Julho 26, 2009 escrito por admin
Capítulo  Primeiro: o "status quaestionis"
Nos últimos meses, na  Itália, viu-se ressurgir o debate sobre o Concílio Vaticano II e sua  interpretação graças a duas publicações importantes, dois livros que  adotam posições opostas. O primeiro é O Concílio Ecumênico Vaticano  II ― Contraponto para sua  história1,  obra que reúne as intervenções de Mons. Agostino Marchetto, atual  secretário do Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e  Itinerantes, a respeito da interpretação dos textos conciliares. O  segundo é a Breve História do Concílio Vaticano II2,  um resumo da famosa História do Concílio Vaticano II em  cinco volumes, do prof. Giuseppe Alberigo, chefe do Instituto de  Ciências religiosas de Bolonha. 
Por que  interessar-nos pela publicação das enésimas obras sobre o Concílio  Vaticano II? Pelo fato desses dois textos constituírem uma espécie de  manifesto das duas posições opostas sobre o Concílio, oposição  abertamente reconhecida pelos próprios autores, que não hesitaram a  fazer críticas recíprocas. 
A linha da "escola"  dossetiana de Bolonha, que se impõe um pouco em todo o mundo católico e  não católico, é bem conhecida; ela vê no Concílio uma nova Pentecostes  para a Igreja, uma nova passagem do Espírito Santo, que teria feito a  Igreja reencontrar a autenticidade da mensagem cristã, perdida ao longo  dos séculos3.  Nessa perspectiva, o Concílio teria moldado um processo de renovação,  de modernização (aggionarmento), de abertura ao mundo nunca  vista, na medida em que apaga os anos de oposição obscurantista da  Igreja em relação ao mundo moderno. Um acontecimento, portanto, em  descontinuidade com o passado, cheio de novidades radicais, e também um  acontecimento que marcou o início de um processo de renovação que não  deve se limitar apenas à aplicação exclusiva dos decretos conciliares, e  sim incitar a continuação do processo de modernização que o Concílio  iniciou. É a célebre fidelidade ao "espírito do Concílio", isto é,  fidelidade ao ideal de aggionarmento contínuo.
A afirmação do prof.  Alberigo a esse respeito é muito clara: "A prioridade do "concílio", na  medida em que é um acontecimento que reuniu uma assembléia de  mais de dois mil bispos, aparece mais forte mesmo em relação a suas  decisões, que não podem ser lidas como regras frias e abstratas, mas são  como uma expressão e um prolongamento do próprio acontecimento4.
Essa teoria de um novo  início na Igreja é a justo título atacada por Mons. Marchetto: "Se, na  Igreja o "acontecimento" não é assim tão importante e torna-se uma  ruptura, uma novidade absoluta, o nascimento de uma nova Igreja, uma  revolução copérnica, a passagem para um outro Catolicismo... essa  perspectiva não poderá nem deverá ser aceita, precisamente por causa da  especificidade católica"5.  
Aprovamos o princípio  segundo o qual, no ensino da Igreja, não pode haver realmente nada de  novo, porque a Igreja, como magistralmente ensina São Vicente de Lérins,  "na sábia fidelidade às antigas doutrinas, só procura, com extremo  zelo, fazer o seguinte: aperfeiçoar e purificar o que ela recebeu dos  antigos em forma de esboço; consolidar e reforçar o que já foi exprimido  com precisão; guardar o que já foi confirmado e definido". Entretanto, é  necessário fazer no mínimo uma crítica precisa em relação à posição de  Marchetto, saudada com entusiasmo pelo cardeal Ruini, e compartilhada ao  mesmo tempo por João Paulo II e pelo atual Pontífice, todos os dois  partidários de uma leitura do Concílio à luz da Tradição". 
Mons. Marchetto acusa  diversas vezes a linha de interpretação da escola de Bolonha de ser  "ideológica", isto é, de ler o Concílio segundo o critério preconcebido  do acontecimento em ruptura e em descontinuidade com o passado. Alberigo  e seus colaboradores detêm-se arbitrariamente nos textos do Concílio  que dão mais importância ao momento da novidade, esquecendo, em  contrapartida, aqueles que manifestam a continuidade com a Tradição6.  Nessa perspectiva, Mons. Marchetto opõe a sua linha de interpretação ― na sua opinião, mais fiel  às intenções dos próprios padres conciliares ― que considera o Concílio  como um todo7.  Nessa perspectiva, compreender-se-ia que, nos textos conciliares,  "houve um aggiornamento... a coexistência de nova et vetera  (coisas novas e antigas), de fidelidade e de abertura, como o  demonstram, além do mais, todos os textos aprovados no Concílio"8.    
Tal afirmação em si é  problemática, pois é justamente sobre as nova que se coloca a  questão. De nada serve demonstrar que há textos em continuidade com o  ensino de sempre (o que ninguém jamais discutiu); o problema, ao  contrário é a presença de elementos novos e ilegítimos que provêm do  pensamento moderno, condenado diversas vezes e não de um aprofundamento  do depositum fidei. Mas este problema, só este, já  mereceria ser tratado à parte, e já foi objeto de um considerável número  de estudos. 
Dizíamos que a escola de  Mons. Marchetto acusa a escola de Bolonha de ideologismo. Mas num certo  sentido, é o próprio Mons. Marchetto que cai, por sua vez, numa espécie  de ideologismo, ao afirmar: "O acontecimento, portanto, é um sínodo  ecumênico..., portanto não há que considerar como um preconceito o fato  de analisá-lo como tal, a partir do que ele é para a fé católica, mesmo  com seu caráter próprio, que não pode contradizer o que os outros  Concílios ecumênicos definiram"9.
Com essa afirmação, Mons.  Marchetto pressupõe o que deveria ser demonstrado, isto é, que o  Concílio Vaticano II goza da infalibilidade que caracterizou os  Concílios ecumênicos precedentes e, conseqüentemente, que ele não pode  conter em si nada que esteja em contradição não apenas com as definições  dos outros Concílios, mas também com todo o Magistério ordinário  precedente. Eis o ponto determinante, a viga mestra que sustenta toda a  argumentação. 
Essa questão é de uma  grande importância e não pode ser evitada; ela aflige a consciência de  muitos católicos, que fazem da fidelidade ao Concílio Vaticano II um  problema de consciência, e consideram que a presença de elementos  discutíveis nos textos do Concílio poderia de certo modo ferir  gravemente o dogma da infalibilidade do Papa, ou colocar em discussão a  continuidade do ensino da Igreja. A acuidade com a qual esse problema é  sentido manifesta-se igualmente no fato de que o livro de mons.  Marchetto já foi reeditado apenas alguns meses depois de sua primeira  publicação. 
Claro que a questão central  é a do valor dos documentos do Concílio. A intenção de nossa  intervenção é de responder as perguntas mais freqüentes: Os ensinamentos  de um Concílio ecumênico (no caso, o Vaticano II) gozam ipso facto  de infalibilidade? Quais são as condições para que um ensinamento seja  infalível? É possível discutir um pronunciamento oficial da hierarquia  católica? 
