O Concílio Vaticano II, uma história nunca escrita (III): Os ‘vota’ os Padres conciliares.
Lançado em 2011 na Itália, a
prestigiosa obra do Professor Roberto de Mattei, intitulada “O Concílio Vaticano
II – Uma história nunca escrita”, chega agora ao público lusófono. A Editora
Caminhos Romanos, detentora dos direitos sobre a versão portuguesa do laureado
livro — Prêmio Acqui Storia 2011 e finalista do Pen Club
Italia — , concedeu ao Fratres in Unum a exclusiva honra de divulgar alguns
excertos deste trabalho que é um verdadeiro marco na historiografia do Concílio
Vaticano II.
***
Como os "cahiers
de doléance" da Revolução Francesa.
No verão de 1959,
chegaram a Roma, sob a forma de vota, as respostas dos bispos, dos
superiores das ordens religiosas e das universidades católicas à solicitação de
pareceres do Cardeal Tardini [então Secretário de Estado]. O apuramento do
imenso material foi iniciado no mês de Setembro e ficou concluído em finais de
Janeiro de 1960. As cerca de três mil cartas constituíram a matéria dos oito
volumes de Acta et documenta concilio Vaticano II apparando"
[1].
Uma análise atenta
deste material permite hoje ao historiador -- como permitiu então ao Papa, à
Cúria e à Comissão Preparatória -- obter um quadro dos desiderata do
episcopado mundial nas vésperas do Concílio.
As solicitações
dos futuros Padres conciliares, consideradas no seu conjunto, não exprimem o
desejo de uma radical reviravolta, e ainda menos de uma "Revolução" no interior
da Igreja [2]. Se é certo que as tendências anti-romanas de alguns episcopados
afloram claramente em respostas como a do Cardeal Alfrink [3], arcebispo de
Utrecht, de uma maneira geral os auspícios dos Padres são de uma "reforma"
moderada, na linha da tradição. A maioria dos vota solicitava uma
condenação dos males modernos, internos e externos à Igreja, sobretudo do
comunismo, bem como novas definições doutrinais, nomeadamente a respeito da
Bem-Aventurada Virgem Maria. Nos vota do episcopado britânico, por
exemplo, está presente a denúncia dos males da sociedade contemporânea, mas não
se encontram aí instâncias de uma reforma radical [4]; e mesmo entre bispos
franceses, considerados dos mais progressistas, muitos pediam a condenação do
marxismo ou do comunismo, e uma minoria consistente pedia a definição do dogma
da mediação de Maria [5]. Quanto aos bispos belgas, Claude Soetens, que analisou
os respectivos vota, sublinha ‹‹ o caráter assaz decepcionante
›› das propostas, ‹‹ que eram pouco susceptíveis de provocar uma
verdadeira renovação eclesial ››, confirmando a impressão de quantos
salientaram a diferença entre as respostas dos bispos à consulta de 1959 e as
atitudes por eles posteriormente assumidas durante o Concílio [6].
Os bispos
italianos, que eram os mais numerosos, queriam que o Concílio proclamasse o
dogma da ‹‹ mediação universal da Bem-Aventurada Viagem Maria ›› [7]; o
segundo dogma cuja definição pediam era o da Realeza de Cristo, para ser
contraposto ao laicismo dominante [8]. Muitos pediam ainda ao Concílio a
condenação de erros doutrinais: 91 queriam ver reiteradas a condenação do
comunismo, 57 exprimiam-se contra o existencialismo ateu, 47 contra o
relativismo moral, 31 contra o materialismo, 24 contra o modernismo [9]. ‹‹
Nas milhares de cartas chegadas a Roma e enviadas de todo o mundo, o comunismo
era referido como o erro mais grave que o Concílio deveria condenar. Eram 286
bispos que a ele se referiam. Para além das numerosas referências ao socialismo,
ao materialismo e ao ateísmo ››, refere Giovanni Turbanti
[10].
No Relatório
sintético, que enuncia os vota dos bispos por nações e foi
elaborado pela Secretaria-Geral das Comissões Preparatórias, o comunismo também
figura como o primeiro erro que o Concílio deveria condenar [11].
É interessante
fazer uma analogia entre os vota dos Padres conciliares e os Cahiers de
doléance redigidos em
França com vista aos Estados
Gerais de 1789. Antes da
Revolução Francesa, nenhum destes cahiers se propunha subverter as
bases do Ancien Régime, nomeadamente a monarquia e a Igreja. ‹‹
Nenhum Cahier foi redigido como se os Estados Gerais devessem ter como
objectivo anular todo o poder pré-existente e criá-lo ou recriá-lo
ex-novo ››, sublinha o historiador Armando Saitta [12]. Aquilo que
se pedia era uma moderada reforma das instituições e não a subversão das mesmas,
como inesperadamente aconteceu quando os Estados Gerais se reuniram. Também no
caso do Vaticano II, conclui o Padre O'Malley, ‹‹ em geral, as respostas
vinham pedir um reforço do status quo, uma condenação dos males
modernos, quer no interior, quer no exterior da Igreja, e outras definições
doutrinais, em especial relacionadas à Virgem Maria›› [13].
