la. Depois nem mesmo se recomendará a
Deus, e, sem oração, cada vez se tornará mais miserável, irá de mal a pior.
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Celebrará a missa, recitará o Ofício, mas com mais detrimento do que fruto;
fará tudo à sobreposse, por força ou sem devoção. Esmagareis as azeitonas
e não nos podereis ungir com azeite, diz o Senhor358: quer dizer, que no meio
dos exercícios mais próprios para produzirem o azeite da devoção, vós
permanecereis privado de toda a unção. Celebrar a missa, recitar o Ofício,
pregar, ouvir confissões, assistir aos moribundos, tomar parte nos funerais,
— são exercícios que deviam aumentar o fervor; apesar de tudo isso,
permanecereis árido, sem paz, dissipado, vítima de mil tentações. Eis como
Deus começa a vomitar o tíbio359.