A conclusão a que chegamos,  e que tentaremos apresentar, articula-se do seguinte modo: 
O Concílio Vaticano II: 
1. Quanto ao valor dos  documentos: pode ser discutido; 
2. Quanto ao conteúdo  dos documentos: deve ser discutido; 
3. Quanto às condições  atuais: deve ser colocado entre parênteses. 
Capítulo Segundo: quaestio  de quibus numquam fallitu (da Infalibilidade)
Interrogar-se sobre o valor  dos documentos do Concílio implica fazer uma reflexão mais geral de  potestate Magisterii (sobre o poder do Magistério). 
Hoje, no mundo católico e  no mundo não católico, são difundidas duas posições extremas, todas as  duas errôneas e perigosas; posições que podemos considerar como as duas  objeções principais a nossa tese: a dos infalibilistas e a dos que  limitam a infalibilidade às decisões ex cathedra. 
[Nota metodológica  importante: construímos nossa argumentação, nesse segundo capítulo, de  acordo com o esquema clássico da Summa Theologiae, cuja clareza  lógica e explicativa é inigualável. Apresentamos os videtur quod,  ou seja, as possíveis objeções à tese (seguidas de um número), que  serão resolvidas no final. Entre esses dois pontos ― objeções e resoluções ― desenvolveremos o corpus  da argumentação]. 
2.1 Videtur quod 
Objeção 1: Há aqueles que poderíamos  denominar de "infalibilistas", que consideram que nenhuma declaração  oficial pode ser discutida, de modo nenhum, e com razão ainda mais forte  se tal declaração for expressa da forma extraordinária que é um  Concílio. Eles se referem freqüentemente à obediência cega inaciana,  segundo a célebre expressão perinde ac cadaver, ou citam a décima  terceira regra do sentire cum Ecclesia tirada dos Exercícios de  Santo Inácio: "Para não nos afastarmos em nada da verdade, devemos  sempre estar dispostos a crer que o que nos parece branco é preto, se a  Igreja hierárquica assim o determinar; pois é necessário crer que entre  Jesus Cristo, Nosso Senhor, que é o Esposo, e a Igreja, que é sua  Esposa, há um só Espírito que nos governa e dirige para a salvação de  nossas almas. Porque pelo mesmo Espírito e Senhor nosso, que deu os dez  Mandamentos, é regida e governada a nossa Santa Madre Igreja"10.  
É nessa mesma linha que  está a afirmação categórica de Pio XII: "Que se em seus Atos, os  Soberanos Pontífices fizerem um julgamento sobre uma questão até então  discutida, fica então patente para todos que, conforme o espírito e a  vontade dos próprios Soberanos Pontífices, essa questão não poderá mais  ser tida como questão livre entre teólogos"11.  
Chegando a esse ponto,  aparecem apenas duas soluções: ou alinhar-se com as declarações dos  Pontífices [conciliares], considerando-as em continuidade com o ensino  dos predecessores, mesmo que o contrário seja evidente12,  ou considerar que a sede [de Pedro] está vacante. 
Objeção 2: Há aqueles que limitam a  infalibilidade às decisões ex cathedra, deixando total liberdade  de julgamento quanto às outras declarações. Para eles, em geral, a  infalibilidade concerne exclusivamente o papa no ato de definir uma  doutrina em matéria de fé e de moral, isto é, quando o objeto está  diretamente ligado às verdades reveladas por Deus, claramente ligadas à  Revelação (de fide) e/ou quando o Papa fala solenemente. O texto  chave de referência é o do Concílio Vaticano I: "o Pontífice Romano,  quando fala ex cathedra, isto é, quando, cumprindo seu ofício de  pastor e de doutor de todos os cristãos, define em virtude de sua  suprema autoridade apostólica, que uma doutrina em matéria de fé ou de  moral deve ser admitida por toda a Igreja, goza... dessa infalibilidade  de que o Divino Redentor quis que sua Igreja fosse dotada, quando ela  define uma doutrina concernente à fé ou na moral"13.  Conseqüentemente, as outras declarações, isto é, tanto aquelas que não  têm ligação direta com a dogmática e a moral, quanto as que emanam de  encíclicas, condenações, etc., só teriam algum caráter obrigatório  temporariamente. 
Essa posição pode ser  encontrada em diversos níveis, do simples fiel à alta hierarquia,  especialmente entre os defensores do Concílio Vaticano II. Estes, na  verdade, apesar de constatarem oposições teoricamente insolúveis entre  os textos do Vaticano II e certos ensinamentos dos Papas precedentes,  especialmente os textos que dizem respeito a condenações de diferentes  aspectos da modernidade (cf. a célebre afirmação do então cardeal  Ratzinger sobre a Gaudium et Spes, qualificando-a de  "contra-syllabus"), consideram essas condenações como declarações  passíveis de revisão, nas quais a Igreja não engajou a plenitude de sua  autoridade. 
2.2 Sed Contra
1- A infalível garantia da  assistência divina não está limitada apenas aos atos do Magistério  solene; ela estende-se também ao Magistério ordinário, sem entretanto  engajar nem assegurar da mesma maneira todos os atos14.  
2- Para a infalibilidade do  papa e do Magistério ordinário da Igreja "é necessário que a verdade  ensinada seja proposta como já definida ou como tendo sido sempre crida  ou admitida pela Igreja, ou como atestada pelo acordo unânime e  constante dos teólogos como verdade católica"15.
2.2.1 Verdade e Autoridade
Parece-nos oportuno começar  por uma consideração geral. A crise atual contribuiu para o surgimento  de uma mentalidade muito difundida no mundo católico, mas que não é uma  mentalidade católica. Referimo-nos a essa idéia banalizada de que a  obediência ao Papa e aos bispos deveria ser cega, incondicional, isto é,  justificada pela autoridade que eles representam, independentemente do  que eles ensinam. Tal mentalidade deixa transparecer um pensamento  legalista, segundo o qual uma afirmação seria verdadeira por ter sido  pronunciada por uma autoridade legítima, e não por causa de sua verdade  intrínseca. Assim, seria a autoridade que criaria o direito e a verdade,  e ela não limitar-se-ia a reconhecê-los, guardá-los e ensiná-los. 
Esta posição pode ser  resumida da seguinte maneira: "o próprio do catolicismo não é a verdade  comprovada e mantida pela autoridade, ao contrário, é a autoridade,  fonte de uma "verdade" que não tem valor em si, mas no ditame que a  consagra"16.  Mas essa posição, repetimo-lo, não é a posição da Igreja católica, que  recebeu de Nosso Senhor um ensinamento completamente diferente. O  próprio Jesus quis ressaltar que "Minha doutrina não vem de Mim, mas  d'Aquele que Me enviou. Se alguém quiser fazer a vontade d'Ele  reconhecerá se minha doutrina vem de Deus, ou se falo de Mim mesmo" (Jo.  7, 16-17). E São Paulo, seu vas electionis, não diz outra coisa:  "Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um evangelho  diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema!" (Gal. 1, 8).  Enfim, o texto de Pastor Aeternus, que define a infalibilidade do  Papa reforça a idéia de que "O Espírito Santo foi prometido aos  sucessores de Pedro não para que eles proponham, por Sua revelação, uma  nova doutrina, mas para que guardem religiosamente e ensinem fielmente,  graças à Sua assistência, a revelação transmitida pelos Apóstolos, isto  é, o depósito de fé"17.  