O Concilio não
atendeu às solicitações presentes nos vota dos Padres Conciliares,
optando por secundar as reivindicações de uma minoria que conseguiu, desde o
princípio, digirir a assembléia e orientar as suas decisões. Esta é a conclusão
irrefutável da análise dos factos históricos.
* * *
[1] Os votos foram
coligidos em Acta et documenta Concilio Oecumenico Vaticano II apparando --
Series I (Antepraeparatoria), cit.. Em 2594 futuros Padres Conciliares,
responderam 1988, ou seja, 77% (cf. E. FOUILLOUX), ‹‹ La fase ante-preparatoria
(1959-1960) ››, cit., pp. 112-113).
[2] Para uma
análise global dos vota veja-se À la veille du Concile Vatican II,
cit., bem como Le deuxième Concile du Vatican, pp. 101-177. Para
os prelados italianos, cf. MAURO VELATI, ‹‹ I consila et vota dei
vescovi italiani ››, in À la veille du Concile Vatican II, cit., pp.
83-97; ROBERTO MOROZZO DELLA ROCCA, ‹‹ I "voti" dei vescovi italiani per il
Concilio ›› , in Le deuxième Concile du Vatican, pp.
119-137.
[3] AD, I-II, pp.
509-516. Bernard Jan Alfrink (1900-1987), holandês, ordenado em 1924, arcebispo
de Utrecht a partir de 1955, feito cardeal em 1960, membro da Comissão
Preparatória e do Conselho dos Presidentes, Cf. FABRIZIO DE SANTIS, Alfrink,
il cardinale d'Olanda, Longanesi, Milão, 1969; TON H. M. VAN SCHAIK,
Alfrink, Een biografie, Authos, Amesterdão, 1997. Sobre o papel de
Alfrink no Concílio, cf. Actes et Acteurs, pp.
522-553.
[4] Cf. SOLANGE
DAYRAS, ‹‹ Les voeux de l'episcopat britannique. Reflets d'une église
minoritaire ›› , in Le deuxième Concile du Vatican, pp.
139-153.
[5] CFf.
YVES-MARIE HILAIRE, ‹‹ Les voeux des évêques français après l'annonce du Concile
››, in Le deuxième Concile du Vatican, p. 102 (pp.
101-117).
[6] Cf. C.
SOETENS, ‹‹ Les vota des évêques belges en vue du Concile ››, in À
la veille du Concile Vatican II, cit., p. 49 (pp. 38-52).
[7] Cf. R. MOROZZO
DELLA ROCCA, ‹‹ I vota dei vescovi italiani ›› ,
cit., p. 127.
[8]
Cf. ibid.
[9] Cf.
ibid., pp. 119-137.
[10]
G. TURBANTI, ‹‹ Il problema do comunismo al Concilio Vaticano II ›› ,
in Vatican II in Moscow, p. 149 (pp.
147-187).´
[11]
Ibid., p. 150. Especialmente notórios são os votos das universidades
católicas, como por exemplo a do Ateneu De Propaganda Fide de Roma, que
apresenta um longo e aprofundado estudo do padre estigmatino Cornelio Fabro
sobre as origens e a natureza do ateísmo contemporâneo. (Cf. De atheismo
positivo seu constructivo ut irreligiositatis nostri temporis fundamenta,
AD, I-I/1, pp. 452-463).
[12] ARMANDO
SAITTA, Constituenti e Costituizioni della Francia rivoluzionaria e
liberale (1789-1875), Giuffrè, Milão, 1975, p. 3.
[13] J. W.
O'MALLEY, s.j., Introdução a Vatican II. Did anything happen?,
cit., p. 4
* * *
Roberto
de Mattei nasceu em Roma, em 1948. Formou-se em Ciências Políticas na
Universidade La Sapienza. Atualmente, leciona História da Igreja e do
Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, no seu departamento de Ciências
Históricas, de que é o director. Até 2011, foi vice-presidente do Conselho
Nacional de Investigação de Itália, e entre 2002 e 2006, foi conselheiro do
Governo italiano para questões internacionais. É membro dos Conselhos Diretivos
do Instituto Histórico Italiana para a Idade Moderna e Contemporânea e da
Sociedade Geográfica Italiana. É presidente da Fundação Lepanto, com sede em
Roma, e dirige as revistas Radici Cristiane e Nova Historica e
colabora com o Pontifício Comitê de Ciências Históricas. Em 2008, foi agraciado
pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos
relevantes serviços prestados à Igreja.
Onde encontrar:
Em Portugal – Nas maiores livrarias do país. Em Lisboa, nas livrarias Fnac e Férin (próxima ao Chiado, centro histórico). Em Porto, pelos telefones 936364150 e 911984862.
No Brasil -- Nas livrarias Loyola, da rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, e Lumen Christi, do Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro. Pela internet, na Livraria Petrus e Editora Ecclesiae.
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