A perspectiva católica é  simples: a autoridade está a serviço da verdade. Portanto, de modo algum  é possível exigir obediência quando o ensino proposto é contrário à  verdade. Isso não significa que o julgamento sobre a verdade seja  deixado por conta do livre-arbítrio de cada um. Entre os dois extremos  (obediência absoluta e livre-arbítrio) há uma gradação, que será objeto  de nossa análise logo a seguir. Mas antes é necessário repetir que a  autoridade existe na Igreja como um meio, e não como um fim. Na verdade,  é justamente por causa dessa grande confusão sobre a relação entre  autoridade e verdade que os "revolucionários" puderam introduzir os  germes da crise atual para a corrente sanguínea católica, sem que os  "anticorpos" reagissem à terrível infecção. Abusando da obediência para  impor suas falsas doutrinas, a cada tentativa que alguém fizesse para  manifestar seu desacordo, utilizaram a acusação de desobediência para  isolar o pobre infeliz e assim, quebrar toda e qualquer resistência. É  este mau uso da virtude de obediência que Mons. Lefebvre magistralmente  definiu como "o golpe de mestre de Satanás". 
2.2.2 Magistério infalível e  Magistério canônico18   
O Magistério da Igreja,  cujo poder reside ou junto ao Pontífice isoladamente ou junto ao  episcopado cum Petro et sub Petro, não se expressa sempre no  mesmo nível. 
O grau mais alto do  Magistério compreende a Revelação divina que Jesus confiou à sua Igreja  para que ela a guarde e transmita fielmente. Nesse nível, a  infalibilidade do Magistério está garantida. 
Acompanhemos passo a passo a  afirmação de Billot: "O poder infalível do magistério tem como  objeto primário coisas de fé e de costumes que estão contidas  formalmente no depósito da revelação católica, de modo explícito ou  implícito"19.  
O teólogo jesuíta considera  o objeto (quae continentur in deposito catholicae revelationis),  isto é, tudo que o Cristo ensinou aos Apóstolos e tudo o que os  próprios Apóstolos aprenderam do Espírito Santo, e que nos é dado tanto  pelas Escrituras quanto pela Tradição não escrita. Isso significa que  neste nível, a infalibilidade do Magistério "estende-se somente às  verdades reveladas por Deus sobrenaturalmente"20.  
"Em segundo lugar, [o poder  infalível do magistério] se estende também a outras verdades não  reveladas em si mesmas, que, no entanto, são requeridas para que o  depósito da revelação seja conservado íntegro, e, nomeadamente, se  estende às numerosas condenações de doutrina e os fatos dogmáticos"21.  Isso significa que Cristo prometeu Sua assistência especial não apenas  para que a Igreja receba e transmita fielmente seu ensinamento, mas  também para que ela o guarde e o desenvolva ao longo dos séculos. Eis  porque o Magistério infalível se estende também às verdades incluídas  nas precedentes, mas não ainda explicitamente enunciadas quoad nos,  e também às proposições a que ele garante a verdade de modo absoluto  (definições infalíveis, mas não dogmáticas), desde que não sejam objeto  de fé divina. 
Nesse ponto o cardeal  Journet faz uma reflexão muito importante e de muitas conseqüências; ele  afirma que, para os três tipos de verdades indicadas acima, o Senhor  Jesus dá a sua Igreja uma assistência especial, uma assistência  absolutamente infalível. Mas o Magistério da Igreja, acrescenta o  cardeal, "não fundamenta, ele condiciona o assentimento  infalível de fé. É esta sua mais alta função, e está absorvida pela  assistência divina"22.  
O Magistério infalível  exerce portanto função de comunicação da verdade revelada; ele é  verdadeira causa segunda, sua ação não fundamenta a infalibilidade do  conteúdo (que é fundamentada em Deus, que não pode nem se enganar nem  nos enganar), mas de certa forma a garante.
Pode-se compreender a  infalibilidade do ensinamento do romano Pontífice quando ele define ex  cathedra uma verdade como sendo revelada, como foi o caso do  Vaticano I. Na verdade, o que o Papa faz é apenas declarar solenemente o  que o próprio Deus revelou por Cristo ou pelos Apóstolos; a obediência  ao Papa é, realmente, a obediência direta ao próprio Deus, e obediência  indireta ao Papa como Seu instrumento e Seu intermediário. 
Os problemas, por assim  dizer, começam em outro nível, que comumente chamamos de "verdades  especulativas secundárias". Esse último adjetivo poderia induzir a um  desagradável equívoco, o de fazer pensar que essas verdades não teriam  importância para a conservação da fé. 
Na verdade, existem muitas  verdades que não pertencem ao depositum fidei mas estão a ele  ligadas (como por exemplo as verdades filosóficas da philosophia  perennis, que teve em Santo Tomás sua mais alta expressão, e que a  Igreja inúmeras vezes mandou que se ensinasse e seguisse). Há também as  verdades ainda não definidas pela Igreja de modo imutável (por exemplo  as conclusões teológicas universalmente ensinadas ou cridas). 
Essas verdades são  garantidas prudencialmente (de maneira diferente que a autoridade  absoluta, que concerne as verdades especulativas primárias) na medida em  que a Igreja não é mais um simples intermediário dos ensinamentos  divinos; "ela age em virtude de seu poder canônico, que promulga o que  convém ou não ensinar e crer, para preservar a inteligência dos fiéis  dos perigos que ameaçam sua fé... Nesse momento, a Igreja não intervém,  como na fé divina, a título de simples condição de nosso assentimento.  Ela própria torna-se fundamento imediato de um assentimento (cujo  fundamento mediato é Deus, que rege a Igreja) que se pode chamar de...  obediência eclesiástica, fé eclesiástica, assentimento religioso,  piedoso assentimento"23.  
Que tipo de obediência,  então, deve-se a esse tipo de Magistério? 
Primeiramente, é preciso  enfatizar que, no seio desse vasto domínio das verdades que gozam de uma  assistência prudencial, há uma diferença decisiva. Existe na verdade  ensinamentos que a Igreja propôs de modo constante e universal, nos  quais ela entende estar utilizando a plenitude de sua autoridade  prudencial. Nesse caso, "não hesitamos em dizer que o Magistério propõe  tais verdades em virtude de uma assistência prática prudencial, que é  realmente e apropriadamente infalível, de sorte que estaremos seguros  da prudência de cada um desses ensinamentos, e portanto, praticamente  seguros da verdade intrínseca, especulativa, de cada um deles"24.  Nesse caso fala-se não de verdade infalível, mas de certeza infalível (infallibilis  securitas). 
Além do mais, há  ensinamentos nos quais a Igreja não entende estar utilizando a  plenitude de sua autoridade prudencial; nesse caso, "diremos que o  Magistério propõe tais ensinamentos de um modo falível"25.  
Disso tudo podemos concluir  o que se segue: no caso do Magistério declarativo, pelo fato que se  obedece propriamente a Deus e à Igreja somente enquanto mediadora, a  obediência devida será de ordem teologal (própria da virtude teologal da  fé). Quanto ao Magistério prudencial, em contrapartida, a obediência  devida depende do grau com o qual o Magistério engaja sua autoridade:  "se o Magistério é natural, a obediência será, por si, natural. Se o  magistério se realiza de um modo analógico e sobrenatural, a virtude de  docilidade e de obediência se realizará, também, de modo analógico e  sobrenatural"26.  
No caso da assistência  prudencial falível, é então possível que o Papa ou uma Congregação  romana se equivoquem. O que deverá ser feito nesse caso? "Será lícito  sentir de modo diferente ... duvidar...; no entanto, não será lícito  contradizer publicamente, em reverência à autoridade sagrada ...; mas  deve-se guardar o silêncio, que é chamado obsequioso"27.  Entretanto, queremos enfatizar que, no caso de perigo próximo para a  fé, mesmo a repreensão pública é necessária28.  
2.3 Solução das  dificuldades
Resposta à objeção 1: O texto de Santo Inácio é  preciso: "Para não nos afastarmos em nada da verdade, devemos sempre  estar dispostos a crer que o que nos parece branco é preto, se a Igreja  hierárquica assim o determinar". O verbo utilizado nos envia  diretamente ao primeiro grau do Magistério, o Magistério infalível.  Vimos de fato que o ato correspondente a tal ensinamento é a obediência  da Fé que adere à verdade revelada por Deus e transmitida pela Igreja em  virtude da própria autoridade Daquele que revelou. 
Essa obediência "cega" do  ponto de vista humano (no sentido de que não se compreende a evidência  racional da verdade relevada) é na realidade esclarecida pela virtude  teologal da Fé, cuja certeza é superior a qualquer evidência intelectual  porque é Deus quem revela. Mas no caso em que a Igreja hierárquica não  pretenda definir nada, tal obediência sobrenatural seria desproporcional  em relação a seu objeto. Repetimos: a obediência deve depender do grau  com o qual o Magistério emprega sua autoridade. Assim fica resolvida a  primeira dificuldade. 
Pode-se raciocinar da mesma  maneira sobre o ensinamento de Pio XII. O próprio Pontífice, de fato,  especifica que o assentimento deve ser dado "segundo a intenção e a  vontade dos Pontífices". Trata-se ainda da importância da intenção  de querer definir alguma coisa ou de engajar o mais alto grau de sua  autoridade. 
Resposta à objeção 2: Respondemos amplamente a  essa objeção no decorrer de nosso texto, quando falamos do Magistério  canônico. Reafirmamos a noção segundo a qual a infalibilidade do  Magistério estende-se além do ensinamento ex cathedra definido  pelo Concílio Vaticano I, nas condições subscritas. Billot afirma com  muita clareza: "Tudo o que, seja através de um juízo solene, seja  através do magistério ordinário e universal, é proposto pela Igreja como  sendo revelado por Deus deve ser crido com fé divina, e quem  resistir com pertinácia incorre em heresia. As demais verdades definidas  pelo mesmo magistério, parece que devem ser cridas com fé  eclesiástica, e não divina"29.  
O ponto chave, que implica  obediência à Fé, é o fato de se ensinar alguma coisa "tamquam a Deo  revelatum". No caso da fé eclesiástica, ao contrário, é necessário,  repetimos mais uma vez, que alguma coisa seja definida. Isso nos remete à  distinção feita acima entre uma assistência prudente falível e uma  assistência prudente infalível. 
Capítulo Terceiro: o  Concilio Vaticano II em questão
Depois de ter esclarecido  os princípios que a reflexão teológica nos oferece, resta ver de que  modo esses princípios são aplicáveis ao Concílio Vaticano II. 
Permitam-nos, antes de mais  nada, colocar em evidência um corolário da argumentação precedente: "O  que acabamos de expor seria aplicável também a um Concílio ecumênico, ao  que comumente é considerado como um ato do magistério extraordinário"? 
Recorremos mais uma vez ao  raciocínio do cardeal Journet: "O poder de dirigir a Igreja universal  reside primeiro no Soberano Pontífice, depois no colégio episcopal unido  a ele; e este poder pode ser exercido ou pelo Soberano Pontífice  exclusivamente, ou por ele e o colégio episcopal solidariamente. O poder  do Soberano Pontífice sozinho e o poder do Soberano Pontífice unido ao  colégio apostólico constituem não dois poderes distintos, mas um só  poder supremo considerado, sob um aspecto, como a cabeça da Igreja  docente onde ele reside integralmente como em sua própria fonte; sob  outro aspecto, concomitantemente como a cabeça e o corpo da Igreja  docente..." 30  
A conseqüência dessa  verdade é que as decisões de um concílio "são peremptórias quando são  pronunciadas em colaboração atual com o Soberano Pontífice, ou  ulteriormente ratificados por ele"31.  
A distinção entre o  ensinamento do Papa seorsim ou simul cum Episcopis  concerne, portanto, a mobilidade de exercício do Magistério (o Chefe  sozinho ou Chefe e todo o corpo docente), e não sua essência. 
O grau de infalibilidade  com que o Magistério se exprime depende portanto da vontade, da intenção  do Papa e dos bispos a ele unidos. Não há coincidência definitiva entre  Magistério extraordinário (no caso presente, um Concílio) e Magistério  infalível.
As duas características  (caráter extraordinário e infalibilidade), na verdade se colocam em dois  níveis qualitativamente diferentes. Enquanto o caráter ordinário ou  extraordinário refere-se à modalidade de expressão do Magistério, a  infalibilidade diz respeito à autoridade que a Igreja pretende engajar  em determinado ensinamento. Imagina-se em geral que quanto mais alto o  nível hierárquico que exprime um ensinamento, mais a autoridade da  Igreja fica comprometida; conseqüentemente o ensinamento do Papa ou o de  um concílio ecumênico comportaria automaticamente a plenitude da  autoridade (infalibilidade) da Igreja. Mas não é assim, pois a  modalidade com que o Magistério se exprime é um elemento importante mas  não decisivo. 
Para haver um ensinamento  infalível, é certamente necessário que seja o Soberano Pontífice que  ensina (sozinho ou através de um Concílio); mas esta condição não é  suficiente. Há na verdade dois outros elementos que condicionam a  autoridade de um ensinamento: a intenção e a matéria tratada.  
Propomos então a seguinte  distinção: 
1. quanto à modalidade,  pode-se ter um Magistério ordinário ou extraordinário. Este último pode  exprimir-se através do caráter extraordinário do Papa (ex cathedra)  ou através de um caráter extraordinário colegial (Concílio ecumênico). 
2. quanto à autoridade  engajada, um ensinamento pode gozar de uma: 
a) infalibilidade absoluta,  
b) prudencial infalível ou 
c) prudencial falível, como  vimos no segundo capítulo, de acordo com a intenção manifestada e a  matéria ensinada. 
Torna-se claro, agora, que o  problema central reside nesses dois elementos: a intenção e a  matéria. 
3.1 A intenção
Quando nos interrogamos  sobre o valor de um documento, é preciso verificar qual a intenção que  tiveram o Papa ou o Concílio no ato de ensinar, intenção que pode se  manifestar ou por fórmulas claríssimas ("Nós definimos, nós  declaramos...), ou sem elas32.  
O fato de que essa intenção  seja um elemento fundamental e determinante do valor de um documento  sempre foi implicitamente admitido, e até mesmo explicitamente ensinado.  Já vimos que os textos teológicos apoiando a adesão ao ensinamento do  Papa, mesmo quando este se exprime de modo ordinário, remetem à questão  de sua intenção. 
Qual é o fundamento dessa  verdade? Porque a referência insistente quanto à intenção de um  ensinamento? 
A resposta a tais perguntas  é de uma importância crucial para quem quer se orientar na crise atual.  Realmente, se é verdade que a Igreja teve que enfrentar períodos mais  ou menos longos de crise, não é menos verdade que o período em vivemos é  de uma gravidade especial. Nas reflexões dos maiores teólogos  católicos, não está mencionado em lugar nenhum o caso em que, durante  quase meio século, o Papa ou um Concílio veiculem erros. Donde a  importância de partirmos de premissas bem fundadas. 
O ponto central a  compreender é que um ensinamento do Papa ou de um Concílio não tem como  conseqüência ipso facto uma obediência incondicional: esta  depende e é proporcional à intenção com que o Magistério pretende  engajar sua autoridade. Vejamos agora como demonstrar isso. 
Para construir nossa  argumentação, partiremos de certos textos da reflexão teológica de S.  Tomás de Aquino. Primeiramente, "intelligendum est Deum operari in  rebus, quod tamen ipsae res propriam habeant operationem".33  A causalidade universal de Deus não suprime a causalidade própria das  criaturas, ao contrário, a sustenta. Por exemplo, é certo que é Deus  quem nos dá o sol ou a chuva, mas isso não invalida a causalidade  física, passível de ser conhecida pela razão humana. 
O mesmo raciocínio deve ser  aplicado nessa causalidade particular que é a liberdade humana. Também  nesse caso, Deus não destrói, mas configura-se como necessário à  liberdade humana e fonte dessa liberdade. Na verdade, o Todo-poderoso  pode dar sem nada perder de seu poder, só ele pode comunicar-se sob  forma de puro dom, e portanto sem tornar-se dependente do dom que faz. A  incompatibilidade aparente que existe na filosofia moderna entre  "todo-poderoso" e "livre" é devida ao fato de que Deus não é mais  considerado como Deus, mas como realidade imanente ao mundo. 
Portanto, para S. Tomás, a  totalidade causativa da Causa primeira não é um fator inibidor e sim um  fator constitutivo da causalidade das causas segundas. Em outros termos:  Deus age de modo que podemos ser realmente a causa de nossas escolhas  precisamente na medida em que nosso ser depende dEle. Conseqüentemente,  se não dependêssemos dEle, que é todo-poderoso, não poderíamos ser  livres, pois é próprio do todo-poderoso ― e somente dEle ― tornar-nos livres. 
O que é preciso reter, na  profunda reflexão de S. Tomás, não minimiza, ao contrário, fundamenta a  causalidade criada (causa segunda), e conserva suas particularidades:  "[a divina Providência] move todos os seres segundo sua condição, de  modo que, sob a moção divina, as causas necessárias produzem seus  efeitos de modo necessário, e as causas contingentes produzem seu efeito  de modo contingente"34.  
Ora, o ser humano é um ser  livre, caracterizado por duas faculdades essenciais, a inteligência e a  vontade, que lhe permitem executar atos humanos, isto é, atos nos quais  ele não é simplesmente causa, mas causa livre. Os atos humanos se  diferenciam dos atos do homem pelo fato de que estes últimos  são executados pelo homem, mas não livremente. No ato humano, por outro  lado, diz-se que o homem sui actus est dominus (é senhor de seus  próprios atos). 
Um texto da Summa contra  Gentiles mostra que os atos humanos não são absolutamente  diminuídos pela ação divina: "O fim último de cada criatura é alcançar a  semelhança divina... Quem age de modo voluntário alcança a semelhança  divina precisamente no fato de agir livremente; vimos que, na verdade  Deus tem um livre-arbítrio (l. I, c. LXXXVIII). Conseqüentemente, o  livre-arbítrio não é subtraído pela Providência"35.
Eis então o ponto central: a  ação providencial "respeita" a ordem criada, e portanto não interfere  na liberdade humana naquilo que ela estabeleceu como pertencente ao  livre-arbítrio humano. 
Ora, o ato humano é sempre  caracterizado por três componentes: o objeto que especifica o  ato, a intenção daquele que age; as circunstâncias nas  quais ele age. Desses três elementos, o que constitui o aspecto formal é  a intenção, portanto ela é o elemento fundamental para julgar a  moralidade de um ato, pois é a intenção que indica tendência em direção  ao fim (motus voluntatis in finem) 36.  
De tudo isso conclui-se  claramente que, onde não houver intenção, não existe ato humano  propriamente dito. 
Aplicando essas  considerações ao domínio teológico, podemos fazer fecundas reflexões. 
Tomemos, por exemplo, o  caso da inspiração da Santa Escritura. Sabe-se que o que distingue  particularmente a perspectiva católica da perspectiva islâmica, é o fato  de que a inspiração divina não substitui de modo algum as faculdades  dos escritores sagrados, o que aconteceria se considerássemos a  inspiração como uma espécie de ditado. Ao contrário, a intervenção  divina pressupõe e utiliza as capacidades humanas dos hagiógrafos.  Reencontramos aqui o princípio tomista segundo o qual a causa primeira  (a inspiração divina) conserva todas as características próprias à causa  segunda (o autor humano), de modo que este último seja, em sua própria  ordem, verdadeira causa. Os escritores sagrados agiram então inteligente  e voluntariamente; seus atos não foram "substituídos" pela intervenção  divina, mas elevados por ela. 
Pensemos agora na ação  sacramental. A Igreja ensina que o ministro do sacramento deve ter a  intenção, mesmo que não seja atual, de fazer o que faz a Igreja, isto é,  ordenar sua ação ao fim para o qual Deus a instituiu. Sem essa  intenção, o sacramento é inválido. Reencontramos claramente o princípio  tomista já enunciado: também na ação sacramental, Deus não pede um ato  mecânico, mas um ato humano, caracterizado pela intenção. 
Se este princípio é válido  para o munus sanctificandi, não se compreende porque ele não  deveria ser válido para o munus docendi. 
A transmissão, o ensino da  fé é feito por ministros ordenados para esse fim. Ora, esses ministros  são seres humanos e guardam suas características humanas. Se o Papa ou  um Concílio, no ato de ensinar, não têm a intenção de ensinar alguma  coisa como tendo sido revelada por Jesus Cristo, como tendo sido sempre  ensinada pela Igreja, ou não pretendam usar a plenitude de sua  autoridade (infallibilis securitas), não vemos porque a  assistência divina deveria substituir a mediação humana, querida por  Deus como humana. 
Conseqüentemente, é só no  caso em que o Pontífice pretende exercer a plenitude do Magistério que  lhe é garantida essa infalibilidade ativa e passiva in docendo, que  lhe permite não apenas ser guiado na definição de uma verdade, mas  também ser corrigido e detido in extremis no caso em que se  aproxime do caminho que leva ao ensinamento de uma heresia. 
É o bem conhecido princípio  tomista: gratia non tollit naturam, sed perficit (a graça não  destrói a natureza, mas aperfeiçoa-a). Em sua assistência à Igreja,  Deus não substitui as mediações, Ele as supõe na integridade de suas  faculdades e as eleva acima das simples possibilidades humanas. 
Essas mediações, à medida  que são livres, devem entretanto querer colaborar com a graça divina,  predispondo tudo que lhe é próprio para poder receber a plenitude da  assistência divina. 
3.2 A matéria
O segundo aspecto  determinante é o que é ensinado: a matéria. 
Num estudo apresentado no  Congresso de Sim Sim Não Não de 2004, o professor Pasqualucci analisou o  texto do segundo Concílio de Nicéia (787), que invalidava o  conciliábulo de Constantinopla de 753, criado ad hoc para aprovar  as teses iconoclastas. 
Nesse texto são formuladas  expressamente as condições necessárias para a validade de um Concílio,  entre as quais figura a "profissão de uma doutrina coerente com os  concílios precedentes"37.  Diante de um Concílio (o de Constantinopla) que tinha entrado em  contradição com os ensinamentos dos Concílios precedentes , a posição  dos padres reunidos em Nicéia foi clara: "Como um Concílio, que não  concorda com os seis Concílios santos e ecumênicos que o precederam,  poderia ser o sétimo?"38.   É interessante observar a lógica dessa passagem: um Concílio é  ortodoxo porque seu conteúdo é ortodoxo e não o inverso. 
A ortodoxia da doutrina,  sua conformidade com o ensinamento constante da Igreja, é portanto a  condição sine qua non da validade de um Concílio (para aprofundar  essa questão, remetemos o leitor à conferência do professor Pasqualluci  publicada em Penser Vatican II quarante ans après. Actes du VIe.  Congrès Théologique de Si Si No No. Rome, Janvier 2004. Courrier de  Rome, 2004, pp. 75-128). 
Esse princípio, que nos  remete ao que afirmamos a respeito do sujeito da relação  autoridade-verdade, manifesta de modo límpido a mens catholica: a  autoridade está ao serviço da verdade; ela é um meio para que a verdade  seja comunicada. A autoridade, dito de outro modo, não cria a verdade,  ela a reconhece, guarda-a e ensina-a. 
O sofisma subjacente a  tantas concepções errôneas da autoridade pode ser enunciado da seguinte  maneira: uma coisa é verdadeira, ela é legítima, porque ela é ensinada  ou proposta pela autoridade. A perspectiva católica, ao contrário, assim  como a de toda sã filosofia, afirma: desde que algo seja verdadeiro e  legítimo, será ensinado e proposto pela autoridade. 
Não são detalhes sem  importância: a relação essencial encontra-se invertida, pois a razão de  ser da autoridade é sua função instrumental em relação a uma ordem  objetiva pré-existente. É bom repetir: a autoridade legítima é o meio, e  não o fim. É por essa razão que a teologia afirma que o Magistério é a  norma próxima da fé; o que significa "norma próxima", na verdade, se não  há uma norma longínqua, mais alta, a que ela deverá conformar-se? 
3.3 Conteúdo e intenção do  Concílio Vaticano II
No caso do Concílio  Vaticano II, é possível realizar o seguinte "percurso": a partir da  constatação objetiva de proposições errôneas nos textos, pode-se  remontar ao desvio da própria intenção do Concílio. A deformidade do  conteúdo em relação ao Magistério infalível (absoluto ou prudentialiter)  é ratio cognoscendi da deformidade da intenção. Muito já foi  dito e escrito sobre esses dois aspectos. Remetemos portanto os leitores  aos estudos correspondentes, que trazem à luz tanto os aspectos  problemáticos de textos conciliares quanto a anomalia das intenções  declaradas pelos papas do Concílio em seus discursos antes, durante e  depois do Concílio. Resta-nos aqui apenas lembrar o que esses estudos  demonstraram, com abundância de documentação:
I. O Concílio Vaticano II  não tem uma intenção conforme à da Igreja. Na verdade, ele não foi  convocado para defender e desenvolver o depositum nem condenar os  erros modernos, e sim com outras finalidades, estranhas à natureza da  Igreja. Eis as intenções de João XXIII: 
I.I. O aggionarmento: "A finalidade do Concílio  não é a discussão desse ou daquele tema da doutrina fundamental da  Igreja", mas estudar e expor a doutrina "através de formas de estudo e  da formulação do pensamento contemporâneo" (Joannes XXIII PP., Discours  d'Ouverture de la première session, 11 octobre 1962, in Les  documents du Concile Oecuménique Vatican II, Padoue, Gregoriana  Editrice, 1967, pp. 1078-1079). 
I.2. O ecumenismo  terrestre da não conversão: "Eis a proposta do II°  Concílio Ecumênico do Vaticano, [que]... prepara de algum modo e aplaina  a via em direção à unidade do gênero humano, fundamento necessário para  fazer que a cidade terrestre se torne à imagem da cidade celeste (Idem,  p. 1082). 
I.3. A não condenação  dos erros: "A  Esposa do Cristo prefere recorrer ao remédio da misericórdia a brandir  as armas da severidade. Ela estima que, ao invés de condenar, ela  responde melhor às necessidades de nossa época, colocando em evidência  as riquezas de sua doutrina" (Ibidem, p.1079). O que Paulo VI  disse é ainda mais claro: 
I.4. A autoconsciência  da Igreja: "Parece-nos  que chegou a hora em que a verdade que diz respeito à Igreja do Cristo  deva ser cada vez mais explorada, ordenada e expressa, não talvez  através dessas fórmulas solenes chamadas definições dogmáticas, mas  através de declarações pelas quais a Igreja diz a si própria, num  ensinamento mais explícito e autorizado, o que ela pensa de si mesma" (Paulus  VI PP., Discours, d'Ouverture de la deuxième session, 29 septembre  1963, in Les documents du Concile Oecuménique Vatican II,  cit., p. 1095). 
I.5. A intenção  ecumênica: "A  convocação de Concílio... tende a uma ecumenicidade que gostaria de ser  total, universal" (Ibidem, p. 1098). 
I.6. Diálogo com o mundo  contemporâneo: "Que o  mundo o saiba: a Igreja o vê com uma profunda compreensão, com uma  verdadeira admiração, sinceramente disposta não a subjugá-lo, mas a  servi-lo; não a depreciá-lo, mas fazer crescer sua dignidade; não a  condená-lo, mas a apoiá-lo e salvá-lo" (Ibidem, p. 1100). 
Todas essas intenções  declaradas não podem de modo algum engajar a plenitude de autoridade da  Igreja, que recebeu uma missão completamente diferente de Nosso Senhor  Jesus Cristo. Eis porque, diante dos textos conciliares, é preciso  seguir as indicações do próprio secretariado geral do Concílio (16 de  novembro de 1964): "Dado o costume geral dos concílios e a finalidade  pastoral do Concílio atual, este define que somente devem ser  considerados como sendo da Igreja os pontos referentes à fé e à moral,  claramente declarados por ele. Quanto aos outros pontos propostos pelo  Concílio, sendo um ensinamento do Magistério supremo da Igreja, todos os  fiéis devem recebê-los e compreendê-los segundo o próprio espírito  do Concílio, como resulta tanto da matéria tratada quanto da maneira  pela qual ele se exprime, segundo as regras da interpretação  teológica". 
Conclui-se de tudo isso que  o Concílio Vaticano II deve ser considerado como assistido  prudencialmente pelo Santo Espírito, mas não segundo a infaillibilis  securitas; e isso, porque o Concílio não tem a intenção de definir o  que quer que seja , nem em relação à Revelação, nem em relação às  conclusões teológicas. Além do mais, não há a menor certeza "da  verdade intrínseca, especulativa" de cada um dos ensinamentos do  Concílio. 
E há um segundo aspecto: 
II. Certos ensinamentos do  Concílio Vaticano II não estão de acordo com o Magistério infalível da  Igreja; eles se situam  até freqüentemente numa linha oposta ao Magistério precedente. É o  caso, por exemplo, do ensinamento sobre a liberdade religiosa, sobre a  relação Igreja-Estado, sobre o ecumenismo. 
CONCLUSÃO
Retomemos ponto por ponto a  tese que apresentamos no início deste estudo. 
Primeiramente afirmamos que  o Concílio Vaticano II, quanto ao valor dos documentos, pode  ser colocado em discussão e isso se deve às considerações feitas  sobre a intenção do próprio Concílio. Contrariamente à afirmação de  Monsenhor Marchetto, o Concílio não teve a intenção de engajar a  plenitude da autoridade magisterial ou ao menos ele não fez isso nos  pontos mais controvertidos. 
As posições sobre a  liberdade religiosa, por exemplo, ou sobre o ecumenismo, são  apresentadas pelo Concílio como "verdades" adaptadas ao contexto  cultural de hoje em dia. Portanto, elas não concernem, como dizia o  cardeal Journet, "o que convém ou não ensinar e crer, se quisermos  preservar a inteligência dos fiéis dos perigos que ameaçam sua fé". Ao  contrário, concernem o que se deve pensar para melhor dialogar com o  mundo contemporâneo; domínio que não engaja a plenitude da autoridade  magisterial. 
Monsenhor Marchetto (cf.  SSNN 146 I ª. parte desse artigo) pressupõe então uma plenitude de  autoridade que não existe.
Ele certamente possui o  mérito de se ter oposto ao monopólio do prof. Alberigo e do Instituto de  Bolonha, mas sua "solução", na realidade, não resolve nada, porque ela  recusa a priori uma análise dos conteúdos problemáticos dos documentos  conciliares. 
A seguir, quanto ao  conteúdo dos documentos, o Concílio deve ser colocado em discussão.  
Se na realidade a ausência  de intenção de engajar a plenitude da autoridade magisterial deixa  aberta a possibilidade de haver erro, a constatação dos erros presentes  nos textos constitui, nós vimos, um motivo suficiente para se colocar em  discussão as partes problemáticas do Concílio. 
Não é possível invocar uma  leitura do Concílio segundo a Tradição se, além do mais, constata-se a  presença de elementos que parecem contrários a essa Tradição. 
Muito provavelmente, o  problema é saber em que consiste essa Tradição, ou seja, saber se ela é  considerada como depositum transmitido e desenvolvido ou se ela é  compreendida de acordo com a acepção progressista, que a associa à  mudança, mesmo no "essentialibus". 
Face às afirmações  conciliares que constituíram matéria para as condenações repetidas pelo  passado, aplica-se o princípio: contra facta non valet argumentum.  
Enfim, quanto às  condições atuais, os pontos problemáticos  do Concílio devem ser colocados ao menos entre parênteses. 
Essa consideração prática  pode parecer surpreendente; mas na verdade, ela nos parece a mais  adaptada ao momento que estamos vivendo. 
A urgência de um retorno à  sã doutrina não precisa mais de ser demonstrada. Até Roma reconhece essa  urgência, diante do impressionante processo de descristianização por um  lado, e o enfraquecimento do catolicismo que acontece sob nossos olhos,  por outro. Mas o mais freqüente é correr o risco de entrar num beco sem  saída ao tentar abordar a questão do Vaticano II. Faz-se desse Concílio  o que ele não é: o fundamento definitivo de fidelidade à Igreja  católica, tanto para aqueles e são os mais numerosos que o defendem  quanto para aqueles que o criticam. É essa a posição mais arriscada a  paralisar a ação apostólica e desperdiçar energias. 
É necessário, antes de  qualquer outra coisa, reconhecer que esse Concílio não pode ser  considerado do mesmo modo que os Concílios ecumênicos que o precederam,  que definiram dogmas, condenaram heresias, invocaram a plenitude de sua  autoridade para confirmar na fé o povo cristão, protegendo-o dos  perigos. 
Em segundo lugar, é preciso  ter a coragem de reconhecer a falência do Concílio. O que segundo a voz  geral devia ter uma finalidade essencialmente pastoral gerou uma grande  confusão e um grande desvio. Nos textos conciliares, infelizmente, há  "refúgio" para todas as posições, desde as mais progressistas às mais  conservadoras, por causa da incrível ambigüidade dos textos; uma  ambigüidade que ainda permanece voluntariamente conservada. 
Tomemos, a título de  exemplo, o caso do célebre subsistit in da constituição Lumen  Gentium: se o objetivo do Concílio era de expor a fé numa linguagem  mais adaptada à nossa época, e portanto mais compreensível para todos,  por que utilizar tal terminologia? Por que recorrer a uma expressão de  uso pouco corrente, a não ser para poder abrir caminho para as  diferentes interpretações (não ortodoxas) desse texto na fase do  pós-Concílio? O que impedia de dizer mais claramente: "a Igreja do  Cristo é a Igreja católica", levando em consideração o apelo tantas  vezes repetido de se ler o Concílio à luz da Tradição? Assim, esse texto  pode ser interpretado tanto num sentido tradicional quanto num sentido  progressista, dando margem a uma e outra interpretação, tornando-se uma  ocasião de confusão e de discussões sem rumo. 
Há outras passagens,  entretanto, que não podem ser lidas à luz da Tradição, pois constituem  uma absoluta novidade que entra em conflito com o ensino constante dos  Papas precedentes. Os textos consagrados à liberdade religiosa, por  exemplo, estão em contradição com o ensino pontifical que vinha sendo  exposto desde Gregório XVI. 
O Concílio demonstrou, e  continua a demonstrar, que ele não é um ponto de referência seguro para  que possa oferecer uma garantia da totalidade das bases da fé. Seus  documentos escondem erros e equívocos que se tornam mais insidiosos na  medida em que estão fugazmente escondidos no meio de textos que podem  ser considerados, de modo geral, ortodoxos. 
Para o bem da Igreja, é  urgente voltar às fontes seguras da doutrina, aos ensinamentos  garantidos pelo selo do Magistério infalível, sobretudo ali onde ele se  pronunciou sobre os erros de nossa época. 
(Sim Sim Não  Não, nos. 146 e 147)
- 1. A. Marchetto, Il Concilio Ecumênico Vaticano II. Contrapounto per la sua storia, Cité du Vatican, Libreria Editrice Vaticana, 2005.
 - 2. G. Alberigo, Breve storia del Concilio Vaticano II, Bologne, Il Mulino, 2005.
 - 3. Cf. G. Alberigo, Brève histoire..., cit., p.163.
 - 4. Ibidem, p. 12. Ver também essa afirmação do autor, colocada na conclusão do livro, e portanto de sentido mais forte: "Se a impulsão conciliar se fechasse sobre si mesma, isso causaria uma decepção muito grande, frustrando um excepcional movimento de espera e de disponibilidade, uma autêntica ocasião histórica." (p. 176).
 - 5. A. Marchetto, Le Concile Oecuménique Vatican II, cit., p.381.
 - 6. Cf. Ibidem, p. 359.
 - 7. Cf. Ibidem, p.375.
 - 8. Ibidem, p.386.
 - 9. Ibidem.
 - 10. Santo Inácio de Loyola, Exercícios espirituais, parágrafo 365.
 - 11. Pius PP.XII, Humani generis, 12 de agosto de 1950.
 - 12. Lembro-me que um de meus amigos, bastante conhecido na Itália por suas posições conservadoras, respondeu-me um dia, perante as provas de evidentes oposições entre as posições de João Paulo II e as de seus predecessores: "Adoto, em relação às encíclicas de João Paulo II, o comportamento que Dei Filius recomenda diante das oposições aparentes entre a fé e a razão: como não pode haver oposição entre elas, considero que a oposição é apenas aparente, mesmo que por enquanto não se consiga demonstrá-lo".
 - 13. Concílio Vaticano I, Pastor Aeternus, 18 de julho de 1870.
 - 14. Labourdette, Revue Thomiste, 1950, p.38.
 - 15. Dict. De Théologie Catholique, article Infaillibilité du pape, VII, col.1705.
 - 16. L. Méroz, L'Obéissance dans l'Église. Aveugle ou clairvoyante?, Genebra, Claude Martingay, p.39. Note-se que o autor faz essa afirmação para refutá-la em seguida, pois ele não compartilha esse ponto de vista.
 - 17. Concílio Vaticano I, Pastor Aeternus, 18 de julho de l870. Salaverri afirma que o Concílio Vaticano I, apesar de fazê-lo implicitamente, definiu que "o Magistério é tradicional, isto é, instituído não para ensinar novas verdades, mas para guardar, defender e enunciar o depósito de verdade recebido" (I. Salavarri, Sacrae Theologiae Summa, t. I, III, parágrafo 512).
 - 18. O termo "canônico", em relação ao Magistério, não é habitual em teologia. O cardeal Journet o emprega para indicar que, nesse caso, a Igreja utiliza seu poder canônico para ensinar ou condenar qualquer coisa que, mesmo não estando contida na Revelação divina, condiciona sua salvaguarda e sua promulgação.
 - 19. "Potestas infallibilis magisterii pro objecto primario habet res fidei et morum quae in deposito catholicae revelationis formaliter explicite vel formaliter implicite continentur" L. Billot, De Ecclesia Christi, I,th. XVII.
 - 20. B. Bartmann, Manuel de Théologie Dogmatique, II, parágrafo 141.
 - 21. "Secundario vero [potestas infallibilis magisterii] extenditu ad alias etiam veritates in se non revelatas, quae tamen requiruntur ut revelationis depositum integrum custodiatur, et nominatim quidem ad multíplices propositionum censuras et ad facta dogmatica" L. Billot, De Ecclesia Christi, cit.
 - 22. Ibidem, p. 446.
 - 23. Ibidem, p. 454.
 - 24. Ibidem, p. 456.
 - 25. Ibidem.
 - 26. Ibidem, p. 454.
 - 27. "Licebit dissentire... licebit dubitare...; nec tamen pro reverentia auctoritatis sacrae faz erit publice contradicere...; sed silentium servandum est, quod obsequosium vocant" I. Salaverri, Sacrae Theologiae Summa, cit., III, parágrafo 675.
 - 28. Cf. Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, q.XXXIII, a.4, e também Super Epistolam ad Galatas, lect.II.
 - 29. Quidquid ab Ecclesia sive solemni iudicio, sive ordinario et universali magisterio tamquam a Deo revelatum proponitur, fide divina credendum est, et pertinaciter obnitens incurrit haeresim. Caetera vera sed ecclesiastica fice videntur esse credenda L. BILLOT, De Ecclesia Christi, cit., th. XVIII.
 - 30. C. Journet, L'Église du Verbe Incarné, cit., p. 531.
 - 31. C. Journet, L'Église du Verbe Incarné, cit., p. 536.
 - 32. C. Journet, L'Égise du Verbe Incarné, cit., p. 578: "O "sentido" de um ato pontifical, sua intenção de dirimir definitivamente uma questão, pode aparecer com evidência, independentemente de todas as fórmulas convencionais".
 - 33. Summa Theologiae, I, q. CV, a. 5: "é necessário compreender que Deus age nas coisas de modo que estas guardem sua operação própria."
 - 34. Summa Theologiae, I-II, q. X, a.4: "ex causis necessariis per motionem divinam sequuntur effectus ex necessitate; ex causis autem contingentibus sequuntur effectus contingentes".
 - 35. Summa contra Gentiles, I, c. LXXII: "Finis autem ultimus cujiuslibet craturae est ut consequatur divinam similitudinem in hoc quo libere agit; ostensum est enim (1. I,c.LXXXVIII) liberum arbitrium in Deo esse. Non igitur per providentiam subtrahitur voluntatis libertas".
 - 36. Para uma análise detalhada da intentio, cf. Summa Theologie, I-II, q. XII.
 - 37. G. Alberigo, Introdução a Décisions des conciles oecuméniques, Turin, UTET, 1978, p. 34.
 - 38. Cit. In V. Peri: Les Conciles et les Eglises. Recherche historique sur la tradition d'universalité des synodes oecuméniques, Rome, 1965, pp.24-25.
 
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inundado por um mistério de luz que é Deus   e N´Ele vi e ouvi -A ponta da lança como chama que se desprende, toca o eixo da terra, – Ela estremece: montanhas, cidades, vilas e aldeias com os seus moradores são sepultados. - O mar, os rios e as nuvens saem dos seus limites, transbordam, inundam e arrastam consigo num redemoinho, moradias e gente em número que não se pode contar , é a purificação do mundo pelo pecado em que se mergulha. - O ódio, a ambição provocam a guerra destruidora!  - Depois senti no palpitar acelerado do coração e no meu espírito o eco duma voz suave que dizia: – No tempo, uma só Fé, um só Batismo, uma só Igreja, Santa, Católica, Apostólica: - Na eternidade, o Céu! 